REPORTAGEM AUTÁRQUICAS || Fui a Baleizão para perceber porque é que aqui o PCP continua a ganhar — entre a memória de Catarina e o serviço miúdo — e a Beja para entender como é que o PSD tomou a cidade e o Chega não. Na junta, Maria João resume: “Não me sinto política; escuto e resolvo.” À noite, num hotel, Vítor garante: “A mudança começou há dois, três anos.” Entre protesto e proximidade, imigração à vista e jovens a citar Passos, o mapa mexeu — mas não todo
Beja (CNN Autárquicas 2025) - Cheguei a Baleizão quando o sol ainda escorria pelas paredes brancas como se tivesse pressa de agosto.
Mas é outubro no Alentejo e outubro no Alentejo é isto, mangas curtas tardias, a sombra disputada, um silêncio que tanto pode ser preguiça como paciência. A sede da junta fica de frente para a estrada principal que rasga a freguesia a direito, passa um trator lá ao fundo, o motor diz que o campo continua a mandar, e passa também um camião que deixa a poeira a pairar por segundos, o suficiente para nos lembrar que aqui se vive sem pressa e com trabalho. À porta da junta, junto ao letreiro gasto e ao corrimão quente, espero por Maria João Brissos. A rua é o gabinete: gente que passa, um aceno, dois recados, o som de um telemóvel que não dá descanso. Há quem diga que isto é uma aldeia de símbolos, a palavra aflora nos murais e nos nomes, mas antes dos símbolos há a prática, o dia a dia, o telefonema que toca, a senhora que vem pedir ajuda, o recado que fica entre o café e a papelaria. Tudo contado ao ritmo de passos trocados numa rua onde não se cruzam muitos, nem locais nem os imigrantes que a agricultura trouxe para aqui e para as herdades em volta, olivais e outras explorações que mudaram a paisagem, linhas de árvores novas a rasgar a planície, casas antigas a ganharem línguas de conversa noutros idiomas.
Vim porque Beja virou. O PSD empurrou o PS para fora da câmara, o PS que antes tinha desalojado o PCP, e a cidade que sempre se pensou mais à esquerda escolheu agora um caminho. Vim porque na cidade se mudou de cor, mas em Baleizão o comunismo não desarma. Continua a ganhar como quem continua a existir. A minha pergunta é simples e cabe na soleira: porquê. O que sustenta essa vitória repetida. O que explica que nesta freguesia o voto tenha memória e presente. O que é ser comunista quando o discurso nacional se ferra nas esquinas do imediato e nas frases fáceis.
Maria João Brissos chega sem cerimónias e com aquele sorriso de quem aprendeu que ouvir é primeiro mandamento e que o resto se resolve com tempo. "Eu sou de Baleizão, sempre fui", conta, ajeitando o cabelo para trás, "os meus pais estiveram em Lisboa uns anos, voltámos quando eu tinha três, e eu fiquei. Trabalho num lar desde 2008 e a junta foi entrando na minha vida cedo. Isto não é um cargo, é a minha gente." Formou-se em animação sociocultural e trabalha num lar, é esse o emprego que paga contas e dá um nome aos dias, a presidência ocupa meio tempo que vale por inteiro, a freguesia é feita de urgências pequenas que chegam a toda a hora, a casa é uma extensão do balcão da junta, o telemóvel é um posto de atendimento. "O telefone toca a qualquer hora", sorri. "Não tenho telefone da junta. É o meu. Ir ao café com as minhas filhas é estar em serviço. Há uma rutura de água, um candeeiro apagado, uma pessoa com uma dificuldade. Chega tudo a nós. E eu quero que chegue."
Quando falo em política, fecha logo o perímetro, não gosta da palavra como rótulo, prefere a ideia de servir. "Eu não me sinto política", avisa. "Sinto-me alguém que gosta da freguesia e se levanta a pensar o que é que pode fazer. A pandemia ensinou-nos muito: levámos comida, recolhemos lixo, fizemos de ponte. Hoje a junta é mais social que administrativa. O papel não chega. Temos de estar — e muitas vezes o tempo não chega." Olha a estrada em frente, aponta as casas que voltaram a acender janelas, casais de Lisboa e do Algarve que procuram a calma. "Não são só fins de semana", sublinha. "Há casas que estavam fechadas há anos e agora estão a ser reabilitadas. Gente a fixar-se. A tranquilidade pesa."
