Sombras

28 dez 2022, 10:47

Interrogações finais sobre o ano que termina

“…e tudo, ao contrário de agora, em que os dias se empurram uns aos outros na esperança de nos deixarem mais depressa…”

É da vida: os dias atropelam-se e o presente esgota-se no tempo que passamos a antecipar o futuro que há de chegar, a tentar vislumbrá-lo, como quando caminhamos na escuridão procurando tactear um aparo, curiosos mas incertos do nosso destino, de até onde as sombras nos levam.

Assim também foi este avassalador 2022. E mesmo que sejamos incapazes de medir a dimensão de um ano que se encerra ainda a atirar-nos para uma encruzilhada de incertezas, estamos todavia certos de que vivemos um momento de viragem na ordem que sempre conhecemos e que damos por garantida, sentindo o peso da História a crescer e a crescer, todos os dias, um dia de cada vez.

“…à noite, com todos esses ecos, esses suspiros, esses sons, esses jogos de sombra, esses arrepios que o escuro traz consigo…”

Na noite dos tempos, lá longe, começou este ano, depois dos últimos dois suspensos pela pandemia, com novos receios da velha covid e ecos de uma crise a chegar, e a inflação e o custo de vida a disparar, e uma nuvem negra sobre a Europa, também a crescer e a crescer, prenúncio da tempestade que iria mudar tudo. O jogo de sombras formado às portas da Ucrânia foi sucessivamente denunciado pelo Ocidente semanas a fio como um perigo iminente, como um impensável real, enquanto a Rússia ia repetidamente desvalorizando, provocando, gozando, votando os alertas à indiferença, uma paranóia colectiva, e no entanto aqui estamos. Milhares de mortos e de feridos depois, milhões de refugiados depois, milhares de milhões de euros em apoios financeiros e militares depois, num momento em que milhões de ucranianos passaram um Natal às escuras, deixados à sua sorte perante temperaturas negativas, sob ataques constantes, num Inverno que sopra ventos de uma nova ofensiva que fará mais refugiados, mais mortos e mais feridos, incluindo crianças desprovidas da sua infância, órfãs, separadas das suas famílias, sequestradas à força para parte incerta, e a máquina da guerra sem parar, uma paz impossível que todos proclamam porque ninguém pretende realmente negociar, e então mais apoios financeiros e mais armas, mais vítimas, como um ciclo interminavelmente incerto no circo de horrores da guerra.

Que ano este que agora termina sem terminar verdadeiramente, um interlúdio histórico que reforçou as nossas convicções sobre o que está certo e o que está errado, mas desfazendo pelo caminho o que entendemos como progresso ou como moderno. Fomos arrastados para um choque civilizacional, onde a modernidade, segundo a Rússia, é um projecto de revisionismo que nega a existência do outro. Vimos isto no passado e vemos isto agora, outra vez? Qual é o sentido de tudo isto? E que dimensão tem a moldar o futuro e o mundo?

Como um sobressalto na noite dos tempos, no tempo que escapa, avassalador, sem certezas do que virá, como quando caminhamos na escuridão procurando tactear um aparo, esta também é a dúvida que assola António Lobo Antunes na abertura da sua última obra, publicada este ano mesmo, e cujos excertos foram entrecortando este texto:

“Qual é exactamente, digam-me por favor, digam depressa, qual é exactamente, porque preciso tanto de saber, qual é exactamente, o tamanho do mundo”.

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