A “coutada do macho russo”

23 mai 2022, 21:34

I. Quanto vale a soberania ucraniana?

Por estes dias, um dos temas mais interessantes a respeito do conflito na Ucrânia tem sido a discussão sobre se aquela deve, ou não, deve negociar com a Federação Russa para pôr termo ao conflito.

A resposta hoje simples, de longe a mais politicamente correta, é dizer-se que isso é algo a que só a Ucrânia pode responder: é um Estado soberano Este foi mais ou menos o teor da mensagem deixada de forma empolgada no Parlamento ucraniano pelo Presidente polaco, Andrzej Duda: “Quero dizer claramente: só a Ucrânia tem o direito de decidir o seu futuro!”

A recidiva a que estamos a assistir nos últimos dias quanto a declarações políticas deste género tem a ver, no essencial, com dois factos. O primeiro, a queda de Azovstal que, como era previsível e por efeito-ricochete, tem feito as delícias da Rússia, desde a “imprensa” a altos responsáveis políticos, assim como causado um certo spleen no lado ucraniano.

Depois, talvez mais do que alguns avanços russos no Donbass, destaca-se a convicção de que, embora agora se considere ser realista admitir a vitória militar da Ucrânia, o tempo do conflito será longo. Ora, assim sendo (e já estamos no segundo aspeto a destacar), alguns Estados têm insistido que as negociações entre as duas partes não devem, por princípio, ser arredadas – este foi o caso da Itália que, dando disso conhecimento às Nações Unidas, apresentou um plano faseado para alcançar o cessar-fogo (primeiro) e a paz (depois).

O que agora se discute, por conseguinte, é o “valor” da soberania ucraniana, a sua cotação atual no mercado esdrúxulo criado pela invasão russa.

Ao contrário do que muitos vaticinavam, a Ucrânia mostrou na fase inicial deste conflito (o qual, por seu turno, pode estar na sua fase inicial) uma capacidade de resistência e uma competência militar surpreendentes. É claro, hoje muitos reivindicam o mérito de tal facto, nomeadamente, os Estados Unidos, pelo treino e capacitação dados às forças ucranianas nos últimos oito anos. Seja, de acordo. Porém, do ponto de vista da estratégia que definiu, desde o plano político ao comunicacional, passando pelas negociações com o invasor e posterior interrupção desse processo (depois de Bucha, ou depois de Bucha e de uma redefinição geral de probabilidades), muito do mérito não é partilhado. É só da Ucrânia.

Segundo esta perspetiva, é fácil: a Ucrânia exerce o seu direito de autodeterminação e é soberana.

No entanto, a decisão de continuar a resistir – mesmo que com custos materiais e humanos tremendos – ou de querer ou não negociar já não é só da Ucrânia, envolve terceiros. Com efeito, por muito valorosas que sejam as forças, determinação férrea e capacidade de sacrifício do País agredido, o conflito já teria inevitavelmente “terminado” não tivesse havido um apoio sem precedentes prestado à Ucrânia, praticamente sem condições.

Todos recordarão este processo em crescendo, através de uma declaração muito geral e política de apoio ao exercício do direito de legítima defesa individual daquele País, depois com ações concretas, numa primeira fase com armamento ligeiro e defensivo, depois mais, depois mais, e agora com armamento pesado, desde blindados a artilharia que se veja.

Por conseguinte, a Ucrânia é soberana, e não é a ocupação de parcelas do seu território que a diminui; mas a Ucrânia “não” é soberana se pela expressão se entender, aliás de forma datada e ultrapassada, que para o ser haveria de ter capacidades sem fim para enfrentar, no plano militar, a agressão da Federação Russa ou de quem quer que fosse. Este não é um critério jurídico-politicamente aceitável, porque, fosse assim, quase nenhum Estado (aqui se incluindo Portugal) seria qualificável como soberano. Mas a expressão é, da mesma sorte (e com esta reserva), uma ferramenta de trabalho útil para interpretar a realidade.

Segundo este critério material, o “reforço” substantivo da soberania ucraniana depende de dois ou três fatores convergentes – conceito dinâmico e em evolução compreensível desde o início da guerra.

O primeiro é consequência de um pressuposto: a Ucrânia será e continuará a “ser” soberana enquanto o fluxo de apoio e treino militares se mantiver e por maioria de razão se vier a ser reforçado.

