São centenas de campanhas, milhares de candidatos, e tanta fartura facilita a asneira. As campanhas autárquicas são um mundo à parte, e recordamos aqui alguns momentos altos (ou baixos, você decide) de cinco décadas de eleições locais. Incluindo Marcelo, Costa, Avelino, Valentim e outros nomes muito lá de casa
O que é demais enjoa
Não vamos disfarçar. A emoção que podiam ter sido as primeiras eleições autárquicas foi amplamente esmorecida pelo facto de essa ter sido a terceira vez que os portugueses foram chamados a votos nesse mesmo ano. Em 1976 houve as primeiras eleições legislativas para a Assembleia da República, em abril, as primeiras eleições presidenciais, em junho, e, em dezembro, as primeiras eleições para as chamadas “autarquias locais”.
Não admira, por isso, que a curva da abstenção tenha sido sempre a subir, passada a novidade do primeiro voto para o Parlamento, de onde sairia o Governo da Nação. Nas legislativas a abstenção foi de apenas 16%, nas presidenciais subiu para 24%, e nas autárquicas atingiu um pico de 35%. Não era, porém, um caso perdido de desamor dos portugueses pelos seus alcaides e demais representantes locais, era mesmo uma questão de fastio. Prova disso é que nas autárquicas seguintes, em 1979 (nessa época os mandatos eram de três anos), a participação subiu sete pontos percentuais, ficando a abstenção abaixo dos 28%.
O presidente que não podia tomar posse
Um dos casos mais insólitos das primeiras eleições autárquicas foi o do presidente da Câmara Municipal de Machico, na Madeira. O PPD, que era levado ao colo pela Igreja local (como se verá abaixo) venceu todos os municípios madeirenses, mas o inesperado aconteceu no dia da tomada de posse do edil de Machico.
O vencedor das eleições, de seu nome António de Freitas Vítor, não compareceu à sua própria tomada de posse. Teria falecido com a emoção da vitória? Teria desfalecido com o peso da responsabilidade? Nada disso. Simplesmente, descobriu que, de acordo com a lei, não podia ser presidente de câmara.
Parece incrível, mas é verdade: a sua candidatura e de toda a sua lista foi aceite pelas autoridades apesar de António Vítor estar em clara violação da norma que explicitamente dizia que não podiam ser eleitos para o poder local os membros das forças militares ou militarizadas quando em efetividade de serviço.
Ora, o cabeça de lista do PPD pertencia aos quadros do “pessoal militarizado do Porto do Funchal”. Era o faroleiro do Farol de São Lourenço, no extremo leste da ilha – uma profissão que não era exatamente segredo, o que torna ainda mais bizarra a aceitação da sua candidatura. Quem não tem cão caça com gato e, à segunda, improvisou-se. Subiu o nº2 da lista a nº1 e o primeiro edil de Machico foi Manuel de Sousa, militante social-democrata sem impedimentos burocráticos que apagassem o seu nome da história local.
No pano novo cai a nódoa
1985 foi ano farto para quem gosta de história política. Também para quem gosta de estórias da política. Foi o ano em que se estreou, como estrondo nacional, um novo partido, o Partido Renovador Democrático (PRD), tendo como instigador, inspirador e figura de referência Ramalho Eanes, cuja imagem de seriedade, independência e autoridade moral era um capital precioso. Eanes era um político diferente dos outros e o seu partido também o seria, à sua imagem.
Passadas as legislativas, em que esse discurso e imagem valeram ao novo partido um milhão de votos, o PRD enfrentou as suas primeiras eleições autárquicas. Apresentar milhares de candidatos, em centenas de câmaras e milhares de freguesias, não é fácil para os partidos implantados, e ainda mais difícil para partidos novos. De tal maneira que o PRD, sem conseguir cumprir os requisitos legais, decidiu descer do seu altar de superioridade moral e fez o que tantos haviam feito antes e haveriam de fazer depois: apresentou listas de candidatos com assinaturas falsificadas.
O caso deu-se em terras pequenas, como o Fundão, mas também em grandes autarquias, como Lisboa. Vários candidatos desistiram e o PRD, como se impõe nestas ocasiões, promoveu um “rigoroso inquérito interno”. Rigoroso ou não, o dito não permitiu apurar “quais os autores materiais das irregularidades”, mas detetou “deficiências de organização, de estrutura e de funcionamento a vários níveis”. Em todo o caso foi sol de pouca dura: em 1987 o partido cometeu harakiri político, ao apresentar uma moção de censura que derrubou o governo de Cavaco Silva e, daí em diante, foi sempre a descer. Nem as assinaturas falsas o salvaram.
