Pela primeira vez em 87 anos, a Volkswagen admite fechar fábricas e despedir na Alemanha. Neste país vão também ser cortados 2.900 postos de trabalho dos quatro mil que a Ford prevê cortar na Europa até ao final de 2027. A Stellantis, dona da Fiat, suspendeu a produção na fábrica de Mirafiori. Fora do velho continente, a japonesa Nissan admite cortar nove mil empregos após quebras nas vendas. Sinais daquilo a que muitos já chamam uma “tempestade perfeita” no setor automóvel.
Dificuldades na transição para a mobilidade elétrica, aumento da concorrência chinesa e quebras nas vendas ajudam a explicar este cenário. E Portugal, como fica no meio disto tudo? Começamos por aí.
Portugal pode ser afetado?
A resposta é simples e direta: pode. Houve um tempo em que o investimento do setor automóvel em Portugal se explicava também pelos baixos custos salariais. Contudo, os últimos anos têm tirado força a este argumento.
“A progressão que temos tido nos salários não tem acompanhado a produtividade. E isso é um problema para nós”, admite Gonçalo Tomé, vice-presidente da APIP - Associação Portuguesa da Indústria de Plásticos, que integra empresas que produzem componentes para a indústria automóvel.
Mas o contexto também mudou fora de Portugal. Há grupos automóveis a deslocalizar a sua produção para países com custos mais baixos, sobretudo para o leste da Europa. E Portugal, além de não conseguir competir com o ritmo frenético de produção que marca alguma dessas localizações, pode também sair penalizado pela distância.
“Quanto mais as fábricas ficarem mais longe de Portugal, maior é o problema, devido aos custos de transporte”, atesta José Couto, presidente da AFIA - Associação de Fabricantes para a Indústria Automóvel, admitindo mesmo a deslocalização das próprias empresas nacionais.
“Obviamente que vamos sofrer, terá de haver um processo de adaptação”, junta José Couto. Adaptação significa transição para os veículos elétricos, onde Portugal já dá passos, com a produção na fábrica da Stellantis em Mangualde ou da Mitsubishi no Tramagal.
Já no que respeita ao mercado de compra e venda de viaturas, Helder Barata Pedro, secretário-geral da ACAP - Associação Automóvel de Portugal, antecipa que várias marcas chinesas deverão entrar no mercado nacional nos próximos anos, retirando quota às já existentes.
“Em Portugal, apesar de termos um crescimento nas vendas, continuamos com valores pré-pandemia. E isto com um grande crescimento do turismo, com um grande peso do setor do rent-a-car”, refere o responsável, para realçar como as vendas de viaturas em Portugal também representam um sinal de alerta.
De janeiro a outubro, foram vendidos 205.649 veículos, mais 5% do que um ano antes.
Mas há potencial que Portugal pode aproveitar?
Apesar das mudanças na produção a nível europeu, Portugal pode tirar partido desta realidade. Como? Pela sua localização. À proximidade a um centro de referência como Vigo, junta-se a vizinhança a Marrocos.
É que Marrocos tem sido a opção para várias marcas automóveis instalarem fábricas. “Portugal está a produzir peças para Marrocos. E pode distinguir-se pelas peças diferenciadas”, aponta Gonçalo Tomé.
Já José Couto lembra que há um conjunto de automóveis novos em linha para serem lançados, “cujos prazos de lançamento estão atrasados”. “O que interessa é conseguirmos estar nesses projetos. Para isso, temos de manter a competitividade, intensificando o processo de digitalização e a qualificação das nossas pessoas”, diz.
Porque estão os grupos automóveis europeus a deslocalizar a produção?
O motivo é o de sempre: custos de contexto. Nos últimos tempos, subiram todos. Às subidas no preço da energia, juntaram-se os efeitos da inflação, que acabaram por levar a subidas nos salários. Com o conflito no Médio Oriente, houve também rotas marítimas afetadas. “Nenhum desses custos foi refletido aos consumidores em proporção”, garante Gonçalo Tomé.
E isto é relevante porque, explicam os especialistas, este é um setor com “margens baixas e volumes altos”. A produção em grandes quantidades acabava por permitir que, mesmo com margens pequenas, os grupos automóveis conseguiam lucrar muito. Contudo, nos últimos tempos, as vendas também têm estado a seguir uma tendência negativa, sobretudo na Europa.
Outra das formas de baixar custos tem passado pela compra de componentes à China, o que aumenta a dependência europeia face a este país.
Porque é que as vendas de carros estão a cair?
É certo que a entrada dos carros elétricos no mercado não está a ser feito desejado – e no próximo capítulo já vamos perceber porquê. Mas a quebra nas vendas aplica-se também aos veículos movidos a gasóleo ou gasolina. Porquê?