Nesse plano, não parece que Kiev deva ter, por ora, especiais razões de preocupação. Com efeito, por exemplo, os Estados Unidos acabam de aprovar um plano de apoio gigantesco de 40 mil milhões de dólares e têm vindo a reforçar e qualificar as capacidades militares ucranianas. Muitos outros Estados, nesta vertente, continuam a mostrar (é verdade, alguns mais do que outros) uma vontade importante de não deixar que a Ucrânia fique desprovida, indefesa e “desarmada”.

Em segundo lugar, a qualidade da “soberania” de facto da Ucrânia depende também, nem que seja pela negativa, de se alcançar o objetivo de enfraquecer tanto quanto possível a soberania (talvez melhor, a capacidade de decisão) do agressor. Mais fraca, a Rússia? Menos fraca, a Ucrânia.

Os diferentes pacotes de contramedidas que têm sido adotados por várias dezenas de Estados contra a Rússia visam sufocar, gradualmente, mas de forma duradoura, a sua possibilidade de ser eficiente nesta como outra qualquer agressão futura. Sem dinheiro, não há vícios, dizia-se antes para elogiar os pobrezinhos e honrados. Sem dinheiro, vai diminuindo a capacidade para a Rússia repor capacidades e dar as estocadas decisivas que tinha por adquiridas e fáceis.

Em terceiro lugar, a medida da “soberania” ucraniana depende também daquilo que este País tem verbalizado (de forma veemente) a propósito da adesão à União Europeia ou a formas de cooperação reforça com outros Países (um novo catálogo de alianças).

Falhado por enquanto o projeto de adesão à NATO, surgiu como “second best” a adesão à União Europeia. A questão é, no imediato, muito mais da ordem do sonho e da mobilização coletiva do que da realidade.

Algo excitados, presos aos absurdos da comunicação, em que se nos exigia uma novidade bombástica por dia, fomos dizendo sim e sim e sim, quando – como é evidente – deveríamos ter advertido que, nem que sim fosse, tardaria anos, décadas, a concretizar-se. Enviámos questionários infindáveis, a Ucrânia fechou-se no quarto a preencher, devolveu, e alguns até terão acreditado que já estava. Era nosso dever termos esclarecido em tempo, antes sequer do início da conversa, que a aplicação dos critérios de Copenhaga sempre mandará para as calendas a adesão efetiva da Ucrânia. Critério político, critério económico, critério do acervo comunitário, cada um deles é uma montanha escarpada, que se alcança, mas com tempo.

A proposta de uma CPE (Comunidade Política Europeia), lançada pelo Presidente francês, tem em vista incluir os membros da UE, os que já foram membros e aqueles que gostariam de o ser: assim a modos que o Pátio das Nações do Palácio da Bolsa no Porto, onde todos poderemos estar e confratenizar, embora o acesso ao salão árabe continue vedado aos que não são sócios. Mais do que o Conselho da Europa, muito menos do que a UE. Não me parece nada mal. Porém, a Ucrânia, por enquanto, disse que não chega, não está interessada em antecâmaras. Penso que vai acabar por estar – pela razão de que quem dá o que tem (e pode) a mais não está obrigado, e de quem recebe alcança, depois, as virtudes do projeto (se este for adiante, claro).

Finalmente, ainda neste campo das associações, parcerias ou recomposição de alianças, haverá que assinalar o acordo ontem anunciado com a Polónia. Tanto quanto se consegue alcançar, trata-se de uma gestão comum de fronteiras, assim como de uma série de regras partilhadas em matéria aduaneira, preparando o País para a integração avançada que se concretizará na altura da adesão.

Mas, mais: deu ontem entrada no Parlamento ucraniano um projeto legislativo que confere um estatuto especial, muito próximo do da cidadania, aos cidadãos polacos. A medida, como foi declarado por Zelensky, é uma norma-espelho daquela que a Polónia adotou relativamente ao conjunto dos refugiados ucranianos – pelo que não se antevê, em sentido formal, nenhum obstáculo.

