REPORTAGEM AUTÁRQUICAS || Tocou-se à campainha e abriram-se duas portas: numa, uma tábua de queijos e um copo de vinho; noutra, um café de manhã cedo e contas feitas a lápis. À mesa, um antigo campeão de bicicleta fala da cidade pelo corpo — “a batalha luta-se até ao fim”; no balcão, um militar reformado descreve como se ganha com 1.200 euros e um hino que “deixou as pessoas completamente loucas”. Percebe-se que algo se moveu. O porquê e o como contam-se a seguir, devagar, à medida que Viseu reaprende a respirar
Viseu (CNN Autárquicas 2025) - Em Viseu, a noite autárquica ensinou a respirar devagar.
As projeções teimaram no empate técnico, a contagem provou que estariam certas, foi demorada, decidida à décima, foi oscilante, no fim só 798 votos separavam vencedor de vencido, e a vitória socialista só acabaria decidida nos detalhes. Um detalhe. A maior freguesia do concelho quanto a votantes, Viseu, em que o antigo ciclista, e campeão nacional de estrada quando jovem, Nuno Bico, de 31 anos, sem passado que dissesse partidário, aparelho ou socialista, venceu e fez a vitória inteira pender para o lado do PS. Esta reportagem começará, pois, na casa de Nuno.
É noite e é casa, casa mesmo, não gabinete. A sala está acesa com lâmpadas quentes, há um bater de unhas no soalho, cadência de cadela que faz círculos, e uma tábua de queijos ao centro, ao lado de um vinho que desce bem. O gravador fica pousado, não impõe. Noutras circunstâncias, um repórter não aceita. Com políticos, não. Aqui aceitei. O gesto não é de protocolo, não vem embrulhado em cartão da Câmara, é doméstico, quase de vizinhança. Nuno não chega de fato, chega de cidade. A ingenuidade do gesto — e a franqueza com que diz “podemos comer enquanto fazemos?” — desarma. Bebo um pouco. Ouço mais.
A pergunta primeira é a do caminho. “Tem de haver sempre o convite, não é? Porque todos sabemos que, se não estás no meio — ainda por cima para um cargo de presidente da maior junta do concelho —, se não for um convite a abrir a porta, o resto não aconteceria.” E, a seguir, fala da cidade como quem fala do corpo. “Sempre fui um grande apaixonado por Viseu, sempre. Viajei imenso graças ao ciclismo, tive a sorte de ter ‘nascido’ ciclista e de ter sido muito bom no que fazia. Ao viajar pela Europa, América do Norte, alguma Ásia e Oceânia, eu notava que Viseu não estava muito atrás em termos de recursos, estava só atrás em converter os recursos e em comunicá-los para o exterior.”
Peço-lhe que me desenhe esses recursos e ele dá-me estrada. “Viseu tem, se calhar, um dos melhores territórios a nível nacional para se andar de bicicleta. Passas cinco minutos e estás no meio do campo sem carros. Não falo de nacionais, falo de secundárias com zero risco, asfalto ótimo, paisagens lindíssimas.” Fala da ecopista — “foi construída na antiga linha de comboio, o terreno é tipo tartan, como na pista de atletismo” — e de como “o mais usado são os primeiros cinco, dez quilómetros, mas a parte mais bonita é a partir daí.” E alarga o mapa: “Precisamos de turismo associado ao desporto. Temos um grande potencial de natureza que nunca foi explorado, nunca foi cativado.”
A avaliação é técnica: a cidade soube fazer obra, falhou na segunda metade da frase. “O grande erro está na transição entre a obra e a comunicação.” Nuno faz a comparação que muitos em Viseu repetem. “O Almeida Henriques, que também era social-democrata como Fernando Ruas, entendeu que Viseu já tinha essa parte, por isso, o que precisava era levar Viseu para o mundo. Com o Fernando Ruas continuamos na parte do presidente-empreiteiro, que era preciso nos anos 80, mas agora não. Agora o que falta é que o mundo venha até nós.” O diagnóstico tem dois verbos. Vender e comunicar. “O presidente da Câmara tem de ser o melhor comercial da cidade — não pode estar trancado em quatro paredes — e tem de haver estratégia de comunicação. Viseu não pode achar que, para ter turismo, tem de ter praia e mar.”
Antes de chegar à política, chegou-lhe a medicina do corpo. “Detetaram-me uma malformação que faz com que eu não tenha o mesmo fluxo sanguíneo nas duas pernas. Numa vida normal, isso tem zero influências. Em alta intensidade, uma perna está normal e a outra está a tremer por todo o lado.” O ciclismo profissional ficou em 2019. “Voltei a estudar. Voltar a ser estudante, ir a casa dos pais ao fim de semana, sair à noite.” Coincidiu com a pandemia. A cidade ficou em pausa e Nuno ficou com uma memória de movimento que nunca mais viu. “Esse período de Viseu — 2015 a 2018 — nunca veio em 2022, 23, 24 e 25.”
