“Os médicos disseram que não tivéssemos esperança porque o nosso filho não ia sobreviver”. As crianças também têm AVCs (e os sinais podem ser tão simples como uma dor de cabeça)

18 mar 2023, 08:00
Criança doente.

Alexandre, Henrique e Mateus não se conhecem, mas os três têm uma história em comum: sobreviveram a um AVC na infância que os obrigou a crescer demasiado rápido para enfrentar uma batalha que, por vezes, nem um adulto consegue travar

O dia 13 de fevereiro de 2019 parecia mais um dia de escola como todos os outros para Alexandre Machado. Aos 15 anos, já estava habituado a ter fortes dores de cabeça regularmente, pelo que nada fazia prever o que se iria seguir. “Quando eu cheguei a casa do trabalho, ele continuava com dores de cabeça. Ele dizia-me: ‘a dor está cada vez mais forte, eu não estou a aguentar’”, conta a mãe, Ana Machado, que, perante o sofrimento do filho, seguiu o instinto maternal e contactou uma médica que o seguia no Centro Materno-Infantil do Norte (CMIN). 

A médica aconselhou os pais a dirigirem-se com Alexandre às urgências. “Se ele aguentar, podem vir só amanhã de manhã”, indicou, sabendo que a família é de Braga e já era tarde para viajarem para o Porto. Mas Ana estava determinada, até porque, diz, “ele é um menino que nunca se queixa de nada”.

“Na mesma hora, avançámos para o Porto. No caminho, ele queixou-se que a dor estava cada vez mais intensa e acabou por desmaiar, já muito perto do CMIN”, recorda a mãe. Uma vez naquele centro hospitalar, não demorou muito até que Alexandre fosse diagnosticado com um Acidente Vascular Cerebral (AVC) isquémico, “que depressa se transformou em hemorrágico”.

O diagnóstico apanhou os pais de surpresa. Afinal, o AVC está geralmente associado aos adultos - sendo mesmo a principal causa de morte em Portugal - e é raro ocorrer em menores de 18 anos.

Mas a verdade é que “o AVC é uma das primeiras causas de morte na idade pediátrica”, indica Rita Lopes da Silva, neurologista pediátrica do Hospital Dona Estefânia e membro da Sociedade Portuguesa do AVC. Embora em Portugal não exista um registo nacional de casos de AVC em menores de 18 anos, a neurologista adianta que "a probabilidade de ocorrer uma morte é de 10 a 25% dos casos".

“É importante dizer que ocorre, sim, [na idade pediátrica], porque realmente as pessoas têm uma ideia de que o AVC é uma doença de adulto, e não é necessariamente assim. Também existem casos de AVC em idade pediátrica, embora as causas sejam completamente diferentes daquelas que se identificam para o adulto”, nota Filipe Palavra, neurologista no Centro Hospitalar Universitário de Coimbra (CHUC) e vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Neurologia.

O que pode provocar um AVC numa criança?

Há vários fatores de risco que podem estar por detrás de um AVC no adulto. São os chamados “fatores de risco modificáveis”, diz o neurologista do CHUC, apontando como exemplo a hipertensão arterial, a diabetes, o tabagismo, o consumo excessivo de sal ou a dislipidemia (uma alteração da concentração dos lípidos em circulação).

Ora, nas crianças, alguns destes fatores de risco não entram na equação. Antes são apontadas como principais causas as doenças infecciosas, inflamatórias e genéticas. “Quando ocorre um AVC, metade das crianças tem um fator de risco previamente conhecido, que pode ser uma doença cardíaca congénita, uma doença hematológica, como anemia de células falciformes ou hemofilia, entre outras”, indica a neurologista Rita Lopes da Silva.

Alexandre sempre foi uma criança com alguns problemas de saúde, que deixavam os pais constantemente “com o coração nas mãos”. Desde pequeno que tem alergia a peixe - não pode sequer cheirar, caso contrário faz uma reação alérgica - e, na entrada para a puberdade, foi diagnosticado com trombocitopenia imune (PTI), uma baixa de plaquetas que, ao mínimo impacto, provoca hemorragias. Por causa disso, Alexandre toma corticoides desde os 12 anos e todas as semanas faz análises para controlo dos níveis de plaquetas no sangue. A mãe acredita que a PTI pode ter sido um fator de risco para o AVC do filho, mas não há certezas quanto a isso.