Só que, com o fosso económico que separa polacos de ucranianos, parece evidente que a solução beneficiará sempre quem tiver mais capacidade para adquirir ou para investir (a Polónia). Se pensarmos que o PIB per capita da Polónia era em 2021 quase três vezes o da Ucrânia, e se atendermos a que estes números são de antes da guerra, o retrato parece feito. E, ainda mais, se pensarmos que o crescimento dos números polacos se antevê como muito significativo nos anos que aí vêm e que a queda do PIB ucraniano, por razões óbvias, pode ser vertiginosa.

É um pouco inconveniente dizer as coisas assim à bruta, mas confirma-se como a Polónia vai exercer uma influência cada vez mais intensa sobre a Ucrânia; e como a redefinição muito ampla de poder internacional a que estamos a assistir vai ter, como um dos beneficiários principais, o Estado polaco.

Sempre na mesma temática dos apoios e alianças, o Presidente ucraniano foi a Davos, para uma intervenção aguardada com bastante expectativa.

O guião foi cumprido: “sanções” máximas para a Rússia e para a respetiva banca, apoio militar reforçado para a Ucrânia. Faltava uma coisa: 5 mil milhões de dólares por mês. O valor é descomunal, pois que, se o PIB da Ucrânia em 2021 terá andado um pouco acima dos 160 mil milhões de dólares, imagine-se o peso e a dependência que representam 60 mil milhões de dólares/ano (5x12), mais ou menos 36,5% de um PIB que era de paz e é agora uma miragem. E fica a questão seguinte, que é cínica, mas inevitável: quem vai contribuir, em que percentagem, durante quanto tempo e com que contrapartidas, nem que seja a prazo?

De facto, esta soma pantagruélica acrescentaria a tudo o que já está anunciado e comprometido, por exemplo na área das capacidades militares. Quem, quando e como vai pagar, quando se viu que, mal foi anunciado o importante apoio financeiro português (250 milhões em três anos), logo vieram as críticas sobre o dinheiro que se gasta com “isto”, quando há rubricas tão importantes no nosso orçamento que nem se aproximam de tais montantes?

II. E as decisões quanto à guerra?

Por tudo o que foi dito, podemos concluir duas coisas.

Uma, que a Ucrânia conserva intacto o seu direito de autodeterminação, assim devendo ser-lhe reconhecido o direito de decidir negociar ou não com o agressor. Num mundo perfeito, nunca um Estado negociaria o inegociável com um agressor, porque o direito a isso o não obrigava. E ainda é mais ou menos assim, mesmo neste mundo não ideal – apenas, com custos que podem ser brutais.

Depois, este é o segundo ponto, em termos reais a Ucrânia só poderá exercer o seu direito de autodeterminação com tanta liberdade de escolha enquanto um conjunto importante de Estados entender por bem salvaguardar e garantir tal liberdade.

Como já aqui defendi, e mantenho, na Ucrânia estão a decorrer por esta altura dois conflitos. Um, que mais diretamente opõe a Rússia (como agressor) à Ucrânia (como Estado-vítima), começou a 24 de fevereiro de 2022 ou, numa versão menos do imediato, com a intervenção militar russa de 2014 e a anexação da Crimeia e a ocupação de parte do Donbass. Este conflito é mais clássico do que sei lá o quê, uma vez que o agressor seguiu, mais ou menos à letra, uma cartilha ou manual das agressões muito mais próprio do séc. XX do que 2022, já bem entrados no séc. XXI. Se só existisse este conflito, é provável – infelizmente – que já tivesse terminado ou ou nos últimos estertores, como se vê pelo facto de o Presidente Zelensky, vendo a dada altura malparadas as coisas, ter admitido (desde que não perdesse a face) a renúncia à NATO e até – digamos as coisas como elas são – amputações territoriais, fosse a título definitivo, fosse pela admissão de um regime de autonomia aprofundado (em Donetsk e Lugansk). O resultado seria o possível, e, feitas as contas, bonzito para a Rússia e sempre amargo para a Ucrânia.

Só que está a decorrer um outro conflito, que começou mais tarde mais adquiriu caráter dominante. Aquele em que a Ucrânia é o braço por nós armado para o confronto que queremos ter com a Rússia e que sustenta, por isso, a guerra mais tradicional e visível. Por isso, a tal guerra tradicional vai durar, não admite por enquanto negociações. Nela, tudo pode ser radicalizado (e tem-no sido), numa lógica de tudo ou nada. Ou ganha um tudo, ou ganha o outro.