A campanha imparável do candidato incontrolável
Um trabalho sobre insólitos de campanhas eleitorais autárquicas não pode passar ao lado da espantosa, da incrível, da bizarra, da inimitável campanha de Marcelo Rebelo de Sousa em 1989. Objetivo declarado: manter a autarquia nas mãos da coligação PSD-CDS, sucedendo a Krus Abecasis e derrotando a frente de esquerda, protagonizada pelo líder socialista, Jorge Sampaio, que liderava uma inédita coligação PS-PCP. Objetivo não declarado: ter um palco nacional que posicionasse Marcelo como alternativa a Cavaco, quando o cavaquismo se esgotasse.
O desfecho dessa disputa é conhecido, por isso não vale a pena fazer suspense. Sampaio ganhou, e o palco de Lisboa acabou por catapultá-lo para a Presidência da República, anos depois. Marcelo perdeu, e teve de fazer uma travessia do deserto, reinventando-se como comentador e fazedor de factos políticos, primeiro na rádio e depois na TV.
Mas o que nos importa aqui é a campanha de um candidato que precisava desesperadamente de se tornar conhecido do povo, pois o nome de Marcelo só era conhecido das elites que liam sobre as intrigas da política laranja. “Sou incontrolável”, disse o candidato sobre si mesmo, classificando-se também como “um homem liberto de complexos”.
E, sem complexos, fez-se fotografar a treinar aikido, a arte marcial que por esses dias praticava, e pensou em desafiar Sampaio para um combate de boxe. Não chegou a tanto, e também desistiu da ideia de promover um jogo de ténis entre ambos. Mas concretizou outras ideias: passou um dia a conduzir um táxi pela cidade, dando largas à sua costela de taxista, e passou uma noite na ronda da recolha do lixo. Dançou com velhinhos nos Alunos de Apolo, dançou mornas e coladeiras com a comunidade africana, “abanou o capacete” no Xafarix, com a “malta fixe” (ambas as expressões podem ser desconhecidas por quem nasceu depois de 1980, mas o Google explica).
“As melhores ideias são todas minhas”, gabou-se o candidato sobre a campanha que o deixou nas bocas do mundo. Nunca se tinha visto uma campanha assim.
Marcelo ainda pensou em dar um salto de asa delta desde o Cristo Rei, aterrando em Lisboa… mas a ideia foi chumbada. Em vez disso, deu um mergulho no Tejo, que por esses anos era um viveiro de cocós e outros detritos urbanos. Saltou de um cacilheiro, especialmente fretado para aquele ato de campanha, e a abarrotar de jornalistas. “Nunca vou ao fundo”, jurou o candidato, mostrando a sua boa forma física (supostamente em contraste com o seu adversário, que teve o bom senso de nunca se despir durante a campanha). Saltou para o rio e por pouco não foi arrastado pela corrente, que o surpreendeu a meio da travessia. Mas lá chegou à margem, ofegante e com água pela barba. A campanha ficou para a história. A pescaria de votos é que correu mal.
Eletrodomésticos Valentim
No início eram os folhetos e os autocolantes, mas num momento mais ou menos indeterminado da nossa vida política, tornou-se hábito as máquinas de campanha oferecerem brindes aos eleitores. Há quem jure que foi nas grandes campanhas de Cavaco, com bonés, t-shirts, bandeiras, canetas, estojos escolares completos e outros apetrechos mais ou menos aleatórios. Numa certa fase, o CDS oferecia leques, para os calores de algumas eleitoras, e caixinhas de comprimidos, sabendo bem que uma boa parte do seu eleitorado estava algo envelhecida. Mas ninguém batia, nem nunca ninguém bateu, os brindes do candidato Valentim Loureiro, sobretudo na sua primeira propositura à Câmara de Gondomar, em 1993.
O “major”, que era conhecido sobretudo pela carreira como dirigente desportivo, como longos anos à frente do Boavista mas também como presidente da Liga de Clubes, revelou-se um homem de muitos instrumentos, com um diversificado portfólio de negócios, entre eles, uma loja de eletrodomésticos. Vinham daí os “brindes” com que conquistou muitos gondomarenses, oferecendo de tudo, desde vídeos e televisões a frigoríficos.