A pergunta sobre o resultado pousa mesmo ali, 50,21 por cento, CDU em Baleizão, 242 votos num universo de 715 inscritos, uma participação acima da média, brancos e nulos residuais. Maria João não quer percentagens, prefere nomes. "Aqui vota-se muito nas pessoas", resume, sem baixar os olhos. "A memória conta, a proximidade conta, a história conta. E a história de Baleizão não se apaga." Volta a Catarina Eufémia sem tom de cartaz. "Se eu souber o que os meus passaram, sei que não quero lá voltar", diz devagar. "Catarina não é um quadro na parede. É identidade, é pertença. Trabalhamos com os olhos no futuro, mas sem esquecer. Para mim, ser comunista hoje é um ato de resistência tranquila — lutar por condições de vida, no coletivo, sem deixar ninguém para trás."
O trabalho de proximidade não é conceito, tem corpo, tem nome. Uma idosa interrompe a conversa à porta da junta e pede dois minutos. Foi um desentendimento com a vizinha. A vizinha prometera queixa, ela antecipou-se. Maria João encosta a mão ao ombro, escuta, ri de leve para quebrar a tensão e promete uma conversa com as duas. "Primeiro tento pôr as pessoas frente a frente", explica depois. "Peço que se ponham no lugar uma da outra. Se dá, resolve-se. Se não dá, segue pelas entidades. E a lei é para todos." Não promete milagres, promete tempo. "Também digo muitas vezes não", acrescenta. "Uma carrinha para uma mudança pessoal, por exemplo. Se abro exceção a um, tenho de abrir a todos. As pessoas percebem. É honestidade."
Voltamos às perguntas maiores. Porque ganhou o PSD em Beja. Aqui não há trincheiras. "As cores contam pouco se não houver proximidade", atesta. "Tivemos períodos de afastamento das freguesias rurais. Houve também boas exceções. Agora, do novo executivo, espero proximidade e obra. Quando o presidente eleito me ligou, falou logo de autoestrada e ferrovia. Eu quero acreditar que se pensa primeiro no concelho e só depois no partido." E deixa a linha traçada: "Eu só peço que nos tratem como freguesia do concelho. Sem rótulos."
A cidade virou à direita, as caras que sorriram na noite eleitoral não eram as que Baleizão costuma ver nos cartazes, e, no entanto, em muitas ruas o voto manteve-se. A explicação não procura heróis nem vilões. "Nas autárquicas vota-se nas pessoas", insiste. "Mas houve quem votasse Chega para a câmara e CDU para a junta. O protesto é uma coisa, a proximidade é outra." E aponta duas razões que empurram o tal protesto. "Imigração e comunidade cigana", enumera. "Mas o caminho é integrar, não apontar o dedo. Por exemplo: fizemos cursos de português, pedimos regras no arrendamento, lutamos para que não se amontoe gente. E falamos de higiene, de vizinhança, com todos, portugueses e imigrantes. Também há exploração — e muitas vezes é feita por portugueses. Tem de haver acompanhamento e controlo. Sem dramatismos, sem romantismos."
Quando a luz começa a baixar deixo a estrada que cruza a freguesia e sigo para Beja.
A cidade mexe à hora do jantar. Os supermercados enchem de grupos de homens que falam alto numa cadência que não é a do sotaque de cá, levam arroz, frango, garrafões de água, compram em volume, passam pela caixa em fila espessa. Na entrada da cidade, num semáforo que dá tempo para olhar, cruza-se uma carroça puxada a burro, o homem de negro, barba comprida, etnia cigana, imagem de um outro tempo no meio dos faróis e das luzes dos néones, uma cena que não são postais, é só uma realidade que existe entre outras realidades, tudo ao mesmo tempo. A cidade vive as camadas, a loja de telemóveis nova ao lado do talho velho, a escola onde se misturam miúdos que chegaram há um ano com miúdos que descem deste mesmo bairro desde os avós, o centro histórico que de dia parece de pedra e à noite tem vozes que se juntam em grupos que não se viram por aqui há dez anos. Não é tese, é descrição. O medo às vezes nasce do que não se conhece, outras vezes nasce do que se conhece de mais, o que não dispensa políticas, não se resolve com frases.