Achamos nós que ganhamos tudo? Oxalá estejamos certos, embora não consiga alcançar a vantagem de destroçar a Rússia sem lhe deixar a oportunidade de recuar.

Porém, seria errado fingir que se trata apenas de uma escolha serena e avisada entre iogurtes com mais ou menos teor de gordura. Para que o segundo conflito (também dito “proxy” ou por procuração) possa ter lugar e assim sustentar o primeiro, o tempo é muito diferente: o resultado não se consegue de um dia para o outro.

Além disso, alapadas as forças russas num Donbass que sofre, depressa perceberemos que o custo de reconquistar é sempre maior do que o de defender posições. Em terceiro lugar, mais tempo e mais violência serão sempre um custo ainda mais terrível para o povo ucraniano, já com uma destruição incalculável do País, perdas muito elevadas em vidas humanas, custos ambientais perenes, etc.

Simplesmente, o custo não é nesta altura evitável, as decisões tomaram o freio nos dentes. A remessa de capacidades militares tão impressionantes para a Ucrânia é uma benesse, mas também uma limitação da sua autonomia. Nesta altura, nem que Zelensky acordasse com tal vontade poderia negociar, porque logo a torneira de fora se lhe fecharia (passava a ser menos útil na prossecução do resultado vitorioso em toda a linha contra a Rússia) e porque, é bom não o esquecer, o seu povo não lho perdoaria, principalmente aquela parte do seu povo que, felizmente, vive nesta altura em quase normalidade e não conheceu o inferno como tantos já viveram desde que a guerra começou.

Nós, que não estamos lá no meio, podemos e devemos mostrar solidariedade e apoiar (como creio que, desde a Segunda Guerra, não tínhamos feito com ninguém, pelo menos com tal intensidade). Porque, assim de forma perfunctória, vejo pelo menos duas vantagens óbvias. Temo-lo agora muito claro, a Ucrânia é um tampão decisivo para a nossa própria segurança – ou, se quisermos, para a segurança do “nosso” flanco leste, tomado o continente europeu como razoável unidade. Durante anos, falou-se desse “flanco” mais ou menos em teoria. Com esta aula prática que todos dispensariam, é só olhar para o mapa.

Em segundo lugar, e estamos a “usar” os ucranianos (como eles nos “usam” a nós exigindo os meios para poderem defender-se), como coincidimos na necessidade de enfraquecer por muito, muito tempo a Rússia (Austin, o Secretário de Defesa norte-americano, dixit), o negócio é fácil de explicar. Nós damos os meios, os ucranianos combatem, a Rússia perde, ganha a Ucrânia e ganhamos nós.

Apenas, este negócio implica várias condições para funcionar de forma oleada, e em todas o tempo é decisivo.

A primeira condição é a de que o tédio e o efeito de cansaço não se instalem.

A segunda é a de que quem mais perde (do ponto de vista económico) com a continuação do conflito não se vá afastando gradualmente, assim se quebrando consensos que, até ver, têm sido determinantes.

A terceira é de que se mantenha, na esfera interna, a vontade das opiniões públicas (somos democracias) em suportar, ainda que em parte em detrimento do seu próprio bem-estar, este esforço público internacional.

A quarta, é a de que os custos indiretos, por muito que sejam todos imputáveis ao agressor, como a crise alimentar global que está aí a bater-nos à porta com estrondo assustador, não nos obrigue a modificar estratégias – quem vai dizer a um somali que, “esperemos que compreenda, vai morrer de fome (o senhor mais a sua família) por causa do invasor russo na Ucrânia”?

A quinta, é a de termos noção de que estamos a criar os pilares de um sistema internacional que se afasta, possivelmente de forma duradoura, daquela globalização que, de uma forma um tanto serôdia, andámos a endeusar desde há décadas. E que se exprime através do regresso atualizado de um modelo de várias comunidades internacionais (a nossa, é claro que de forma irónica, batizei-a como Sacro Império americano-germânico), cada uma com as suas regras próprias, todas a procurarem comunicar entre si, mas com o recurso a vias muito mais estreitas, tem um custo e, sobretudo, reforça bastante o poder de quem tiver em mãos o económico, o político e o militar.