Os últimos anos, com a inflação, não foram fáceis para muitas famílias. E, com a crise, uma das decisões que acaba mais vezes por ser adiada é a de comprar carro.
“Até porque a qualidade das viaturas, que hoje em dia duram mais anos, acabam por adiar a decisão de troca”, explica Gonçalo Tomé. Comprar um carro novo, para muitos, também não parece ser um bom investimento quando há várias cidades a proibir a circulação automóvel. “Mesmo comprando hoje, esse carro amanhã poderá não valer praticamente nada”.
E há também uma questão geracional. José Couto explica que as novas gerações estão a optar cada vez menos por esta forma de mobilidade, privilegiando outras alternativas como os transportes públicos, as aplicações de transportes, as bicicletas ou trotinetes. No outro extremo, a Europa conta com uma população envelhecida, que procura manter as suas viaturas o máximo possível, até pela reticência à parafernália tecnológica que encontram nos carros novos.
Com que força é que estão a cair as vendas na Europa?
O cenário não é nada animador. Depois da pandemia, o mercado automóvel europeu não recuperou os níveis de venda que tinha no passado. Até setembro, a quebra era na ordem dos 6%, incluindo para os elétricos. No mês anterior, as vendas atingiam o menor nível em três anos na União Europeia.
O cenário é particularmente preocupante na Alemanha, em França e em Itália, com quebras a dois dígitos. A ACEA, associação que representa os fabricantes automóveis, já pediu uma “ação urgente” para evitar efeitos ainda mais nefastos.
A indústria automóvel europeia emprega cerca de 14 milhões de pessoas e representa 7% do PIB. Segundo um relatório comunitário, seria necessário um impulso de 800 mil milhões de euros para esta indústria fazer transição verde e reagir à concorrência global.
Porque é que os carros elétricos não se vendem ao ritmo esperado?
Apenas um em cada cinco carros vendidos na União Europeia são elétricos. E como os fabricantes estavam a apostar as fichas todos nesta forma de mobilidade, estão hoje a fabricar menos do que poderiam.
Há vários fatores a explicar a difícil penetração dos elétricos, com destaque para as diferenças nos incentivos entre os diferentes países e a reduzida expansão da rede de postos de carregamento.
Neste segmento, há outro desafio gigantesco: a concorrência chinesa, capaz de fabricar veículos elétricos com um custo cerca de 30% inferior ao da União Europeia. Isto deve-se, além dos custos de energia mais elevados na Europa, ao facto de a China controlar a tecnologia necessária para a produção.
As marcas europeias terão sempre de passar pela China, que é dominante nas baterias. E isso, dizem os especialistas, implica um risco: o de ser a China a definir os preços desta tecnologia. “Só temos 6,5% da quota de mercado”, demonstra José Couto, presidente da AFIA.
Como é que a China está a impactar toda a indústria automóvel?
Ao contrário da Europa, a China segue uma tendência de crescimento. Em setembro, por exemplo, as vendas aumentaram mais de 4%. Os elétricos e híbridos plug-in já representam mais de metade das vendas no país.
Esta evolução tem sido justificada pelos subsídios atribuídos pelo governo de Pequim, incentivando a compra de viaturas elétricas pelos cidadãos. As vendas dos veículos com motores de combustão, um mercado dominado por marcas chinesas na China, está a cair.
Ou seja, as marcas chinesas estão a ganhar terreno dentro de portas, reduzindo aquele que era um mercado importante para as fabricantes europeias. Mas também fora: a China já ultrapassou o Japão como o principal exportador de automóveis, o que também reduz a margem para as marcas europeias se afirmarem.
Sabia que o carro elétrico mais vendido em Portugal a particulares, o Dacia Spring, é produzido na China? Esse lado da produção do outro lado do mundo também gera preocupações no velho continente. É que a China controla também a produção de componentes, usados em veículos finalizados na Europa. E, perante as barreiras às importações chinesas em território comunitário, pode retaliar.
Como pode a China dar a volta às sanções europeias?
Para reagir à concorrência chinesa, que diz ser desleal devido aos subsídios atribuídos por Pequim, a União Europeia vai aplicar tarifas sobre a importação de veículos elétricos fabricados na China.
E há receios de que tal possa significar caminhos alternativos. Nenhum deles bom para a indústria automóvel europeia. O primeiro implicaria retaliação, com Pequim a subir os preços dos componentes que vende para as fabricantes europeias.
O segundo passaria por contornar as regras, instalando unidades fabris de marcas chinesas, como a Geely ou a BYD, em território europeu. Um dos países onde poderia haver abertura a esse movimento é a Hungria.