O encontro com o Vítor Vasques fica marcado para um bar de hotel. O empregado chama-o pelo nome e dá-lhe os parabéns pela vitória como se fosse uma senha de entrada. As bebidas têm preços que lembram cidades maiores e turistas, os sofás gastaram já algumas reuniões que ninguém convocou por escrito, um ou outro aperto de mão diz que a JSD usa o espaço como quem descobre uma sede alternativa. Vítor sorri e agradece com a leveza de quem percebeu que uma vitória muda a temperatura do ar. Fala baixo, fala depressa, fala como quem conta a história muitas vezes e a afina com o tempo. "Tenho 32 anos", começa. "Cresci aqui. Estudei no Politécnico. Em 2017 não havia perspetivas e fui seis meses para Londres. Quis ganhar inglês e mundo. Voltei por escolha. Não culpo a política por ter ido nem por ter regressado."
Pergunto como chegou à JSD e ele diz que entrou na política por economia. "Foi no 11.º ou 12.º ano, com a disciplina de Economia", recorda. "O país estava na crise financeira, o governo dizia uma coisa e outra, acabou a pedir ajuda externa. Eu fui procurar quem dizia o quê. No PSD havia aquela disputa interna, e eu identifiquei-me com o Passos. Porquê? Seriedade. Dizer as coisas como são." E afina a linha: "Eu acredito que o privado deve ter iniciativa e o Estado deve complementar. Ser liberal com travo social-democrata. Isso falou comigo." Em Beja, nessa altura, ser JSD não era moda, era quase excentricidade. "Ao início éramos três numa mesa", ri-se. "Reativei a concelhia a partir do Politécnico. Fui juntando gente do distrito. É preciso alguma insistência."
Peço-lhe para me traduzir a rua, a rua política, e ele não hesita. "A mudança não se viu só nas últimas duas semanas", defende. "Viu-se nos últimos dois, três anos. O Nuno Palma Ferro, agora presidente eleito, foi ganhando proximidade. Em instituições, bairros, freguesias rurais. Tirou a política da mesa e pôs a cara no passeio. Na noite da vitória, a primeira coisa que lhe ouvi foi pedir autoestrada e ferrovia. Não era noite de promessas, era noite de recados. Essa proatividade contou." Quando lhe pergunto pelo Chega, Vítor encolhe o ombro. "Nas legislativas é uma coisa, nas autárquicas pesa muito a pessoa e a equipa", contrapõe. "O candidato do Chega era respeitado, só que a equipa menos conhecida. E houve muito voto no Nuno [Palma Ferro] para provocar a mudança. Tenho amigos do Chega que me disseram que votaram PSD para a câmara. E depois foram votar noutras forças para a junta. É a tal diferença entre protesto e proximidade."
A certa altura a conversa volta a Passos Coelho como se fosse inevitável. "Foi a figura que me agarrou à política", confessa. "A ideia de reformas, de responsabilidade. Eu não o culpo pela austeridade. Admiro-lhe a abnegação. Podia ter ido para grandes empresas ou para a Europa. Ficou como professor, a viver em Massamá ainda. Gostava de o ver mais ativo. Não o vejo em Belém. Vejo-o mais como líder de partido, outra vez, a pensar o país." O empregado volta à mesa, traz água, comenta que a noite está calma.