Uma prática nova e bem-sucedida que começou assim, segundo o próprio: “Telefonei para a minha loja e mandei entregar um vídeo e um televisor. A notícia espalhou-se e, depois, toda a gente me pedia o mesmo. Como não sou capaz de discriminar ninguém, mandei carregar uma camionete com oitenta televisores e aparelhos de vídeo, e distribuí por todas as escolas.”
Compra de votos? Boa pergunta. Nunca “o major” se viu a braços com a justiça por causa da prodigalidade com que tratava o seu potencial eleitorado. Foi investigado por muitas suspeitas, foi a julgamento em diversos casos, foi até condenado a perda de mandato e a três anos e dois meses de prisão com pena suspensa, pelo crime de prevaricação, e 25 crimes de abuso de poder, como cúmplice. Viu-se até inibido de se candidatar à autarquia. Quando o voltou a fazer, não conseguiu melhor do que um terceiro lugar. Como é fácil de adivinhar, já não oferecia eletrodomésticos.
Arre, burro!
A campanha eleitoral autárquica de 1993 foi uma animação, com vários momentos de antologia. Um deles, para sempre gravado nos anais da política portuguesa, envolveu António Costa, um Ferrari e um burro. Foi a primeira aventura autárquica de Costa, candidato à câmara de Loures. Para demonstrar o purgatório diário que era a Calçada de Carriche para quem tinha de entrar todos os dias em Lisboa por essa via, o socialista promoveu uma corrida entre um vistoso Ferrari e um pacato burro. Quem venceria? O “puro sangue” italiano ou o jerico nacional? Costa deu a bandeirada de partida, que só foi de partida para o asno, pois o Ferrari ficou parado no trânsito. Quem apostou no burro venceu - e com cinco minutos de avanço. Estava demonstrada, segundo Costa, a necessidade de alargar a Loures a rede do Metropolitano de Lisboa.
Uns anos depois, o mesmo Costa promoveu outra disputa de mobilidade, mas desta vez dando o corpo ao manifesto. Na campanha de 2009, já com dois anos como edil da capital, Costa quis demonstrar a eficácia dos transportes públicos e organizou um tira-teimas no Eixo Central (do Campo Grande ao Rossio). O autarca socialista foi de metro, o piloto de competição Pedro Couceiro conduziu um Porsche, e um taxista anónimo dirigiu o seu táxi. Costa voltou a vencer, o que pode ter levantado dúvidas sobre a sua propensão para só entrar em competições que já sabia estarem ganhas à partida.
Nazaré, inspirado numa história verídica
No mesmo ano em que Valentim oferecia eletrodomésticos em troca de votos, o PSD conquistou Gondomar, claro, mas também a Nazaré, um histórico bastião autárquico socialista. Quatro anos passados, o PS pedalou a dobrar, para tentar recuperar a terra das mulheres das sete saias. Talvez inspirado por essa idiossincrasia local, José Vera Jardim, barão socialista destacado para fazer um comício naquele concelho (era, então, ministro da Justiça), fez um estranho discurso contando a incrível e triste história de Nazaré.
“A Nazaré é uma mulher muito bonita que casou há muitos anos com o PS, mas que há quatro anos se deixou levar para uma aventura pelo apelo de um cavalheiro montado num alazão branco. Porém, depois da aventura inicial, a Nazaré viu que o cavalheiro só oferecia promessas e não lhe dava amor e carinho, tudo era um embuste, e ela agora quer regressar a casa.”
A história não convenceu os eleitores, que voltaram a votar no cavalheiro montado num alazão branco. Mas pode sempre dar o argumento para uma telenovela chamada Nazaré. Neste caso, inspirada numa história verídica.
Rebentar o balão
Em 2001, o Governo de António Guterres teve uma ideia. Preocupado com a sinistralidade rodoviária e com o número de acidentes provocados por pinga a mais, o Executivo decidiu diminuir a taxa máxima permitida de álcool no sangue para os condutores. Era, jurou o Governo “essencial para a diminuição da sinistralidade rodoviária e em especial a sinistralidade mortal”. O ministro propôs reduzir a taxa máxima de 0,5 para 0,2. E avisou, adivinhando o que aí viria, que se fosse desautorizado pelo PS se demitiria do Governo. Em abril, o Conselho de Ministros passou a considerar “sob influência de álcool” quem apresentasse taxa superior a 0,2 g/l.
