O incrível caso da vitória autárquica que deitou abaixo o Governo (e a outra vez em que as eleições locais derrubaram o PM)

15 set, 07:00

O que têm em comum as eleições autárquicas de 1982 e de 2001? Ambas fizeram cair governos. Um mais frágil do que o outro, mas ambos levados pela leitura nacional dos resultados locais. Num dos casos, até foi uma bela vitória, o que tornou tudo mais bizarro

As eleições autárquicas têm uma caraterística única na nossa democracia: servem para eleger os governos e assembleias municipais, mas também podem deitar abaixo o Governo da República. É um poder que não está escrito nas leis, nem era intenção de quem as escreveu, mas que se viu acontecer por duas vezes ao longo da nossa democracia. Em períodos históricos e em circunstâncias políticas muito diversas. Mas em ambos os casos com o mesmo efeito: demissão do Governo e marcação de eleições antecipadas.

A primeira vez que as autárquicas deitaram um Governo abaixo foi em 1982, ainda o regime dava passos de bebé, e governava a AD, a coligação que levou o centro-direita ao poder pela primeira vez após a Revolução.

O estrondo com que a Aliança Democrática venceu as eleições em 1979, unindo PSD, CDS, PPM e o movimento dos Renovadores (quase todos vindos de uma cisão do PS), foi o mesmo estrondo com que a AD implodiu, três anos depois, na sequência de umas autárquicas.

A ironia da história é que a AD, que reforçou o seu poder em 1980, numas legislativas que lhe deram maioria absoluta, não perdeu as autárquicas. Pelo contrário, foi o claro vencedor dessas eleições. Somando as câmaras conquistadas pela coligação àquelas onde o vencedor foi um dos seus partidos integrantes (PSD e CDS tinham peso local e até o PPM tinha na época uma autarquia em nome próprio), a AD conseguiu uma clara maioria das presidências de câmara: 165 contra 83 do PS, o segundo partido autárquico. Em percentagem de votos, a vantagem da AD era igualmente assinalável: em coligação ou em candidaturas monocolores os três partidos do Governo chegaram aos 42,4%; o PS ficou-se pelos 31%. Caiu o Governo da AD.

Como foi possível?

E coloca-se a pergunta óbvia: como é possível que uma vitória tenha as consequências de uma derrota? Para perceber isso é preciso contexto.

A AD de 1982 estava a milhas da de 1979 ou 1980. A milhas… para baixo. Para começo de conversa, tinha perdido de forma trágica, em Camarate, as suas figuras de referência – Francisco Sá Carneiro, líder do PSD e da coligação, e primeiro-ministro; e Adelino Amaro da Costa, número dois do CDS, mas seu ideólogo de facto, e ministro da Defesa.

A situação no CDS foi simples de resolver, pois o presidente do partido era e continuou a ser Freitas do Amaral. No PSD foi mais complexo, mas a escolha acabou por recair sobre Francisco Pinto Balsemão, um dos três fundadores do PPD (os outros dois foram Sá Carneiro e Magalhães Mota, mas este não contava para o campeonato pois já se tinha desfiliado do partido).

Com a autoridade de ser fundador e, também, membro do Governo, Balsemão era, de certa forma, a escolha óbvia para assumir os cargos de Sá Carneiro no partido e no Governo. “De certa forma”, pois havia várias correntes de pensamento sobre esse assunto. No PSD, começava a esboçar-se aquilo que viria a ser o cavaquismo, havendo quem defendesse que deveria ser Cavaco (ministro das Finanças demissionário) a tomar as rédeas. E no CDS, Freitas do Amaral tinha a clara ambição de chefiar o Executivo, embora não fosse o líder do maior partido. Freitas era o segundo rosto da AD, e nunca engoliu a ideia de que esta devia ser necessariamente liderada por um social-democrata.

Para encurtar uma história longa, como dizem os ingleses, seguiram-se tempos interessantes, como diz a praga chinesa. Balsemão não teve um único dia de sossego nem no PSD nem no Governo. Os laranjinhas dedicavam-se com afinco ao seu desporto favorito: espetar facas nas costas uns dos outros. A coisa foi tal que Balsemão teve de se demitir e fazer um congresso, que o reconfirmou como líder, mas não o livrou dos sarilhos partidários. 

