Duas velhas e um chapéu

3 out 2022, 21:33

A CNN entrou em Lyman muito pouco tempo depois de as forças ucranianas assumirem o controlo pleno da cidade que antes estava ocupada pela Rússia. A peça é das mais extraordinárias que já vi desde o início do conflito e; imagine-se, nem sequer mostra cadáveres ou peças de artilharia a rugirem enquanto disparam a morte e a destruição. O primeiro momento impressionante é aquele em que as câmaras expõem, e o jornalista nos conta, um lugar fantasmagórico, uma cidade vazia, quase sem seres humanos. E diz Nick Paton Walsh, editor de segurança da CNN Internacional: a grande maioria dos habitantes, ou desandou perante a chegada dos russos, ou (aqueles que tinham ficado) desandou agora perante a (re)chegada dos ucranianos.

Lá vem, então, o segundo momento extraordinário.

O jornalista encontra duas velhas, uma de 72 anos, mas que parece muito mais pelo muito que já sofreu. Está revoltada e zangada, com um chapéu que tira e põe, de forma convulsiva: cada um dos ocupantes (ucraniano ou russo) é um chapéu. E ela geme o sofrimento a que está sujeita por ter de usar um ou outro dos bonés, sem conseguir agradar a ninguém. “Quer a verdade? Pomos um chapéu, tiramos um chapéu. Pomos um chapéu, tiramos um chapéu!” E lá ia e vinha o chapéu a voltear no ar, modesto, a imitar pele de zebra ou coisa que o valha e a cobrir os cabelos desgrenhados e que não conhecem pintura há muito. “Sou como um rato numa cave, a rastejar para fora da cave…” Para os russos, devia ser suspeita de apoiar a Ucrânia. Para os ucranianos, porque tinha ficado, é com certeza suspeita de apoiar o invasor. De mal com Deus e o diabo, portanto.

A outra das mulheres, desesperada, contava como, mal chegaram agora os ucranianos, tinha ficado sem o marido, preso e levado sabe-se lá para onde e de onde pode nunca voltar. E lá foram resmoneando, a primeira a dizer outra vez “um chapéu, outro chapéu”, as duas velhas que não são velhas, com o miserável destino de pagarem duas ou mais vezes o preço da guerra e perderem tudo pelo caminho.

Já estão volvidos mais de sete meses no conflito na Ucrânia, um filme em câmara lenta em que já assistimos a de tudo um pouco, desde situações de horror a imagens de esperança. De forma muito intensa, são invocados intensamente, desde logo o Direito, mas também conceitos que cada um agora pensa conhecer de forma íntima, ligados à geopolítica, às relações internacionais ou económicas ou às artes militares.

Estamos especialistas em mercados de recursos naturais, em sanções, em funcionamento do Conselho de Segurança e na necessidade imperiosa de o “rever”. Olhamos para mapas, descobrimos “coisas” nos vários teatros de operações. Donbass e Lugansk são regiões da Ucrânia, mas é como se fossem nossas, pela sistemática exposição das suas feridas, e das feridas, vida e morte dos que ali estão, todos os dias, na guerra. Que um dia estão sob um senhor, e no dia seguinte sob o poder de outro. As duas velhas. Sempre, a poderem ser considerados como o inimigo, sofrendo as consequências que já sabemos, mas em que preferimos não pensar.

“Sabemos” o que é um conflito híbrido. Mas nunca pensámos, certamente, como seria uma tarefa quase impossível definir a verdade. Como proteção, muitos deixaram de acreditar, a não ser que haja imagens de resultado verificável. Se apareceu a bandeira ucraniana em Lyman, se as duas partes concordam que a Rússia retirou e mais do que retirou, acredita-se. Outras coisas? Não sei. Mas é um “não sei” mesmo, porque o sistemático conflito de versões é a guerra a fazer-se nas nossas cabeças, a manipular-nos para que pensemos isto ou aquilo.

Havendo um momento relevante para um dos contendores, é certo que a maquinaria de comunicação do outro tem de imediatamente contra-atacar, para não o deixar ficar com um ganho que pode, até não ser nada de especial. A Federação Russa anuncia, em cerimónia com pompa e circunstância surreais, a anexação? A Ucrânia também assina um documento em que pede a adesão à NATO com um procedimento urgente. Esta adesão é inviável? Não interessa, retirou protagonismo ao inimigo.

