Associação Portuguesa de Bancos garantiu que a banca pode acabar com as taxas mistas e fixas nos contratos de crédito à habitação se se vir impedida de cobrar comissões aos clientes que decidem amortizar a sua dívida antes do previsto. Comportamento “pode não casar bem com as regras de concorrência”, alertam especialistas. Vítor Bento, presidente da APB, garante que "a banca não decreta coisa nenhuma, nem coordena ações"
A ameaça da Associação Portuguesa de Bancos (APB) de que as instituições financeiras poderão acabar com as ofertas de taxa fixa e taxa mista nos empréstimos para a habitação caso deixem de poder cobrar uma comissão aos clientes que amortizam antecipadamente o valor dos seus créditos, poderá violar a lei da concorrência, alertam especialistas em declarações à CNN Portugal. “Ao falar em nome dos bancos, a associação está implicitamente a tomar uma ação coletiva entre eles para fazer uma concertação”. “Há indícios para a Autoridade da Concorrência (AdC) iniciar uma investigação”, afirma Abel Mateus, economista e antigo presidente daquela entidade reguladora.
O aviso da APB faz parte de uma exposição feita pela associação no âmbito da discussão na especialidade da proposta de Orçamento do Estado para 2025 (OE2025) depois de terem sido apresentadas propostas onde se defendia o fim das comissões cobradas pelos bancos aos seus clientes quando estes amortizassem antecipadamente parte ou a totalidade dos seus créditos à habitação. O PS começou por propor a eliminação por completo destas comissões, mas esta segunda-feira modificou-a com o intuito de manter a comissão nos contratos de taxa fixa, descendo-as de 2% para os 0,5%. O Chega também tem uma proposta neste sentido, mas focando-se num teto máximo de 0,5% nos dois tipos de empréstimo.
Foi neste contexto que a APB referiu, no parecer entregue à Assembleia da República, que uma das “muito prováveis consequências indesejadas que a medida poderá acarretar é o estreitamento - ou, mesmo, o seu fechamento - dos contratos a taxa fixa ou mista”. E que “soluções que apontem para a inexigibilidade da comissão de reembolso antecipado em operações em regime de taxa fixa, nem a título temporário, não terão qualquer vantagem para os mutuários, apenas encarecerão a oferta de taxa fixa".
Nesta linha, avisa Abel Mateus, “qualquer prática, qualquer acordo, ou concertação entre bancos para tomarem uma ação conjunta é uma violação da concorrência”. O economista e antigo Diretor Executivo do Banco Europeu para a Reconstrução e Desenvolvimento salienta que há dois aspetos negativos no parecer. Há o facto de “a associação falar em nome dos bancos e, portanto, implicitamente” haver “uma concertação”. “E, em segundo lugar, a ameaça de boicote também é negativa em termos de concorrência”. “É matéria para ser investigada, é evidente”.
Abel Mateus lembra que, no fim de setembro, onze bancos a atuar em Portugal foram condenados a pagar multas por levarem a cabo práticas concertadas no mercado do crédito à habitação. "Aqui o que acho que é grave e diferente é a Associação Portuguesa de Bancos estar a atuar e a ameaçar em nome dos bancos". "Portanto, como é que pode ser? Quer dizer, isso é um cartel".
Banca "não decreta coisa nenhuma", afirma Vítor Bento
Também o advogado Miguel Marques de Carvalho, especialista em direito da Concorrência, vê riscos na forma como foi conduzida esta ameaça por parte da banca. “As associações podem ter, de facto, um papel de defesa dos interesses dos associados, mas quando se entra em matérias mais comerciais tem de se ter cuidado para não parecer que estão a sinalizar comportamentos dos seus membros para o futuro no mercado. De facto, aqui, a associação está a correr alguns riscos ao enunciar possíveis consequências no mercado”.
Este anúncio, acrescenta, aponta para um “comportamento futuro no mercado”, que pode “servir de referência para os vários bancos que são concorrentes e que, a partir daí, vêm definir com autonomia as suas estratégias comerciais, incluindo em função daquilo que são as instituições regulatórias ou legislativas”. “Quando empresas sinalizam publicamente determinado comportamento futuro no mercado, isso pode não casar bem com as regras da concorrência”.