Foi um pé de vento. Dos produtores de vinho aos autarcas, passando por boa parte da “família socialista”, a decisão causou enorme polémica. Tanta que, em setembro, o Executivo usou um daqueles truques legislativos para, parecendo que não recuava, recuar. “Atendendo às atuais circunstâncias” o Executivo voltava a elevar a fasquia para os 0,5g/l. E que “circunstâncias” eram essas? Era ano de eleições autárquicas. Como escreveu João Paulo Guerra no Diário Económico, “Se houve um teste para medir a taxa de eleitoralismo no sangue, o PS e o Governo rebentavam o balão”.
Cheira bem, cheira a Florida
1997 foi o ano em que Pedro Santana Lopes se reinventou politicamente, vestindo pela primeira vez o fato de autarca, na Figueira da Foz, com praia, palmeiras e Cinha Jardim. Mas 2001 foi o ano em que Santana voltou a ser olhado como um caso político sério, ao vencer a Câmara de Lisboa contra o incumbente, e super-favorito, João Soares. O socialista liderava a mesma frente de esquerda que tinha dado as vitórias de Jorge Sampaio na capital; sozinho, Santana superou a esquerda junta, e ainda teve a oposição, à direita, de Paulo Portas, que se atravessou numa candidatura de vida ou de morte para tentar salvar o seu CDS.
Mas o que nos importa aqui é mesmo a vitória de Santana. Uma vitória suada, disputada até ao último voto, fina como um x-ato e martelada como nenhuma outra na história das eleições autárquicas. A vantagem do social-democrata sobre Soares foi de apenas 856 votos, num universo de 312 mil votantes. Mas, conforme se saberia depois, motivou suspeitas de fraude eleitoral, investigações do Ministério Público e até uma investigação jornalística que levou à publicação de um livro.
De um facto não restam dúvidas: os resultados oficiais não coincidem com o apuramento feito ao nível das freguesias. O livro do jornalista João Ramos de Almeida (publicado apenas em 2007) deixa claro que “ao nível das secções de voto, registaram-se discrepâncias significativas entre o número dos votantes descarregados nos cadernos eleitorais e os eleitores que terão votado, segundo as atas das secções de voto”. Por junto, “as anomalias abrangeram 27 das 53 freguesias [que então constituíam o município] e cerca de metade das secções de voto do concelho de Lisboa”.
O jornalista, que consultou documentos oficiais, mas também teve acesso à investigação judicial, concluiu que o conjunto das diferenças “foi mesmo superior à vantagem de 856 votos com que a lista do social-democrata Pedro Santana Lopes venceu a noite das eleições para a Câmara Municipal de Lisboa”. A Junta de Freguesia de Marvila foi um dos epicentros do mistério, divulgando os resultados só perto das onze da noite, quando os homens de Santana já diziam que aquela seria a Florida dessas eleições (uma referência à polémica vitória de George Bush nas presidenciais americanas de 2000, devido às contagens e contagens dos votos desse estado).
Segundo Ramos de Almeida, “apenas é possível afirmar que não há certezas sobre qual terá sido efetivamente o resultado final das eleições autárquicas em Lisboa, sobretudo devido ao deficiente trabalho das assembleias de apuramento geral”. Uma vez que os boletins de voto foram destruídos em 2002, não era possível tirar a limpo qual das candidaturas terá interferido mais nos resultados. “Não se pode ser categórico e afirmar que apenas uma lista violou a lei eleitoral. Muito menos se poderá concluir que Pedro Santana Lopes ocupou indevidamente a cadeira de presidente da Câmara Municipal”, conclui a investigação jornalística.
O Ministério Público tinha chegado a conclusões parecidas: sim, havia marosca, mas não havia como saber da parte de quem. A primeira investigação judicial avançou em 2002, e houve uma segunda em 2004. “Mesmo a dar-se por indiciada uma conduta intencional na alteração dos resultados eleitorais, sempre os autos teriam de ser arquivados por não se indiciar quem foi o seu autor", concluiu a primeira procuradora que vasculhou o caso. O despacho de arquivamento sublinhou, contudo, que "a sucessão de 'erros' e a sua incidência numa só candidatura [a de João Soares], as omissões (...), a alteração do mapa de apuramento final sem que conste da acta que sobre o mesmo tivesse recaído alguma reclamação, indiciam, se não uma conduta intencionalmente falseadora da verdade eleitoral, pelo menos grosseiramente negligente no desempenho das funções de membro da assembleia geral [de apuramento concelhio]". Mas por considerar impossível identificar o autor da moscambilha, a PGR nunca pôs em causa a vitória de Santana Lopes.