Nunca em conflitos anteriores se jogou tanto e com tantos meios para conseguir-se o controlo daquilo que vemos, daquilo em que acreditamos, daquilo que forma a nossa opinião. Sobre o bem, sobre o mal, sobre avanços e recuos, sobre tempos dos conflitos, sobre o que temos de ver e aquilo que não podemos ver, por várias razões; ou sobre imputações e autorias, como recentemente aconteceu com a sabotagem dos dois gasodutos Nordstream. Para que é que os russos sabotariam, se lhes basta fechar a torneira (é impossível não perguntar)? Se foram eles, porque se mostram dispostos a reparar? Não será antes que, desta forma, se desmama a Alemanha de possíveis tentações de continuar a recorrer ao gás russo, agora que o inverno se aproxima; e se dá mais um sinal à Rússia de que acabou? São só perguntas simples, embora se veja que o mais certo é a questão “autoral” morrer solteira e rapidamente esquecida ou, então, saltar a acusação de estar feito com Putin aquele que pergunta. Enfim, logo se verá.

Todos também se lembrarão da central nuclear de Zaporizhzhia, onde se dizia estarmos a milímetros de uma catástrofe nuclear sem precedentes, com mapas e tudo da nuvem nuclear que aí vinha. E da mesma maneira recordarão que o facto da ocupação russa, garantidamente, nos encaminhava para o fim, porque os russos tinham decidido auto-bombardear-se. A verdade é que esta crise está agora entre parênteses, e nem a detenção do mais alto responsável ucraniano (na referida central nuclear) incomodou mais do que uma nota de rodapé. Ou aconteceu um milagre (não é provável) ou, então, isso deve-se à razão simples da presença de elementos da missão da Agência Internacional de Energia Atómica no terreno. Ou ainda, ou muito mais, à fulgurante e extraordinária contraofensiva ucraniana em Lugansk e Donetsk. Ora, correndo as coisas bem como correm (felizmente) dispensam-se nesta fase as muletas comunicacionais que mantêm o mundo atento e, se necessário, em sobressalto constante.

A Federação Russa tem-se mostrado, ela, amadora e algo incompetente neste exercício. Com o andar da sua carruagem militar cada vez mais lento, depois parado, e agora em marcha à ré (com um ou outro sobressalto), a Rússia foi obrigada a jogar do ponto de vista político aquela que parece a última cartada, ou seja, a inclusão/anexação de regiões ucranianas no seu território. Depois disto, o quê? A declaração por decreto da anexação do continente europeu?

Foi, também, obrigada a jogar uma das últimas cartadas “formalmente” militares: a mobilização parcial de até 300.000 reservistas. Finalmente, a Federação Russa, e aqueles que ainda a apoiam, têm-se dedicado à gestão medo, anunciando a quem os quer ouvir que o Armagedão pode estar ali ao virar da esquina.

Vamos, então, por partes.

A anexação de Lugansk, Donetsk (qualificadas pela Rússia como Repúblicas), Kherson e Zaporizhzhia teve a antecedê-la uma série de referendos, em que as populações foram “consultadas”. Já mais do que se sabe o valor desta decisão: nulo e de nenhum efeito. Podia aqui maçar o leitor e desmontar um a um os precedentes que foram sendo apresentados (do Kosovo a, imagine-se, a República Democrática Alemã – e só não terá saltado Olivença porque ainda não calhou). Outros já o fizeram. Creio, no entanto, que o argumento principal é o que se segue. A Rússia agride a Ucrânia desde 24 de fevereiro. Desde então, o facto deste ataque armado é esmagador: nada do dele resulte é oponível ou lícito, e muito menos qualquer aquisição territorial.

No entanto, se este é um simples facto, daí não vem, de forma obrigatória, a sua irrelevância. A primeira tendência foi a de nem querer falar do assunto, não interessava. Erro, claro. O Direito é muito, mas não é tudo: e o facto da anexação tem uma consequência de relevo. Se o resto do Mundo pode nunca reconhecer estas aquisições territoriais, a Rússia de Putin passa desde hoje, com a ratificação definitiva, a dizer ao Mundo: podem dizer o que quiserem. Para a Rússia, são russos Lugansk, Donetsk, Kherson e Zaporizhzhia. Logo, quem os atacar estará a atacar a Rússia diretamente. Já agora, essa é a razão principal por que Putin, na sua intervenção, situou o início do conflito com a Ucrânia em 2014, e, como é claro, foi a Ucrânia que começou.