Numa tentativa de estancar a intriga, foi ao seu próprio jornal (o Expresso) buscar o diretor (um tal Marcelo Rebelo de Sousa) para integrar o Governo. Única diferença perceptível: Marcelo, que antes intrigava contra Balsemão fora do Governo, passou a intrigar dentro…

Quando se demitiu para voltar mais forte, Balsemão conseguiu outro ganho importante: convenceu Freitas do Amaral a ser ministro. Havia esse detalhe: a birra de Freitas por não ter sido escolhido para chefiar o Governo foi tal, que se recusou a integrá-lo. Ou seja, o lider do segundo maior partido da coligação estava fora do Executivo. Sim, é estranho hoje e era estranho na altura. Era, literalmente, ter um pé dentro e um pé fora. 

Era ler para crer. “O povo português cada vez vai identificando mais o Governo com o CDS, porque sabe que tem correspondido àquilo que o povo português dele espera”, disse o líder centrista no verão de 1982. Basílio Horta, “vice” do CDS, contribuiu para a festa dizendo que Freitas “não deverá ser eternamente o segundo da AD”. No estio de 1982 era demasiado evidente que Freitas do Amaral iria bater com a porta ao primeiro pretexto. Esse pretexto foram as eleições autárquicas.

O escorpião ataca de novo

As mesmas eleições que Balsemão via como a sua tábua de salvação. Não era um desafio fácil, tendo em conta a sucessão de casos em que o Governo disparava sobre os próprios pés, mas o PSD era o maior partido autárquico, o CDS também valia umas dezenas de câmaras, e tudo pesado a vitória nas eleições de dezembro podia ser um balão de oxigénio para o Governo. E foi. Só que Freitas tratou de sugar o oxigénio todo da sala.

Antes desse desfecho, um daqueles detalhes em que a biografia de Marcelo Rebelo de Sousa é pródiga. Na quinta-feira, a três dias do ato eleitoral, Marcelo teve uma urgência súbita de falar com o primeiro-ministro. Foi à Residência Oficial e comunicou-lhe que se demitia do cargo de ministro para os Assuntos Parlamentares. Assim, à bica de eleições. Balsemão não queria acreditar. Estava à beira de um teste de vida ou morte e Marcelo espetava-lhe o ferrão. O PM tentou demovê-lo, mas não conseguiu. Chegaram a um acordo de cavalheiros: Marcelo podia sair, mas isso só se saberia no domingo, após as autárquicas. Acordo feito. No dia seguinte, sem surpresa, a demissão de Marcelo estava em todos os jornais.

O dobro das câmaras: “um desaire”

Na hora de contar os votos, como vimos acima, os partidos do Governo tinham o dobro das câmaras do PS. E ficaram 11 pontos percentuais à frente dos socialistas. Se isto não é uma vitória, o que é uma vitória? Vai daí Balsemão declarou vitória. “42,5% é muito bom em eleições autárquicas”, afirmou o primeiro-ministro e líder do PSD. 

O Diário de Lisboa noticiava no dia a seguir às eleições os resultados provisórios das autárquicas. 

“Não foi uma vitória nem uma derrota, mas um desaire eleitoral, porque o conjunto dos partidos da AD teve bastante menos votos agora do que a AD teve em 1979 ou em 1980”, respondeu o vice-primeiro-ministro e líder do CDS. Freitas nem tentou esconder a arma, que fumegava.

Para garantir que a noite eleitoral lhe correria de feição (ou seja, que corria mal à AD), Freitas tinha previamente elaborado umas estranhas fasquias para a leitura dos resultados. Era assim: menos de 40% seria “uma derrota clamorosa”; acima de 43% seria “uma vitória clara”; e ficar na zona cinzenta entre os 40% e os 43% seria “um desaire eleitoral”. Saiu desaire eleitoral.

O Governo Balsemão sobreviveu mais uns meses, mas estava ferido de morte. Não pelo resultado autárquico, mas pela leitura que o CDS lhe quis dar.

Um mês depois das eleições, o Diário de Lisboa dava conta de que a AD tinha chegado ao fim.

Um queijo fedorento demais

Ao contrário das autárquicas de 1982, as de 2001 não deram uma vitória ao Governo. Pelo contrário, foram uma pesada derrota para o PS e para o Executivo de António Guterres. Mas convém pôr as coisas em contexto: partidos do Governo que perdem autárquicas ou eleições europeias é tão banal como chover no inverno. São aquelas eleições em que, muitas vezes, os eleitores aproveitam para mostrar um cartão amarelo a quem governa, sem o risco de terem de ir a eleições legislativas. Um voto de protesto ainda mais comum quando essas eleições calham mais ou menos a meio do mandato governamental. Já tinha acontecido, por exemplo, com Cavaco. Apesar das suas confortáveis maiorias absolutas, perdeu sempre as autárquicas e as europeias para o PS. Daí não veio mal ao Governo. Cavaco enxotou a caspa do ombro do casaco e seguiu em frente. 