Também o tipo de AVC varia consoante a idade, apontam os neurologistas contactados pela CNN Portugal. Enquanto 80 a 85% da população adulta sofre de AVC isquémico, nas crianças corresponde apenas a 55% dos casos, indica Rita Lopes da Silva. O AVC hemorrágico é, por isso, mais prevalente na idade pediátrica. As diferenças entre um e outro devem-se ao tipo de lesão cerebral: o AVC isquémico resulta da lesão das células cerebrais pela ausência de oxigénio e de nutrientes na sequência de um bloqueio da circulação de sangue, enquanto o AVC hemorrágico resulta do rompimento de uma artéria.

“Na idade pediátrica talvez não tenhamos tanta preponderância do AVC isquémico porque existem algumas doenças genéticas, como por exemplo malformações arteriovenosas ou outro tipo de arteriopatia genética, que podem provocar sangramentos na criança”, explica Filipe Palavra.

No caso de Alexandre, o AVC acabou por evoluir de um isquémico para hemorrágico precisamente devido ao rompimento de uma veia. “Inicialmente, [os médicos] esperaram um pouco para ver se o organismo começava a absorver o sangue, mas entretanto o Alexandre começou a ter convulsões”, conta a mãe.

O menino foi transferido de imediato para o bloco de emergência, onde os médicos procederam a uma cirurgia de “decomposição craniana, ou seja, tiraram parte do crânio para que o cérebro pudesse crescer, porque tinha imenso sangue lá dentro”, explica Ana Machado.

No mesmo dia, Alexandre ficou em coma induzido. Durante três semanas, Ana e Hélder Machado, o pai do menino, dormiam com uma peça do pijama do filho ao seu lado e chegaram a dormir no seu quarto, tal era a vontade de estarem sempre junto a ele. No hospital, a mãe colocava música no telemóvel e “falava com ele sobre tudo o que se estava a passar.” Uma vez, disse-lhe “vamos dançar” e o filho respondeu com um estalar de dedos.

“Ele estava a ouvir. Só que ninguém acreditava em mim, diziam que eram espasmos”, recorda.

Durante esse período, os médicos “tentaram de tudo” para ajudar o menino. “Cada vez que eles [os médicos] tentavam drenar o sangue, a veia voltava a entupir. Eles chegaram a um ponto em que disseram: ‘nós só estamos a estragar mais’.

"Disseram que tinham feito de tudo, não havia mais nada a fazer"

Foi então que Ana e Hélder ouviram dos médicos aquilo que nenhum pai está preparado para ouvir. “Disseram que já tinham feito de tudo, não havia mais nada a fazer, e decidiram que iam tirá-lo do coma. Disseram-nos que não tivéssemos esperança porque ele não iria passar daquele fim de semana, não tinha como sobreviver”, conta a mãe, de voz embargada, esforçando-se por conter as lágrimas.

“Mandaram chamar a família. Eu tinha e tenho alguns irmãos no estrangeiro e eles vieram no mesmo dia de avião para se despedirem dele, para o verem pela última vez.”

Nesse dia, 8 de março de 2019 - Ana tem as datas bem marcadas na memória - os pais ficaram ao lado de Alexandre enquanto os médicos lhe retiravam o suporte das máquinas. “Não aconteceu nada. Ele estava sereno”, recorda a mãe, que se preparava a qualquer momento para deixar de ouvir os batimentos cardíacos do filho. 

No dia a seguir, um sábado à noite, Ana recebeu uma chamada de uma médica a dizer-lhe que Alexandre estava com os olhos abertos. A partir daí, o menino “começou a dar sinais com uma mão, depois com uma perna”, tudo “muito lento”.

Contra todas as expectativas, Alexandre estava vivo. “Os médicos não conseguiram encontrar uma explicação”, diz a mãe.

Alexandre “não se lembra da maior parte das coisas”, mas a mãe e o pai não esquecem o longo processo de recuperação do filho. “Um miúdo que sai da escola bem e de repente vê-se preso a uma cama com fralda, com uma sonda… é difícil.”