Nem todos podem gabar-se disso, mas também, qualquer que fosse o modelo, quase ninguém pôde, no passado. Ora, quando o Presidente Joe Biden, rompendo aparentemente de vez com uma tradição muito saudável ambiguidade, declara que os Estados Unidos, se for caso disso, defenderão Taiwan militarmente vemos o desenho a ganhar contornos mais nítidos, mas nem por isso muito animadores. Como também se está a tornar um hábito, a fonte norte-americana do costume veio logo “desmentir” Joe Biden. Mas, é assim: está dito, está dito, e a resposta chinesa foi esclarecedora.

Agora, talvez, se perceberá melhor a iniciativa italiana e o papel de facilitador que se propõe assumir. Entre os Estados Unidos e a Rússia, as duas fatias de pão, está o fiambre, que somos nós (não será a descrição mais poética, aceito). No essencial, os Estados Unidos só perdem o que gastarem a apoiar a Ucrânia, mas é barata feira, considerando o que está em jogo. Se tudo correr bem, resolvem o assunto russo e concentram-se na sua Premier League, que vai jogar-se noutro continente, o asiático. Tudo o que possa gastar, recuperará com juros, nem que seja pela brutal recomposição em curso do mercado da energia, que se fará em detrimento da Rússia e da União Europeia (pela criação de novas dependências e pelo custo acrescido), mas em benefício dos norte-americanos. Talvez seja isso que vai acontecer. A verdade, e aqui a história conta e é objetiva, é que andámos décadas a aproveitar a despesa americana. Acabou a Guerra Fria, e continuámos no mesmo. Veio o séc. XXI, e tudo como dantes. Os americanos começaram a resmungar, Presidência atrás de Presidência (com o apogeu em Donald Trump) e os outros membros da NATO, com exceções individuais que não vinham da convicção, mas do medo ou de ameaças específicas, nada. Começamos a perceber, de uma vez por todas, uma verdade básica: não é possível ter sol na eira e chuva no nabal.

Por outro lado, numa leitura de segurança e de decência, não se vê o que a Europa pudesse ter feito de diferente. Resta saber quanto tempo estará disposta a continuar sem ranger de dentes. Quando se vê a preparação (outra vez…) da suspensão das regras de disciplina orçamental, aquelas em relação às quais ainda há poucos anos éramos tão implacáveis e cegos, está tudo dito sem precisar de ser dito. E ai de quem acreditar que essa exceção é eterna. Um dia, muda o vento e, como disse um célebre presidente de um clube de futebol, aquilo que hoje é verdade passa a ser mentira.

III. O Direito não explica nada

Qualquer um sabe que a situação que vivemos não é “explicável” só com recurso ao direito e, em especial, com recurso ao direito internacional. Este foi e é muito útil para desmontar de fio a pavio o conjunto de argumentos da Federação Russa, primeiro quanto às justificações “legais” para ameaçar e depois usar a força contra um Estado soberano e independente. A Rússia foi e é o agressor, ponto final, parágrafo.

Depois, também o direito foi decisivo para comprovar a irrelevância dos “objetivos” da que se tentou nomear “operação militar especial”. Nenhum desses objetivos, em nenhuma circunstância, podia desconsiderar aquela que foi uma intervenção grave e imperial.

O direito internacional ainda serviu para mais, naturalmente. Explicou como é que Estados terceiros (em relação ao conflito) estavam sujeitos ao dever jurídico de, individual ou coletivamente, não reconhecerem quaisquer efeitos que pudessem “resultar” agressão, não participarem nela e cooperarem com o Estado agredido de forma que este consiga repelir o agressor e, a prazo, restabelecer a sua integridade territorial e independência política e, logo, restabelecer a legalidade internacional.

Finalmente, o direito internacional tem sido muito útil e infelizmente esclarecedor para expor violações muito graves do direito internacional humanitário e a prática de crimes internacionais individuais.

É verdade, com estes limites não negociáveis, todas as restantes análises, críticas ou não, são legítimas. As análises histórica, militar, política, estratégica, moral, geopolítica, são todas bem-vindas e necessárias, para, como cidadãos, ficarmos mais esclarecidos e formarmos uma opinião plural e fundamentada.