Ficava o aviso, e pronto. Até porque todos os políticos repetem (sobretudo se são governo) que cada eleição local é determinada por razões locais, e é abusivo retirar conclusões nacionais de 305 eleições diferentes.

Mas no caso de Guterres, nem foi preciso a oposição ou a comunicação social insistir na leitura nacional das autárquicas de 2001. O primeiro-ministro foi o primeiro a fazê-la: via um eleitorado farto do PS, farto do primeiro-ministro e uma maioria quase absoluta que a cada orçamento tinha de vender a alma ao diabo para conseguir manter-se em funções.

O Orçamento aprovado pouco antes dessas autárquicas revelara-se um dos processos mais degradantes da nossa história democrática (pelo menos, até à data em que são escritas estas linhas… a história continua e promete muito no que respeita a degradação). Foi o chamado Orçamento Limiano, em que o Governo socialista comprou literalmente o voto de um deputado do CDS, à conta de um queijo industrial sem denominação de origem protegida nem ponta por onde se lhe pegue. Daniel Campelo, que alternava papéis entre edil de Ponte de Lima e deputado eleito por Viana do Castelo, lutou até à greve de fome pelo queijo da sua terra, cuja produção tinha sido deslocalizada, e no fim conseguiu um orçamento feito à medida que dava benesses várias à orgulhosa municipalidade de Ponte de Lima. Ninguém se lembra de quais eram, mas ninguém se esquece que foi um dos primeiros momentos em que José Sócrates mostrou a sua genialidade, afundando o Governo no descrédito generalizado.

Aquele cheirinho a pântano

Vieram as autárquicas, e o cartão amarelo saiu vermelho. O PS perdeu em toda a linha, em 308 câmaras, ficou à frente de 113, perdendo 14. O PSD sozinho arrebanhou 142 autarquias; somando as coligações com o CDS e/ou o PPM, o número subiu para 158. Como se não bastasse a quantidade, havia uma questão de qualidade: o PS manteve câmaras médias ou pequenas, o PSD “limpou” algumas das maiores autarquias do país e várias capitais de distrito: Lisboa, Porto, Sintra, Faro, Setúbal e Portalegre. 

A medida da vitória do PSD era a mesma da derrota do PS. Guterres podia ter continuado a governar, dizer que tinha entendido a mensagem do eleitorado, fazer uma remodelação, enfim, o habitual. Em vez disso demitiu-se para não prolongar o que considerava ser uma situação de “pântano político”. A demissão de Guterres, inesperada até pelos seus mais próximos, lançou o PS numa crise interna, e deu uma vida extra… ao CDS de Paulo Portas. O resultado autárquico dos centristas fora o pior da sua história e o próprio líder do partido, que se tinha candidatado em Lisboa, era um vereador inútil, pois Santana Lopes tinha conseguido uma maioria absoluta para o PSD. Portas ia anunciar a sua demissão… mas Guterres antecipou-se.

Na segunda-feira a seguir às eleições, o jornal Público mostrava a rosa socialista a desfazer-se.

Uns meses depois, Portas era ministro da Defesa do Governo de Durão Barroso. Uns anos depois, Guterres era secretário-geral da ONU. Tudo graças a umas autárquicas. As ditas “eleições locais”.

Adenda

Não sendo a mesma coisa, as autárquicas levaram, muitas vezes, à demissão de líderes partidários que se afirmavam de pedra e cal. O caso mais recente e, também, mais notório, é o de Pedro Passos Coelho, que se manteve firme na liderança do PSD depois de ter sido afastado do Governo pela “geringonça”. Tecnicamente Passos tinha vencido as legislativas de 2015, com a coligação PaF a recolher mais votos do que a segunda força política, o PS. A história, a seguir, é conhecida. 

As autárquicas de 2017 seriam o teste do algodão: a leitura nacional a fazer, por parte do PSD, era se os eleitores quereriam manter Passos como líder da oposição, ou se achavam que era hora de o PSD mudar de rosto (o CDS já o tinha feito). Passos recusou sempre essa leitura, garantindo que nada abalaria a sua presidência do partido. Depois vieram os resultados. O PSD encolheu como nunca: sozinho ou em coligação teve apenas 98 presidências de câmara; o PS teve 159. Em percentagem, os 38% do PS esmagavam os 16% do PSD sozinho e os 29% quando somávamos todas as geometrias variáveis em que o PSD se apresentou. Pior: o voto do PSD era rural, enquanto o PS dominava as áreas urbanas. Derrotado, Passos fez o que prometeu que não faria e demitiu-se.

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