“Ele queria falar, mas não conseguia. Começou a tentar escrever, mas como também não via muito bem, não sabia o que escrevia”, conta Ana, recordando os meses de frustração que se seguiram. Nos últimos anos, Alexandre fez hidroterapia, terapia ocupacional, terapia da fala e fisioterapia (que ainda faz regularmente). Nestas sessões, “criaram-se laços familiares com a maior parte da equipa de enfermeiros, médicos e fisioterapeutas”, diz a mãe.

Hoje com 19 anos, Alexandre está na universidade, caminha e comunica sem dificuldades. “Não é 100% autónomo, porque ficou com a parte lateral esquerda da visão afetada e ainda há muitas coisas que ele não consegue fazer sozinho”, indica Ana. “Mas, sem a força dele, nada disto teria sido possível. E mesmo para nós, pais, também não seria fácil. Muitas das vezes é ele que nos puxa para cima.”

“A única coisa que ele conseguiu dizer foi ‘mãe, dá-me um abraço’

Henrique Correia sempre foi uma criança muito ativa e o campo de futsal era a sua segunda casa. A dada altura, o treinador disse aos pais que “o campo de futsal era pequeno demais” para ele e foi então que trocou o campo interior por um relvado ao ar livre. “Sempre foi muito recetivo aos desafios. Era um menino que tinha muita garra, e então dentro do campo ele transformava-se", descreve o pai, António Correia, com orgulho.

António recorda 22 de janeiro de 2017 como uma noite bastante tranquila entre pai e filho: “Era um domingo e eu estava sozinho com ele. Ele ajudou-me a fazer o jantar, lavámos a loiça os dois juntos, vimos o jogo do Benfica. Ele estava muito calmo.”

Por volta das 06:30 da manhã, os pais acordaram com a cadela a ladrar e um barulho do quarto do Henrique. “Eu e o meu marido levantámo-nos imediatamente e quando chegámos ao quarto, o Henrique estava no chão. O pai ajudou-o a ir para a cama e ele, sem conseguir falar, só gesticulava a dizer que não se conseguia levantar, não tinha força”, conta Cristina, a mãe do Henrique.

Sem perceber o que estava a acontecer, Cristina contactou o INEM, que enviou uma ambulância para a morada. Depois de observarem a criança, um dos operacionais adiantou aos pais que tudo indicava que o filho tinha acabado de sofrer um AVC. A mãe ficou perplexa. “Achei que só podiam estar a brincar comigo. O meu filho é saudável, é um desportista, ele joga futebol”, lembra-se de dizer aos operacionais.

Já no Centro Hospitalar Tondela-Viseu, Henrique foi submetido a um eletroencefalograma e a uma ressonância magnética, que confirmaram o diagnóstico - um AVC isquémico na parte direita do cérebro, que afetou o lado esquerdo do corpo.

“Quando voltou para o quarto, ele estava muito assustado. Não dizia nada, porque o Henrique é um miúdo muito reservado. A única coisa que ele conseguiu dizer na altura foi ‘mãe, dá-me um abraço’ - e ele que não é nada de beijos nem de abraços”, recorda Cristina.

"Mãe, vamos correr?"

Henrique acabou por ser transferido para o Hospital Pediátrico do CHUC, onde passou a ser acompanhado pelo neurologista Filipe Palavra, que, em declarações à CNN Portugal, recorda que o menino “ficou completamente paralisado de um lado” após o AVC. Tecnicamente, trata-se de uma hemiparesia esquerda, isto é, uma paralisia do lado esquerdo do corpo.

Chegou a ficar numa cadeira de rodas e foram-lhe prescritas terapia da fala (da qual teve alta uma semana depois), terapia ocupacional e fisioterapia. Ao descrever essas sessões, a mãe recorda um momento de perseverança do filho: numa das sessões de fisioterapia, foi desafiado pela fisioterapeuta a caminhar até à enfermaria sem o auxílio da cadeira de rodas, lado a lado com a mãe. 