Abre a janela à noite de 2011, quando a cidade parecia ausente. “O Mercado 2 de Maio, a Sé… e ninguém na rua a um sábado. Frio, humidade, esplanadas vazias.” Este janeiro, já com o convite no bolso, voltou à Sé e viu a mesma ausência. “Essa noite deu-me o clique. ‘Eu acho que vou aceitar o convite.’ Se alguém gosta de Viseu, tem de fazer este ‘sacrifício’. Não pode estar sempre à espera que seja o outro a fazer.” Traz uma frase espanhola para arrumar o gesto — aprendeu-a no pelotão, em quartos partilhados com castelhanos. “No me mejores, iguálame.” Em vez de apontar, fazer.
O que o moveu foi também a sensação de cidade presa a um costume. “A vitória do PSD na cidade era normalizada. Ouvíamos: ‘eu vou votar em vocês, mas vai ganhar o PSD’. As pessoas achavam que havia uma força superior à vontade do povo.” E foi o medo — não metafórico — de quem depende do poder. “A quantidade de pessoas com medo de falar, de se mostrar, por receio de repercussões, porque o poder está do mesmo lado há muito tempo.” Ao montar a lista, procurou “gente competente” e ouviu recusas. “‘Não posso pôr a cara, o meu pai está na Câmara por concurso público… tenho medo que seja alvo de vingança.’ Ouvi isto.” Não dramatiza, anota; e assinala a diferença que quis construir: “A competência das pessoas foi o fator. Gente sem vício partidário.”
A campanha foi um duplo terreno: rua e ecrã. “Caminhávamos, em média, entre 15 e 20 quilómetros por dia. E, no digital, uma campanha de alguém com 31 anos tem de ter peso gigante. Um vídeo na hora certa não tem limites.” Diz isto com naturalidade, sem teoremas de comunicação. O ciclismo serve-lhe de gramática. “Num pelotão correm 200 ciclistas: há um que ganha, há 199 que perdem. Ensina-te a humildade da derrota e a trabalhar em prol da equipa.” E acrescenta um aviso aos candidatos que entram já derrotados. “Houve candidaturas que partiam derrotadas. Nós não.”
A noite eleitoral traduziu-se em números a pingar pelo telemóvel. “Com os delegados que temos em cada mesa, estamos a receber em direto as contagens. Tínhamos um Excel. Por volta das nove tínhamos Viseu fechado e ganhámos Assembleia de Freguesia, Assembleia Municipal e Câmara Municipal.” Ao mesmo tempo, chegavam notícias “de Repeses e São Salvador e de Rio de Loba”. “Estávamos à frente também.” O empate técnico das projeções derreteu no fim; a respiração da noite desacelerou. O detalhe tinha corpo.
Há imagens que valem por um parágrafo. À saída de casa, encontro uma folha A4 com fita-cola: uma criança deixara colado à porta, no fim da noite da vitória, um pedido de relva à entrada do prédio. Notas de bairro para quem vai governar a proximidade. Uns dias mais tarde, pela hora de almoço, o presidente recém-eleito fez uma ronda curta. “A sede do PSD é aqui a dois passos; fui até lá passear a cadela.” Ao longe, viu como estavam os derrotados. “O homem estava a chorar. Um homem daqueles, assim todo cheio de pose, a chorar. E deu-me os parabéns.” O “homem” é Fernando Ruas. A cena não precisa de adjetivos.
Falo-lhe do depois, do peso do cargo, da responsabilidade que se cola. Nuno sorri com um alívio estranho. “Era muito pior quando sabíamos que tínhamos uma montanha. A pressão para entrar na montanha é mil vezes pior do que a que sinto agora. Medo? Medo tinha nas corridas. No pelotão vai-se às turras, aos empurrões — e cair a 70 quilómetros por hora era matar-me.” Há método na transição. “Haverá uma pasta de transição, sim. Porque eu não sou um político. Já estamos a ter formação. Tenho uma equipa com experiência e altamente competente dentro das áreas profissionais de cada um.” E há uma ideia concreta de cidade, aprendida na bicicleta. “O viseense tem um hábito forte de sair de carro de casa e estacionar à porta — nem que seja para ir ao café. A solução para tirar carros tem de ser oferecer alternativas: transporte público, bicicletas públicas com regras, segurança para quem pedala.” A cidade das rotundas, defende, precisa de revisão fina. “Com a afluência de carros que há agora, quando o critério humano decide quem entra e quem trava, as rotundas deixaram de desempenhar tão bem a função. Fazem-se ‘rotundas à Viseu’ e depois, olha, batem. É repensar como controlar o fluxo, combinado com rotundas. E pedalar mais onde a orografia ajuda.” Fecha com um gesto simples: “A minha ideia é ir para a Junta a pé.”