Porém, os planos não se confundem e, quando se confundem…há gato. A geopolítica ou a história, por exemplo, não são variáveis que relativizem um ataque armado brutal e grosseiro como aquele a que estamos a assistir desde 24 de fevereiro. Portanto, dar de barato que a Rússia agrediu, mas, logo a seguir, “explicar” a agressão com a invocação da história longínqua ou próxima, ou com a independência “recente” da Ucrânia (trinta anos!), ou com ações agressivas da Ucrânia…para recuperar o território que lhe foi confiscado, mostra como a invocação de outros elementos de análise tem outro propósito. E esse é o de justificar a Rússia (ou, de assim, atacar outrem) e, por conseguinte, desmontar como falacioso e incompleto o juízo jurídico que, já agora, foi partilhado pela esmagadora maioria dos Estados.

Em todo o Mundo, como se viu na Assembleia Geral, houve cinco Estados (repito: cinco!) que, aparentemente, não se reviram na qualificação da invasão russa como ato de agressão.

E esses Estados foram a Rússia e a Bielorrússia, diretamente envolvidas na agressão, assim como a Coreia do Norte, a Eritreia e a Síria. Desta forma, comungam destas análises relativistas quanto à “justificação” da Rússia, descontados os dois atores principais, três Estados de grande calibre democrático, de que me permito realçar a Coreia do Norte e a Síria. Três em cento e noventa e três.

De alguma forma, invocando-se um realismo esclarecido, que vê mais longe do que o comum dos mortais, acaba sempre por se “compreender” o agressor, acaba sempre por se dar pancada na União Europeia – quando aquilo que se quer, naturalmente e do fundo do coração, é que seja mais esclarecida e que se defenda dos maus americanos. Sobretudo, acaba sempre por se dar pancada na Ucrânia.

Em 1989, já lá vão imensos anos, o STJ proferiu um Acórdão que fez história, pelas razões mais negativas, onde se aprecia um caso que envolveu a violação de duas jovens estrangeiras, que, imagine-se o descaramento, “não hesitaram em vir para a estrada pedir boleia a quem passava (…), em plena coutada do macho ibérico”. Assim como se diz no sumário do acórdão:

 

“Contribui para a realização de um crime de violação a ofendida, rapariga nova mas mulher feita que:

a) Sendo estrangeira, não hesita em vir para a estrada pedir boleia a quem passa;

b) Sendo impossível que não tenha previsto o risco em que incorre;

c) Se mete num carro, com outra e com dois rapazes, ambas conscientes do perigo que corriam, por estarem numa zona de turismo de fama internacional, onde abundam as turistas estrangeiras com comportamento sexual muito mais liberal do que o da maioria das nativas”.

 

O texto continua, mas penso, por decoro ser mais do que suficiente o excerto.

Faça-se, agora, um breve exercício, o mesmo que é levado a cabo pelas análises que se pretendem mais completas e abrangentes – e, como está implícito, mais corajosas e a contracorrente.

Onde está a “ofendida, rapariga nova mas mulher feita”, substitua-se por “a Ucrânia, entidade nova mas sabida, com os seus trinta anos e poucos anos”. A seguir, apliquem-se os critérios que nos permitem “compreender” melhor o que se está a passar nesta guerra. A agressividade da Ucrânia, o facto de andar com outro (os Estados Unidos, imagine-se); o não poder ignorar que ia irritar profundamente a Rússia com estes comportamentos e, por exemplo, os “nazis” que frequenta; o ter dito que queria outro (a NATO), não podendo desconhecer aquilo a que razoavelmente se sujeitava.

Está tudo ali. No fundo, e à superfície, sempre, a culpada é a Ucrânia, porque isto é tudo uma questão de poder, de estratégia e de geopolítica, e o direito, bem, o direito que se ponha no seu lugar.

Os Estados e a esmagadora maioria da comunidade internacional coincidem na sua posição sobre a agressão irreversível e indesculpável da Rússia? É porque não foram ainda esclarecidos por quem sabe.

A Ucrânia, só a Ucrânia. Não percebe, coitada, o sentido e ventos da História, desconsidera os seus deveres básicos – por isso, é a pequena Rússia.

Vamos a ver se a lição lhe aproveita, se da próxima ganha juízo e aprende a comportar-se.

Realmente, que falta de vergonha e recato: quem lhe mandou andar por aí em plena “coutada do macho russo”?

 

O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que referi (apenas o sumário, mas é suficiente) pode ser consultado aqui.

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