Que valeu muito mais do que uma câmara, recorde-se: foi o golpe final no guterrismo, levando à demissão do primeiro-ministro socialista; permitiu a Durão Barroso e Paulo Portas vencerem as legislativas poucos meses depois, e projetou Santana para a primeira linha da política nacional, ao ponto de chegar a primeiro-ministro.
O horror da vitória
Fernando Seara, professor universitário conhecido por falar por charadas, e comentador de futebol conhecido como “o careca do Benfica” nunca quis ser presidente da Câmara de Sintra. Especialmente quando se candidatou a presidente da Câmara de Sintra. Fê-lo em 2001, porque Durão Barroso lhe pediu, a liderança do PSD estava por um fio, as autárquicas podiam ser um balão de oxigénio e, mesmo sem ganhar, Barroso acreditava que a popularidade de Seara, devido aos comentários televisivos, podia permitir um resultado honroso.
Seara lá aceitou fazer o jeitinho. A sua principal adversária era a socialista Edite Estrela, a presidente em funções. “Costumo dizer que me candidatei a Sintra para perder”, confessaria mais tarde, reforçando: “Sou um exemplo de um equívoco eleitoral. Era uma batalha difícil contra Edite Estrela, quase impossível, e só aceitei para ajudar o doutor Durão Barroso.” Para azar de todos os envolvidos (menos de Durão Barroso), Seara ganhou e viu-se amarrado a um trabalho que não queria. Mas o resultado de Sintra seria um dos momentos decisivos de uma noite que ditou o fim do Governo de António Guterres.
Miguel e o beijo de morte
Apesar da contrariedade, Seara cumpriu o limite de três mandatos (12 anos) como edil de Sintra. E tomou-lhe o gosto, pois em 2013 candidatou-se à Câmara de Lisboa. À época, o país era governado por Pedro Passos Coelho, à frente da coligação PSD-CDS-troika. Um dos primeiros a apoiar o anúncio da candidatura lisboeta de Seara foi Miguel Relvas, quando ainda faltava quase um ano para as eleições. Soaram os alarmes. Marcelo Rebelo de Sousa, comentador político, explicou as razões da preocupação: “Qualquer apoio do ministro Miguel Relvas a uma candidatura é um beijo de morte.” Onde quer que fosse, a impopularidade de Relvas precedia-o. Seara safou-se de boa, pois o ministro foi forçado a demitir-se do Governo uns meses antes das autárquicas, e fez uma longa travessia do deserto. Mas nem assim Seara conseguiu conquistar a câmara a António Costa.
O grand finale depois do fim
Não foi bonito de se ver, mas ao menos foi animado. Durante uma hora e meia, os dois principais candidatos à presidência da Câmara Municipal de Lisboa nas eleições de 2005, Carmona Rodrigues (presidente em funções e candidato pelo PSD) e Manuel Maria Carrilho (PS), discutiram pouco a cidade, mas discutiram muito.
Houve queixas de “insultos de caráter pessoal” e de “calúnia”, houve ataques de caráter e acusações de falta dele, e discutiram-se questões tão relevantes do passado de cada um como o boato de que Carrilho, quando era ministro da Cultura, teria mandado fazer no ministério uma casa de banho de fazer inveja ao Rei-Sol. “Quem pagou pela casa de banho?”, insistia o candidato do PSD, enquanto o socialista, indignado, invocava decisões de tribunal que o deixaram “completamente ilibado” nessa “polémica” de sanita (literalmente).
Quem achou que já tinha visto tudo nem suspeitava que o grand finale estava guardado para depois do final. Terminado o debate, os contendores levantaram-se, ainda com a adrenalina em alta, e Carmona dirigiu-se ao rival para lhe apertar a mão. Carrilho não correspondeu ao gesto, deixando o adversário de mão estendida. “Não me aperta a mão? Ordinário!” As câmaras da SIC, que ainda estavam a filmar, registaram a altercação e o aperto de mão que nunca existiu acabou por ser a notícia do debate. Carrilho queixou-se de ter sido vítima de “uma cilada”, perpetrada pelo seu oponente com conivência da estação de televisão, e Carmona limitou-se a gozar o prato.