Volto à mesa. O queijo desapareceu rápido, a cadela lambuzou-se nas aparas, o vinho desceu menos do que prometia. A conversa deu a volta à cidade — natureza, cultura, economia, juventude, medo, decisão. Nuno volta ao voto jovem na freguesia central: “Esse voto surpreendeu quem estava à espera da vitória.” E à razão que o pôs em pista: “A batalha tem de ser lutada até ao fim, independentemente do desfecho.” Fecho o gravador. Viseu estende-se lá em baixo e, esta noite, respira sem esforço.
De manhã, Fragosela levanta as persianas. No café do centro, o bater das chávenas puxa conversa de vizinhos. José da Silva chega com a disciplina que não se desaprende, pontualidade e compostura. “Fui sargento-mor. Foram 30 anos no Exército. Onde? Viseu, Lisboa, Póvoa, Mafra. Muito sítio.” Entrou na reserva aos 52, plantou-se numa quinta de vinha e olival — “é um trabalho mais livre” — e somou dois mandatos, os últimos dois, a guardar o cofre da freguesia. “No primeiro e no segundo mandato fui tesoureiro.” Ia despedir-se. Ficou. “Havia um dever moral.” É por isso que estamos aqui: porque José, que fora tesoureiro eleito pelo PSD, decidiu desta vez avançar por fora do partido, e para ser o presidente, no movimento Todos Fragosela. E ganhou a Junta de Freguesia.
A pergunta é simples: como é que um movimento de cidadãos — sem aparelho e sem dinheiro — ganha onde a política costuma ter raízes? José responde sem adornos. “A ideia surgiu há meio ano. Um grupo de cidadãos-eleitores reuniu-se e achou por bem mudar o rumo dos acontecimentos.” Tinha uma frase que se cola às paredes da freguesia: “Fragosela merecia mais.” E um método de proximidade. “Apostámos fortemente no porta-a-porta. Primeiro a divulgar o meu nome de candidato, depois a entregar o programa.” Não havia fundos escondidos nem máquina invisível. “Não ultrapassámos 1.200 euros. Tivemos só um outdoor. E não recebemos reembolso.” Havia, sim, redes sociais — tratadas por gente da lista — e um hino que pegou de estalo. E um hino com algo de inteligência artificial, a fadistar em crescendo épico de sintetizadores, que diz ao que vem: “A alternativa é clara, a alternativa é transparente — é Fragosela sempre independente.” “Ganhei ali muitos votos. A criação de um hino deixou as pessoas completamente loucas.”
A campanha também se viu no dia seguinte. “Na quarta-feira a seguir às eleições fizemos a limpeza. Retirámos tudo. Também era só o outdoor. Mas retirámos. Por uma questão de limpeza.” Não havia obrigação, havia exemplo. “Os outros retiraram a seguir.” O resto fez-se com muita conversa à soleira. “As pessoas diziam muito: tem que se mudar.” Não era grito, era cansaço.
A lista espelha a freguesia: idades, ofícios, uma ideia de passagem de testemunho. “Os três do Executivo? Eu, não é? Uma professora. E um terceiro elemento já aposentado, que trabalhava na Câmara. Jovens não há muitos, porque também não há jovens por aí além. Mas inserimos jovens na lista para criarmos uma assembleia de freguesia jovem. Reunirão uns dias antes e apresentarão projetos e ideias.” A política, aqui, é pedagógica por necessidade.
A noite eleitoral foi curta em contagem e larga em carros. “Fomos acompanhando à medida que cada mesa fechava. No fim, cada mesa dava os resultados, que depois seguiam para a Câmara.” Quando perceberam que estava ganho, a festa fez-se à antiga: “Juntámos cerca de 50 carros, fomos em caravana. Se cada carro tiver duas ou três pessoas, veja bem esta festa.” Os adversários cumprimentaram: “Bem ou mal, isto é política.”
Quando fala de dinheiro, José regressa ao RI14 quase por reflexo. “Rigor e transparência. Sempre rigor e transparência. O dinheiro público tem de ser muito bem gerido. Fui muitos anos tesoureiro do Regimento de Infantaria 14, sei como é que isso se faz.” Depois, enumera o que quer fazer — sem floreio: “Continuar a apoiar as associações de proximidade. Temos duas. Uma para os idosos — Centro de Dia e Apoio Domiciliário —; outra de carácter desportivo — tiro com arco, com campeões do mundo, a disputar o nacional. Tudo isso precisa de fundos.” E dá a tónica que faltava à freguesia: “Ah, e a criação de um grupo de teatro. Trazer vida à freguesia.”
