Nem todos os vírus são maus: este salvou um homem de uma bactéria resistente a todos os antibióticos

CNN Portugal , DCT
4 mai 2022, 17:00
"A terapia com bacteriófagos é uma opção terapêutica promissora para infecções multirresistentes", diz o estudo. (AP Photo/Richard Drew)

As bactérias resistentes a antibióticos matam 1,2 milhões de pessoas por ano, mais do que a sida e a malária. Um recente estudo mostra como o uso de vírus pode ser a chave e há um caso de sucesso para o comprovar.

Um homem, de 56 anos com queixas de perda de peso, mialgias, fadiga e com um diagnóstico de doença renal crónica e artrite, chegou ao Brigham Hospital, em Boston, no Estados Unidos, com lesões nodulares no braço esquerdo causadas pela bactéria Mycobacterium chelonae - detetada após uma biópsia. O caso clínico em questão remonta a 2020 e era, por si só, complexo, mas ideal para a aposta em tratamentos mais direcionados.

A Mycobacterium chelonae é uma microbactéria não tuberculosa de crescimento rápido e que se “manifesta clinicamente em infeções localizadas na pele e nos tecidos moles”, explica o artigo publicado na revista científica. O tratamento passou, numa fase inicial, pelo uso de antibióticos, a prática comum para fazer frente a bactérias, mas o quadro clínico do paciente não só não melhorou, como as lesões cutâneas atingiram uma nova escala e houve a necessidade de internamento e remoção de tecido morto do braço. Face à incapacidade de ação dos antimicrobianos, e mesmo com cirurgias pelo meio, os médicos avançaram para o uso de vírus bacteriófagos, também denominados fagos, que são patógenos (vírus) capazes de aniquilar bactérias, até mesmo aquelas que são já resistentes a antibióticos

Pelo que sabemos, este é o primeiro caso de infecção humana por Mycobacterium chelonae tratada com um bacteriófago e o primeiro caso de tratamento bacteriófago com um único fago para uma infecção micobacteriana. A terapia com bacteriófagos é uma opção terapêutica promissora para infecções multirresistentes, embora uma melhor compreensão da segurança, dos fatores que impulsionam o desenvolvimento da resistência bacteriana e do significado clínico da neutralização de fagos mediada por anticorpos seja vital para avançar nessa opção terapêutica para os pacientes”, lê-se num estudo publicado esta terça-feira na revista Nature Communication.

Este caso mostra como a aposta em vírus como forma de tratamento pode ser uma solução para um problema demasiado comum: as bactérias resistentes a antibióticos matam 1,2 milhões de pessoas por ano, mais do que a sida e a malária.

Tratamento experimental com sucesso - pelo menos para já

A ideia de recorrer a um vírus para matar a bactéria resistente a antibióticos foi do médico venezuelano Francisco M. Marty, que sugeriu que se encontrasse o patógeno certo para esta bactéria, uma descoberta possível através da sequenciação do genoma dos micróbios extraídos da pele infetada e lesionada do paciente. 

A sequência do genoma da Mycobacterium chelonae foi isolada em outubro de 2020, meses após tentativas falhadas de tratamento com antimicrobianos. Foi identificada a estirpe GD153, que serviu para investigar fagos potencialmente terapêuticos, isto é, vírus capazes de matar bactérias, mais concretamente esta. 

“A GD153 foi testada quanto à sensibilidade a um painel de aproximadamente 20 fagos (...) que anteriormente mostraram potencial para atividade contra infecções (...), bem como [outros] nove fagos”, explica a publicação. E foi assim que os cientistas chegaram ao Muddy, um fago que já se tinha mostrado eficaz em aniquilar a Mycobacterium chelonae em testes de laboratório. E foi este o vírus que mudou favoravelmente o quadro clínico do paciente.

Um único fago - o Muddy (e sua variante de gama de hospedeiros Muddy_HRM GD04) - infecta eficientemente a GD153” e, por isso, “mata eficientemente” esta microbactéria “sem sobrevivência evidente”, anunciam os investigadores.

Uma vez que o vírus Muddy tinha apenas sido testado em ambiente laboratorial, faltava saber a sua eficácia na prática clínica. Os médicos que acompanharam este paciente tiveram luz verde da Food and Drugs Administration (FDA) para administrar via intravenosa este fago, mas não suspenderam o tratamento com antibióticos.

Apesar de o paciente ainda estar sob tratamento, esta combinação mostrou-se eficaz na melhoria das lesões cutâneas, tendo os médicos também verificado uma melhoria “constante” na “diminuição da inflamação e nodularidade”..

“[O paciente] relatou um rubor subjetivo após cada dose [intravenosa do fago] que durou até uma hora, mas negou febre, calafrios, sintomas respiratórios, sintomas gastrointestinais ou sintomas neurológicos. Manteve-se hemodinamicamente estável com marcadores laboratoriais estáveis. Dois dias após o início, apresentou calafrios e náuseas duas horas após a infusão do bacteriófago sem outros sintomas associados ou alterações nos sinais vitais. Esses sintomas foram resolvidos sem intervenção”, lê-se no estudo.

Relacionados

Saúde

Mais Saúde

Patrocinados