Contactado pela CNN Portugal, Vítor Bento, presidente da APB, garante que a banca “não decreta coisa nenhuma, nem coordena ações" e que cada banco “age por si, de acordo com as suas estratégias individuais”. “O que a APB alertou foi para que, com a medida proposta, conceder crédito à taxa fixa torna-se mais arriscado para os bancos, pelo que é provável que o aumento do risco se reflita nas condições de preço das novas operações, acabando assim por ser desfavorável e eventualmente desinteressante para os consumidores”.
DECO acusa APB de "chantagem política"
A lei prevê que os bancos possam cobrar comissões de até 0,5% sobre o capital reembolsado antecipadamente nos empréstimos a taxa variável e de até 2% nos reembolsos que ocorram num período em que é aplicável o regime da taxa fixa. Até ao final do ano, os clientes estão, no entanto, isentos de pagar comissões de reembolso antecipado dos empréstimos a taxa variável.
Do lado dos consumidores, a Deco Proteste considera que a APB avançou para uma “chantagem política” a uma decisão que está neste momento em discussão. Nuno Rico, especialista em produtos bancários da associação garante à CNN que “a isenção teve efeitos positivos no mercado, porque os consumidores aproveitaram muitas vezes para reduzir os seus encargos com o crédito e daí pouparam não só em juros, mas também na própria comissão em si”.
Além disso, acrescenta, “isto veio trazer uma maior dinâmica ao mercado”. “Tivemos um maior número de transferências de crédito e passou a haver um incentivo para os consumidores procurarem outras condições noutras instituições e fazerem essa transferência”. “Quando a APB toma esta posição, inclusive de ameaçar com o fim das ofertas de taxa fixa e taxa mista, ficamos perplexos (...) só se realmente a APB tem medo da concorrência, daí a nossa estranheza”.
Esta quarta-feira, durante uma conferência em Lisboa organizada pelo Jornal de Negócios, os líderes dos maiores bancos em Portugal lançaram em uníssono críticas à primeira proposta de alteração do PS, salientando que a medida é “absolutamente irracional”, segundo o presidente do BCP, Miguel Maya. Igualmente, o presidente do banco público, a Caixa Geral de Depósitos, Paulo Macedo, criticou a forma como o processo legislativo tem decorrido. "As leis quase desapareceram, não se consegue, nesta estrutura, nesta fragmentação política que temos tido no último tempo (…) votar uma lei na Assembleia da República facilmente", registou. Também João Pedro Oliveira e Costa, presidente do BPI, considerou que este "é um daqueles impactos que quebra a confiança". "A partir daqui vou estar à espera de tudo, e esse é quase um dos problemas que nós, mais uma vez, temos", garantiu.
Horas depois, o Governador do Banco de Portugal veio esclarecer que “não apoia qualquer medida de fim das comissões”, mas sublinhou que a eliminação desses encargos “veio tornar o mercado mais fluído”, e obrigar “os bancos a reagir”, permitindo aos mutuários “mais facilmente fazerem mudanças de crédito de banco para banco, coisa que antes podiam fazer, mas havia aquele custo adicional”. “Há aqui uma lição a aprender sobre o nivelamento destas comissões e a forma como os bancos se devem colocar para serem verdadeiramente um setor concorrencial e não precisarem deste tipo de barreiras à transação”, afirmou, durante uma conferência de imprensa onde foi apresentado o Relatório de Estabilidade Financeira de novembro.
Já sobre a nova proposta do PS, a instituição liderada por Vítor Bento garantiu, em comunicado, que “a alteração tem pouco efeito no caso da taxa fixa, sobretudo quando estamos a falar de contratos cuja duração inicial pode ser de 20 ou 30 anos”. “No caso de taxas fixas ou mistas, os bancos deveriam poder ressarcir-se da perda com o desfazer da cobertura de risco, em caso de amortização antecipada”.