A política local vive da linha fina entre o vizinho e o presidente. José escreve essa linha no programa. “É ‘Todos Fragosela’. Todos. Não há os amigos e os outros.” E explica-a na prática. “Se for necessário intervir, a gente vai. Priorizar onde há mais necessidade. Não vou deixar de intervir só por ser meu amigo, mas também não vou intervir por ser meu amigo.” É a gramática simples do poder de perto.
Falo-lhe de modas nacionais, de votos de protesto, da inevitabilidade de certos resultados. José não filosofa, descreve. “No poder local, o voto de revolta já não é a mesma coisa. O Chega não irá alcançar bons resultados. A verdade é que não alcançou. As pessoas aqui votam na pessoa.” A frase não é teoria, é prática de freguesia. O que pesa é o reconhecimento, a proximidade. Quem volta no dia seguinte para resolver, a utilidade provada. Menos bandeira, mais rosto. É isso que decide.
Volto atrás no tempo e pergunto-lhe se isto — encabeçar uma lista, ganhar — alguma vez lhe passara pela cabeça. “Eu era para sair. Oito anos chega e basta.” A ideia de fechar o ciclo estava tomada, mas ficou. “Muita gente disse que, pela experiência e pela carreira, era importante dar continuidade.” Teve convites antigos para liderar listas partidárias, recusou. Agora aceitou, aos 63, com a casa arrumada: “A filha é enfermeira no Hospital de Viseu e o filho está no 4.º ano de Medicina.” A mulher é professora; a quinta de vinha e olival espera por tempo que deixará de existir. “Mas a família nunca me desmotivou. Estiveram sempre na linha da frente.” O objetivo, diz, é simples e difícil ao mesmo tempo: “Não defraudar expectativas. Votaram a acreditar no nosso projeto. Cumprir aquilo que prometemos.” Daqui para a frente é orçamento e paciência.
Saímos do café, atravessamos a estrada, passamos pelo “campo da bola”, damos a volta à Junta. O banco é a tribuna possível. A política, aqui, está a uma distância de banco de jardim — e essa é a sua força e o seu risco. Pergunto se podemos fotografar ali. Pede-me uns minutos, faz um telefonema, em voz baixa. “O homem está aí? Não?” Não está. Podemos. “O homem” é o presidente derrotado, aquele de quem José foi tesoureiro durante oito anos. Há qualquer coisa de cortesia nisto — uma delicadeza de quartel e de aldeia: antes de ocupar o banco, pede-se licença.
Houve um tempo inaugural em que o CDS mandou no arranque da democracia. Depois, Viseu foi-se fazendo quase toda de PSD, muitas vezes com Fernando Ruas no centro do palco — nunca perdera uma eleição, só se ausentara quando a lei o mandou descansar. Daí nasceu a alcunha preguiçosa, repetida de mesa em mesa, de “Cavaquistão”. Em 2025, no mesmo país em que o PS perde as autárquicas, Viseu desafina da pauta: a noite começa em empate obstinado, arrasta-se, e a decisão vai-se fazendo no detalhe. Quando a maior freguesia pende para os socialistas, o desenho muda de vez — e a cidade, devagar, inclina 798 votos.
A explicação não mora num único lugar. Está numa casa onde uma tábua de queijos e um vinho aberto desarmam protocolos, e onde um antigo campeão de bicicleta lê a cidade pelo corpo e aceita aprender a governar com a humildade da estrada; está num café madrugador e num banco diante da Junta, onde um militar reformado levanta um movimento com 1.200 euros, um hino de refrão pegadiço e um único outdoor que, na quarta-feira seguinte, foi o primeiro a sair. Está numa folha A4 que uma criança deixou colada à porta a pedir relva, está num passeio de cadela até à sede do PSD, onde a derrota se mede em lágrimas discretas e num “parabéns” dito de frente. Está no voto que pesa mais o rosto do que a bandeira, como tantas vezes no poder local. Está no cansaço de quem viu obra sem convocatória e quer agora quem convoque. Está, enfim, numa cidade que reaprende a respirar.
Não há moral a puxar pela camisa do leitor. Há imagens. A porta que se encosta depois de uma conversa longa; o café que volta ao chiar das chávenas. Entre uma e outra, Viseu muda de mãos não porque um dinossauro se extinguiu, mas porque do outro lado houve quem pedisse a vez — com pernas treinadas e com disciplina de quartel, com mais ou com menos partidos. O resto tem outro nome: democracia.