Bela, recatada e do lar
O não aperto de mão a Carmona Rodrigues foi apenas uma num longo rol de gaffes da candidatura a Lisboa do ex-ministro socialista. Logo no início da campanha, Carrilho cometeu o erro de explorar num vídeo a popularidade da sua família, ou seja, a apresentadora Bárbara Guimarães (de quem entretanto se separou, num caso ultra-mediático de violência doméstica) e o filho pequeno de ambos. O menino e a mamã recomendavam o voto no “papá”.
O muito familiar apelo ao voto caiu tão mal, que Carrilho continuou a fazer campanha com a mulher ao lado, mas reduzindo-a a um adorno, sem direito à palavra. E assumiu que era assim mesmo. “A Bárbara é a minha mulher. Está nesta campanha como as mulheres dos candidatos costumam estar. As mulheres dos candidatos não falam, acompanham.” Para azar de Carrilho, Bárbara era muito mais popular do que o marido. Para azar de Bárbara, o marido levava isso a mal. Queria uma mulher “bela, recatada e do lar”, como seria conhecida, anos mais tarde, uma célebre primeira-dama do Brasil.
A candidata que não encolhe, não alarga e não desbota
Na sua breve militância no CDS, Maria José Nogueira Pinto foi quase tudo o que podia ser: deputada, líder parlamentar, candidata a presidente do partido e até vítima de uma agressão fantasma num célebre Conselho Nacional que ia mesmo acabando à estalada. Menos marcante foi a sua experiência como candidata autárquica – mas aconteceu e foi, claro, em Lisboa, ou não fosse “Zézinha” da melhor burguesia lisboeta, com casa senhorial no topo do Campo Grande (no CDS, chamavam-lhe baronesa, nem sempre com a melhor das intenções).
A Maria-José-candidata foi fiel à Maria José Nogueira Pinto: senhora do seu nariz, com certezas sobre a maneira certa de fazer as coisas e zero tolerância para truques populistas ou eleitoralistas. A ela, ninguém veria a dançar em bailaricos e a fingir que estava a gostar. “Não vou deixar que me vendam como se fosse um sabonete ou uma margarina”, jurou, quando apresentou a candidatura, ao lado do então líder centrista, Ribeiro e Castro. Isto foi em junho.
Passou julho, agosto, setembro, e a candidatura centrista pouco crescia nas sondagens. Ao menos não metia sabonetes nem margarina. Mas a certo ponto foi preciso ceder na linguagem e dizer qualquer coisa que aproximasse a “baronesa” do eleitor comum. E saiu assim: “Eu sou como aquelas roupas dos catálogos de senhora que têm um autocolante a dizer ‘Valor Seguro’. Não encolhe, não alarga, não desbota.”
Era uma metáfora, claro. “Zezinha” não tinha realmente um autocolante a dizer “Valor Seguro”. Se tivesse, talvez tivesse conseguido mais do que 5,9%. Em todo o caso, Nogueira Pinto foi eleita vereadora.
O dinossauro que tinha bons advogados
A expressão “dinossauro autárquico” foi criada para presidentes de câmara como Avelino Ferreira Torres, que, tudo indicava, seria o eterno edil de Marco de Canaveses. Entretanto, a introdução da limitação de mandatos na lei eleitoral autárquica alterou essa realidade, limitando os eleitos a um máximo de três mandatos sucessivos… na mesma autarquia. Em 2005, quando ficou impossibilitado de se recandidatar outra vez à câmara de Marco, Avelino sentiu um súbito apelo da sua terra natal – o concelho vizinho de Amarante. Em contrapartida, para garantir que Marco de Canaveses continuava em boas mãos, o seu filho candidatou-se à sucessão do pai.
Mas, como sempre, a história estava onde estava Avelino, the one and only. Já não punha e dispunha do CDS como noutros tempos, e avançou para Amarante como independente. Com a peculiaridade de ter entregue, não uma, mas duas listas de cidadãos a apoiá-lo. É claro que Avelino só podia encabeçar uma, era como se fosse aquele candidato que vale por dois, pois Amar Amarante e AFT - Amarante com Avelino Ferreira Torres , eram duas listas distintas apoiando o mesmo homem. Para quê? O próprio explicou, para evitar especulações: tendo duas listas, podia duplicar as verbas para a campanha. Não seria batota? Nada disso. Era profissionalismo. “Por aqui se verifica que o meu staff está devidamente organizado” e conhece bem os meandros da lei. “Se há buracos na lei, há que os aproveitar, porque para isso é que servem os advogados e nós temos juristas que sabem o que estão a fazer.”