Agora vem dele a leitura da cidade. Vítor falará de imigração. "Houve ocupação muito rápida do centro por eles", aponta. "Casas velhas arrendadas sem obras, demasiada gente por divisão, pouca integração. Formaram-se guetos quase. E a polícia teve muito trabalho. Eu próprio senti medo uma noite no centro histórico, vi grupos a juntarem-se, uns contra os outros, a tensão a subir." Quando lhe falo da Segurança Social e da frase de que sem imigrantes o sistema rui, devolve a pergunta: "E por que não fazemos a reforma? Da Segurança Social. Por que não mudamos o modelo de financiamento? Preferimos não mexer e importar uma solução no imediato. Eu defendo acolhimento por setores e necessidades. Há empresas que já contratam por seis meses e garantem o regresso. Agora, as subcontratações diluem responsabilidades — e isso é um problema." Não fecha o assunto com contas, aponta um caminho.
Faz ainda balanço sobre a comunidade cigana no concelho. "A integração falha quando a escola não segura", nota. "Conheci colegas ciganos integrados e famílias que apostam na educação, outras não. É nas novas gerações que se quebra o círculo. E quando tradições chocam com a lei, tem de haver mediação e cumprimento da lei."
A cidade à nossa volta tem sinais de viragem por todo o lado. "No meu secundário éramos 31 e ficaram dois", aponta. "Alguns voltaram em teletrabalho, sim. Porque podem. Mas falta mais dinâmica empresarial. Temos a maior pista [aeroporto] do país e a Embraer está em Évora. Porquê?! Nós também precisamos de acessos. A autoestrada e a ferrovia não são capricho."
"Outra coisa: eu sei que não parece, mas vou ao ginásio", atira, e ri-se. Depois larga a imagem de que gosta para falar do Chega sem o dizer. "Às vezes o melhor sítio para ver a cidade é o ginásio. Está lá toda a gente. Vês quando o humor muda, quando a ideia de grupo cresce. O nosso clube, os nossos e os outros. É aí que discursos autoritários soam a clareza." Faz pausa. "Como é que os trazemos de volta? A debater. Sem rótulos. A perguntar o que fazem no dia seguinte às bandeiras fáceis."
Trabalha num lagar às portas de Beja — "não para fazer azeite", brinca — onde é técnico de contabilidade. E é daqui, do horário contado e das folhas de Excel, que puxa a ambição: não um título, insiste, mas um lugar onde o contributo pese. "Servir, mais do que opinar." Vê-se numa junta, pela proximidade e pelo concreto; chegar lá, explica, não é atalho nem cunha, é trabalho de base e mérito — o mesmo com que reativou a JSD quando eram três à mesa. Se será candidato? Encolhe os ombros, não fecha portas. "O futuro dirá." Entre a folha salarial do mês e a política que mexe na rua, promete ficar atento — "e disponível".
Na volta para casa, com a janela entreaberta para deixar entrar o ar morno, volto a Baleizão por dentro da cabeça. Ao mural de Catarina, à idosa à porta da junta, ao telemóvel que não dá tréguas, à frase da presidente sobre o passado e o futuro. Penso nos números que ajudam a assentar o pó. Em Baleizão a CDU fez 50,21%, 242 votos que valem uma continuidade. Em Beja a coligação Beja Consegue ficou em 31,14%, 5.592 votos e a presidência que abre um tempo novo, PS com 26,82% e 4.817, CDU com 22,08% e 3.965, Chega com 16,93% e 3.041, uma câmara com equilíbrios e disputa por dentro. O mapa final é um retrato que não cabe no preto e branco. Uma cidade que muda e uma freguesia que resiste. Uma presidente comunista que fala de proximidade e integração e um jovem social-democrata que reivindica seriedade e reforma. Uma cidade com grupos de imigrantes a caminho do jantar e uma carroça que lembra que o tempo não corre igual para todos. O que fica para escrever no caderno não é uma moral. É a sensação de que há lugares onde a política ainda se faz à porta de casa, dois passos depois do mural, ao telefone a qualquer hora, com um ginásio a servir de praça pública, com um bar de hotel a ser a sala onde se sonha alto e se combina o próximo folheto.
O resto joga-se nos dois lados: na porta da junta e na mesa do executivo, no passeio e no átrio do hotel. Sem slogans. Com nomes.