Um avião abatido, dois irmãos torturados até à morte, jornalistas detidos: Rússia de costas voltadas com importante aliado

Pedro Falardo , artigo atualizado às 22:30
2 jul, 20:50
Vladimir Putin e Ilham Aliyev (Vyacheslav Prokofyev, Sputnik, Kremlin Pool Photo via AP)

Eram, até há bem pouco tempo, parceiros próximos. Mas tudo ruiu nos últimos meses

Poucos diriam, há uns anos, que Rússia e Azerbaijão iriam estar de costas voltadas em 2025.

No final da Segunda Guerra do Nagorno-Karabakh, na qual Baku conquistou vários territórios que tinham sido ocupados por arménios pouco depois da dissolução da União Soviética, o Kremlin emergiu como o grande mediador que, para desagrado da Arménia, seu tradicional aliado no Cáucaso, adotou uma postura muito favorável ao Azerbaijão.

Na ofensiva azeri de setembro de 2023, durante a qual recuperou os últimos territórios ainda controlados pelos arménios no Nagorno-Karabakh, as forças de manutenção de paz russas não se colocaram no caminho das tropas de Baku e, mais uma vez, Moscovo entregou o seu amigo, membro da Organização do Tratado de Segurança Coletiva - uma espécie de NATO que a Rússia formou com alguns países ex-soviéticos - e ofereceu um cessar-fogo com excelentes condições ao Azerbaijão.

Vladimir Putin e o presidente do Azerbaijão, Ilham Aliyev, reuniram-se um pouco mais tarde, a 12 de outubro de 2023, à margem de um encontro de ministros dos Negócios Estrangeiros da Comunidade de Estados Independentes em Bisqueque, capital do Quirguistão.

Ilham Aliyev e Vladimir Putin durante o seu encontro em Bisqueque, 12 de outubro de 2023 (Pavel Bednyakov, Sputnik, Kremlin Pool Photo via AP)

As fotos oficiais da pequena cimeira mostram Putin e Aliyev muito satisfeitos, com sorrisos de cumplicidade. As relações entre Azerbaijão e Rússia tinham atingido o seu auge. A partir daí, só poderiam cair. E caíram. Literalmente.

No dia de Natal de 2024, o voo 8243 da Azerbaijan Airlines partiu de Baku rumo à cidade de Grozny, na Chechénia. Era um dia de muito nevoeiro na cidade russa e o Embraer 190AR não conseguiu aterrar. Enquanto se faziam os preparativos para um regresso a Baku, passageiros e tripulantes sentiram uma forte explosão. Os pilotos perderam muitos dos controlos da aeronave. Muito provavelmente, tinham acabado de ser atingidos por um míssil terra-ar lançado por militares russos.

Imediatamente após o impacto no ar, os pilotos do voo 8243, sem saber o que realmente tinha acontecido, reportaram uma colisão com um bando de aves. A verdade, ainda que não de forma oficial, tornou-se mais clara esta terça-feira, quando o portal de notícias azeri Minval publicou uma carta anónima que recebeu e que detalha, com recurso a testemunhos e gravações áudio, o que realmente se passou naquele dia: houve ordens para abater o avião.

O avião acabou por cair perto do Aeroporto de Aktau, no Cazaquistão, do outro lado do Mar Cáspio, para onde foi mandado pelos controladores aéreos. 38 pessoas morreram, 29 sobreviveram.

A juntar a toda a situação, já de si bastante crítica, a resposta de Vladimir Putin, que lamentou o incidente, mas não pediu desculpa, gerou grande descontentamento no governo e sociedade civil azeris.

Destroços do voo 8243 da Azerbaijan Airlines (Azamat Sarsenbayev/AP)

Avançado para a atualidade, as tensões entre Moscovo e Baku recrudesceram no dia 27 de junho. Os irmãos Ziyaddin Safarov, de 55 anos, e Huseyn Safarov, de 60, foram detidos em Ecaterimburgo, juntamente com outras dezenas de pessoas, em ligação com os assassínios de vários empresários na cidade há cerca de 15 e 20 anos.

Um pequeno problema: os irmãos Safarov, azeris com nacionalidade russa, morreram durante as detenções. As autoridades russas alegaram que um dos irmãos morreu de ataque cardíaco, mas as autópsias feitas aos dois revelaram uma história negra: ambos sofreram hemorragias graves e tinham marcas de violência por todo o corpo.

À Associated Press, o irmão das vítimas, Sayfaddin Huseynli, afirmou que estas mortes foram “um ato desumano e cruel da Rússia contra migrantes - um ato de intimidação". Antes, à televisão estatal ITV, tinha dito que Ziyaddin e Huseyn tinham sido torturados com choques elétricos “mesmo sem investigação ou julgamento”.

A Procuradoria-Geral do Azerbaijão abriu esta terça-feira uma investigação às mortes, alegando que os dois irmãos foram “sujeitos a tortura e a lesões corporais graves” e mortos com “extrema crueldade”.

Dias antes, a 29 de junho, o Ministério da Cultura do Azerbaijão suspendeu todas as atividades relacionadas com a Rússia, como concertos e exposições, citando as duas mortes “extrajudiciais” como motivo, diz o Moscow Times, que noticia também que o governo suspendeu a visita do vice-primeiro-ministro russo Alexei Overchuk.

A mais mediática das reações foi, contudo, a rusga efetuada à sede da Sputnik Azerbaijão, o órgão local deste meio de comunicação estatal russo, na segunda-feira. O Ministério da Administração Interna do governo liderado por Ilham Aliyev alega, segundo a DW, que a Sputnik está a operar no país com recurso a “financiamento ilegal” e após a revogação da sua acreditação em fevereiro deste ano.

Durante o raide, foram detidos o editor da Sputnik Azerbaijão, Yevgeny Belousov, e o seu diretor, Igor Kartavykh. O incidente motivou repúdio do Kremlin, que chamou o embaixador azeri na Rússia, Rahman Mustafayev, ao Ministério dos Negócios Estrangeiros.

Perante a tensão crescente, alguns inimigos da Rússia procuram capitalizar. Esta terça-feira, o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, teve uma conversa telefónica com Aliyev, a quem expressou solidariedade e condolências pela morte dos irmãos Safarov.

“Ilham Aliyev partilhou pormenores que já foram apurados. Estes pormenores demonstram, uma vez mais, o ódio, o chauvinismo e o cinismo dos russos. O presidente do Azerbaijão agradeceu à Ucrânia e ao povo ucraniano pelo seu apoio”, pode ler-se no comunicado da presidência da Ucrânia, que menciona também que Zelensky convidou Aliyev para uma visita à Ucrânia.

Quem também parece estar a tomar o lado de Baku é a Turquia. Alguns meios de comunicação locais reportaram que Arménia, Azerbaijão e Turquia estão perto de um acordo relativo ao Corredor de Zangezur, o que levaria Ancara a substituir Moscovo como principal mediador das tensões entre os dois países do Cáucaso.

Ao Middle East Eye, o analista de política externa azeri Rusif Huseynov apontou que também o Azerbaijão tem interesse em distanciar-se da Rússia.

"A política externa diversificada do Azerbaijão - ancorada em alianças com a Turquia e o Paquistão, parcerias estratégicas com Israel e, mais recentemente, com a China - reduziu ainda mais a sua dependência de Moscovo”, disse Huseynov. “Os responsáveis russos estão provavelmente inquietos com a expansão da influência política e militar da Turquia no Sul do Cáucaso, especialmente através dos seus laços estreitos com o Azerbaijão”.

Ásia

Mais Ásia
IOL Footer MIN