“Nós tínhamos de passar por um corredor que tinha muito pouco movimento, era só pessoal de enfermagem, e ele às tantas parou no meio do corredor, olhou para trás, não viu ninguém e disse-me: ‘mãe, vamos correr?’.” Perante a insistência do filho, Cristina acedeu ao pedido, ainda que com alguma relutância: “Corremos os dois pelo corredor fora. Ele correu todo desarticulado, porque o lado esquerdo [do corpo] ainda hoje está um pouco afetado, mas ficou muito feliz.”

Foi um episódio feliz entre meses de frustração e lágrimas que teimavam em correr no rosto de um e do outro, apesar do esforço de ambos para as conter, em segredo. “Nos primeiros tempos, eu pensava que ele estava a dormir, mas quando olhava mais atentamente para o rosto dele, via que estavam a cair umas lágrimas. E ele não dizia absolutamente nada”, recorda a mãe. 

Apesar dos momentos de frustração, Cristina e Henrique, longe de casa e dos seus, apoiaram-se mutuamente. O pai e a irmã, Carolina, cinco anos mais velha, ficaram em Viseu, e visitavam-no todas as semanas, quando podiam. Em maio, Henrique recebeu alta do Hospital Pediátrico e voltou para casa. A partir de então, “houve um retrocesso imenso na atitude dele e na recuperação”, conta o pai. “Começou a não querer fazer fisioterapia, começou a conformar-se com a situação.”

"Na escola, fazia os possíveis para os colegas não notarem"

À desmotivação, juntou-se a preocupação e a ansiedade em querer regressar ao campo de futebol. “Era uma fase do campeonato em que ele achava que a equipa precisava dele. Ele sentia que estava em falta com os colegas de equipa. Na escola, fazia os possíveis para os colegas não notarem [as dificuldades motoras], escondendo a mão no bolso, por exemplo”, diz o pai.

Em agosto, no dia do seu aniversário, disse aos pais que queria ir treinar com os colegas de equipa. Chegou a marcar dois golos e os colegas fizeram-lhe “uma grande festa”, recorda Cristina.

“Quando terminou, perguntei-lhe como se sentia, e ele só me disse: ‘mãe, a minha história aqui terminou’.

Hoje com 18 anos, Henrique está a completar o 12.º ano de escolaridade e debate-se agora com as questões que nesta fase assaltam qualquer adolescente: "O que quero fazer no futuro?" Com o futebol fora da equação, o caminho a seguir ainda é incerto, mas há uma certeza: "Ele só não quer é estar atrás de uma secretária", diz a mãe.

Apesar de ainda ter algumas dificuldades em tarefas bimanuais, como comer com faca e garfo, a recuperação do jovem supera as expectativas dos médicos. "O Henrique consegue jogar à bola, o que é uma coisa extraordinária. Em termos funcionais, houve uma melhoria progressiva que hoje em dia lhe permite fazer uma vida muito próxima do que se calhar muitas pessoas não conseguem fazer no seu dia a dia”, descreve Filipe Palavra.

De acordo com o neurologista, esta evolução deve-se, grosso modo, à "plasticidade do cérebro das crianças, que permite uma recuperação muitas vezes surpreendente”.

“Se [este AVC] ocorresse num adulto, eu diria que era virtualmente impossível haver qualquer tipo de reparação. No adulto, sabemos que há uma parte do cérebro que é enfartada e que 'morre' na sequência do AVC. Portanto, deixa de haver função, ou pelo menos a recuperação da função é muito difícil, porque a plasticidade que existe no cérebro de um adulto é inferior à das crianças, e quanto mais velhos somos, pior".

A neurologista Rita Lopes da Silva confirma que "as crianças geralmente recuperam melhor e mais rapidamente" de um AVC. Não obstante, acrescenta, há "sequelas importantes", nomeadamente motoras, cognitivas e comportamentais.

"As crianças e adolescentes que tiveram um AVC podem ter problemas cognitivos que provocam dificuldades de aprendizagem ou emocionais relacionados com a auto-estima, limitações funcionais e dificuldades na participação em atividades desportivas", observa.