Se este oito é perigoso, não o é menos o oitenta. Agora, dizem outros, a guerra nuclear está por um fio. A Rússia gosta muito que esta “versão” circule, e o seu líder falou diretamente na hipótese do recurso a armas nucleares (quando anunciou a mobilização parcial), e, pouco tempo depois (quando “aceitou” os pedidos de integração na Federação Russa das quatro entidades), mais disse que teria o direito de recorrer a todos os meios para se defender. Há aqui uma questão prévia. Num conflito, é escandalosamente óbvio que as coisas serão sempre diferentes se pelo menos um dos contendores for uma potência nuclear. Bem o perceberam desde o início os Estados Unidos, pouco dados à bravata temerária. Porém, daí a estarmos na iminência de um conflito nuclear vai um passo gigantesco. Estamos hoje pior, desse ponto de vista, do que a 23 de fevereiro, e estamos pior, agora, do que há duas semanas. Porém, daí a vermos a Federação Russa a fazer de cientista louco vai uma grande distância. A solução é, por conseguinte, perceber-se que estamos perante uma situação séria, sem arrancar as vestes e gritar “olha o lobo!”.

Não se terá percebido, sobretudo porque a Federação Russa parece ter saído do torpor em que esteve afundada durante larguíssimo tempo, em estado de choque por ver os ucranianos a fazerem em dias o que ela só tinha conseguido, e a que custo, em meses.

Não pode é começar-se a fazer comparações impossíveis. Sustentar-se que a população russa é várias vezes superior à da Ucrânia e que, por isso, o potencial de mobilização da Rússia é brutalmente superior é a chamada razão teórica, sem aplicação possível, porque apenas assente no argumento aritmético. Há logo um primeiro argumento. Que é que se prefere? Um ucraniano muito bem treinado, com experiência de combate e muito bem equipado, ou dez dos russos recentemente mobilizados, às vezes à bruta, desmoralizados, sem treino e muito mal equipados? A Rússia divulgou imagens das primeiras entregas de armas ligeiras, e fez mal. Foi um momento confrangedor, e as caras fechadas dos novos “combatentes” falaram mais do que mil palavras.

Não se confunda é esta avaliação com uma euforia arrogante. A Ucrânia tem muito que andar, o jogo está infelizmente muito longe do fim. Mas os sinais que temos perante nós são mais do que positivos, porque vão além disso. São surpreendentes do ponto de vista das capacidades mostradas pelos ucranianos, mas não são menos surpreendentes do ponto de vista das incapacidades expostas pelo lado russo, que se prolonga até a um processo de mobilização geral desastroso de tão desorganizado e caótico. Como todos viram e a própria Rússia reconheceu.

Há dois outros sinais muito importantes. Já com Lyman formalmente russa, os ucranianos entraram por ali dentro como faca quente em manteiga e, que saiba, ainda não pararam desde então. Este momento é importante por si, mas por outras razões. Pela primeira vez na sua história, a Federação russa perdeu território “seu”. E não usou nem ameaçou usar quaisquer armas nucleares (bom sinal).

O segundo sinal coloca-nos, outra vez, no plano da Twilight Zone. Perguntado sobre quais eram os limites dos territórios recentemente “integrados” na Rússia, o porta-voz Dmitri Peskov disse uma coisa difícil de acreditar, de absurda que parece. Quanto a Lugansk e Donetsk, já se sabe, são os limites das respetivas regiões, tal como definidos…pela Ucrânia. Desta forma, e sabendo-se que a Rússia controla cada vez menos daqueles territórios, são anexados espaços que, juridicamente (e nesta visão russa), estão ocupados pelo invasor…ucraniano. Mas, e quanto a Kherson e Zaporizhzhia? Aí, Peskov diz que ainda não é possível responder: será aquilo que os habitantes daquelas regiões decidirem. A resposta é tão espantosa e absurda que nem precisa de comentário. A não ser um: sendo necessária uma prova (involuntária) de quanto as coisas estão a correr mal para o invasor, podemos agora agradecer todos ao Senhor Peskov.

José Alberto Azeredo Lopes

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