Apesar dos progressos, Henrique não gosta de falar do que lhe aconteceu. “Ele nunca fala no AVC, diz sempre ‘quando eu tive aquilo’. Na escola, sempre recusou o apoio do ensino especial. Por exemplo, ele não utiliza o tempo que tem a mais para fazer os testes, sempre recusou isso", conta a mãe. 

A família lamenta que não lhe tenha sido disponibilizado qualquer apoio psicológico durante todo este período, sobretudo para o filho. “Eu acho que se o Henrique tivesse sido logo encaminhado para uma psicóloga no hospital pediátrico, se calhar teria sido um pouco diferente”, diz Cristina.

Um AVC que só foi descoberto meses mais tarde

Miriam Araújo ficou grávida do segundo filho aos 42 anos. A idade levou a que esta fosse considerada uma gravidez de risco, mas "foi uma gravidez normal", sem sobressaltos, recorda a mãe.

Mateus nasceu às 39 semanas de gestação, de um parto por cesariana. "Era um bebé muito pequenino." Cerca de cinco meses depois, Miriam começou a notar um padrão no filho quando lhe ensinava alguns movimentos, como sentar-se. 

"Sempre que eu o colocava sentado, ele caía para o mesmo lado, para o lado esquerdo”, conta a mãe, que na altura decidiu falar com a médica de família sobre isso. Inicialmente, a médica sugeriu que o filho poderia ter um ombro deslocado, mas os resultados de um raio-X depressa eliminaram essa hipótese. 

Entre consultas e especialistas, os meses foram passando e o diagnóstico tardava em chegar. “Quando pediram para ele fazer uma TAC e descobrimos o resultado, ele já tinha 10 meses”, conta Miriam, que lamenta a forma como a sua preocupação foi constantemente desvalorizada por cada médico que passava. “Eu sou muito atenciosa e fui eu que percebi que alguma coisa estava errada. Ninguém me ouvia.”

E os sinais não eram mesmo de desvalorizar: Mateus sofreu um AVC perinatal, que, por definição, pode ocorrer entre as 20 semanas de gestação e os 28 dias de idade pós-natal. O neurologista Filipe Palavra explica que, nestes casos, é frequente “uma alteração da postura e do movimento antes dos cinco anos de idade”, e foi precisamente esse o caso de Mateus.

Quanto às causas, essas podem ser muito variáveis, indica a neurologista Rita Lopes da Silva: “As causas do AVC perinatal são geralmente doenças maternas ou do recém-nascido (ou mesmo do feto), como as doenças hematológicas (risco trombótico ou hemorrágico), doenças infecciosas, metabólicas, cardíacas ou prematuridade.”

Nesta última, “são relativamente frequentes as hemorragias peri-intraventriculares devido à imaturidade dos vasos cerebrais”, sublinha o neurologista Filipe Palavra, explicando de seguida: “Se a criança nasce muito cedo, não consegue adaptar o estado de contratura das paredes arteriais às necessidades hemodinâmicas do cérebro. Portanto, os vasos são muito frágeis e, como consequência, têm tendência a sangrar.”

O "risco moderado" de epilepsia que veio a confirmar-se aos seis anos de idade

No caso de Mateus, não se sabe ao certo que fatores terão provocado o AVC. Miriam conta que tem um histórico de doenças cardíacas na família e admite que esse possa ter sido um fator de risco. Porém, na amniocentese que realizou aos três meses de gestação, “estava tudo bem”, garante.

Conforme Mateus foi crescendo, as dificuldades motoras foram ficando cada vez mais evidentes. Como as lesões ocorreram na parte direita do cérebro, o AVC afetou o lado esquerdo do corpo, nomeadamente a mão e a perna esquerdas.

A criança começou a ser acompanhada pela neurologista Rita Lopes da Silva quando já tinha um ano e dois meses de idade, e foi então que começou a fazer fisioterapia. “Foi tudo muito atrasado”, lamenta Miriam. 

Na altura, conta a mãe, a especialista advertiu que o filho tinha "um risco moderado" de vir a sofrer alguns episódios de epilepsia a partir dos seis anos de idade. À CNN Portugal, Rita Lopes da Silva explica que “as crises epilépticas podem ser uma manifestação clínica do AVC em fase aguda ou surgir mais tarde ao longo da vida, devido a descargas elétricas anómalas de um grupo de neurónios na área da lesão sequelar do AVC.”

Se antes Miriam já era uma mãe preocupada, a partir de então todos os movimentos do filho mereciam uma atenção redobrada. E aos seis anos confirmou-se o seu receio: depois de três dias de febre, o olho de Mateus começou a piscar ininterruptamente - um dos sinais apontados pela neurologista como uma manifestação de uma possível convulsão.

Mateus começou a tomar medicação para a epilepsia nessa altura e há cerca de um ano que já não tem crises epilépticas. Entretanto, foi submetido a uma cirurgia no pé esquerdo, "que entortou", fez sessões de hidroterapia, terapia ocupacional e fisioterapia.

Hoje com 12 anos, Mateus "está bem" e faz tudo o que uma criança da sua idade faz: "Ele anda, brinca, corre - da maneira dele, mas corre." Na escola, o menino "não se acomodou" perante as dificuldades que por vezes enfrenta. "A professora diz que ele é muito atencioso e que quando ele consegue fazer alguma coisa, ele pede ajuda. É uma criança que quer aprender e adapta-se às atividades como pode", conta a mãe.

Mas as crises epilépticas podem voltar a qualquer momento, diz a mãe, recordando o aviso da neurologista de que as crises podem surgir novamente na puberdade.

Tal como a mãe de Henrique, Miriam lamenta que não lhe tenha sido atribuído qualquer apoio psicológico durante este período, onde contou apenas com a ajuda do marido: "Eu parei de trabalhar porque ele [Mateus] fazia terapia cinco dias por semana. (...) Não tive nenhum apoio psicológico, em nenhum momento. Nunca tive uma pessoa que me ajudasse."

Quais os sinais a que os pais devem estar atentos?

Os testemunhos destas famílias mostram como todos os minutos contam para minimizar as lesões cerebrais de um AVC. É importante, por isso, saber identificar os sinais de alerta, nomeadamente assimetria facial (quando o rosto fica assimétrico de forma súbita), falta de força de um lado do corpo, dificuldade em falar, falta de visão súbita ou dor de cabeça muito intensa, sem causa aparente.

A mãe de Alexandre chama a atenção para este último sinal, que pode ser facilmente desvalorizado pelos pais: "Quando há dores de cabeça, visão turva e desequilíbrio, é melhor dirigirem-se ao médico. Se não tivéssemos feito tudo naquele tempo, o desfecho não era este. Ele podia ter ficado com imensas sequelas se os médicos não tivessem drenado o sangue [no cérebro] naquele exato momento", presume Cristina.

A falta de reconhecimento destes sinais pode mesmo comprometer o tratamento e reabilitação do doente, adverte a neurologista Rita Lopes da Silva: "Existe habitualmente um atraso significativo no diagnóstico (por vezes mais de 24h perante um AVC isquémico), devido ao não reconhecimento das manifestações iniciais pela família e profissionais de saúde, e estas serem atribuídas a outras doenças mais comuns nesta faixa etária (enxaqueca, epilepsia e infeções)."

Em relação ao tratamento e reabilitação, estes processos vão depender sempre do tipo e da causa do AVC, como explica o neurologista Filipe Palavra: "Há situações que podem implicar especialidades cirúrgicas. Por exemplo, há doenças genéticas que podem causar enfartes no cérebro e nesses casos é necessário fazer uma cirurgia de revascularização cerebral, ou seja, ligar os vasos no cérebro a vasos extracranianos para aumentar o débito sanguíneo numa determinada zona do hemisfério cerebral que possa estar em carência. É uma coisa que num adulto é muito pouco usual."

O sucesso, nestes casos, traduz-se em "ganhos funcionais de aspetos que eventualmente se julgavam perdidos e que permitem às crianças e adolescentes fazer uma vida mais ou menos funcional", indica o neurologista. "Pelo menos, não impedem de tirar a carta de condução, de exercer um emprego, de fazer exercício físico e de praticar desporto ou de constituir família, e isto é um aspeto importante quando estamos a falar de uma população tão jovem", acrescenta.

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