Com esta lição de pragmatismo e savoir faire, Avelino tinha tudo para conquistar as gentes de Amarante. Só não conquistou os seus votos. Ganhou o candidato do PS. E no Marco venceu a lista do PSD. Foi o fim do longo reinado dos Ferreira Torres.
A aldeia da roupa branca
Quando pensamos nas figuras que marcaram a política portuguesa ao longo dos anos, é estranho pensar que José Mendes Bota tem um lugar nessa lista. Mas tem. Foi no seu tempo como presidente do PSD-Algarve que foi ressuscitada a célebre festa de rentrée do Pontal. Bota era presidente da câmara de Loulé, e líder distrital, e em 1989 foi parar a Bruxelas, para um “exílio dourado” (palavras suas) no Parlamento Europeu. Foi por essa altura que Inês Pedrosa, então redatora do jornal O Independente, descobriu a poesia erótica de Mendes Bota e fez dele uma espécie de celebridade underground-rústico. Infelizmente, versos como “finco-me nos teus lombos dóceis” não são o objeto deste trabalho. Adiante.
Em 1997, cansado de viver no centro da Europa, e saudoso da sua Loulé, candidatou-se à autarquia, entretanto dominada pelo PS. Mais maduro, com mais mundo, já não acreditava em comícios e fez campanha porta a porta, dando uso ao seu verbo fácil. Sem porno-versos, mas sempre com resposta pronta. Numa lavandaria, proferiu uma declaração que tanto pode ser encarada como um soundbite como um breve tratado de ação política. “Sabe qual é a coisa que nos une?”, perguntou à proprietária da lavandaria. “Ambos estamos no negócio da roupa suja. Eu na política, você na lavandaria.”
Lamentavelmente, nem a obra poética publicada nem a prosa improvisada chegaram para Bota reconquistar a câmara. Os discos de música pimba também não terão ajudado, apesar do apelo popular de versos simples, mas de bom gosto, como “Diana, teu corpo de sereia / E és tão bela na areia…”
O candidato expansionista
Em 2013, depois de completar o limite de três mandatos como autarca de Gaia, Luís Filipe Menezes candidatou-se à Câmara do Porto. Achava que o autarca cessante da Invicta, o seu arqui-rival Rui Rio, tinha uma visão pequena e limitada em relação à “capital do Norte”. A de Menezes não era nem uma coisa nem outra - era, até, vagamente expansionista: “O Porto que eu defendo é um Porto que vai de Coimbra às Astúrias.”
Agora, que é outra vez candidato a Gaia, Menezes continuará a pensar que esse é território do Porto?
Nunca Chega de candidatos
O Chega é muitas vezes acusado de ser um “partido de um homem só” - a presença de André Ventura em cartazes autárquicos por todo o país, ao lado do candidato local, pode ter adensado essa percepção. O facto de Ventura ser omnipresente e se candidatar a tudo o que mexe (incluindo a primeiro-ministro e a Presidente da República) também. Mas o mito não é verdade. Prova disso é que este ano o Chega conseguiu apresentar candidaturas autárquicas de Norte a Sul do país. Em muitos casos, repetindo os candidatos a deputados. Apesar das críticas de não levar os cargos a sério, estes foram os casos em que tudo correu bem.
Também houve os outros: candidatos autárquicos que foram apresentados, com cartazes feitos e tudo, mas que tiveram de ser substituídos já com a pré-campanha em andamento. Cerca de uma dezena, até ao final de agosto. Os casos mais visíveis foram os de Nuno da Câmara Pereira, em Belmonte, e Lina Lopes, em Setúbal.
No caso do fadista, ex-líder e ex-deputado do PPM, tudo se deveu à velha e boa intriga política - o Chega pode ser um dos partidos mais novos, mas tem vícios velhos. “Não pedi para ser candidato, não serei candidato de quem tem dúvidas quanto à minha capacidade de cidadão livre e independente”, afirmou Câmara Pereira, denunciando notícias sobre si, que considerou terem sido “plantadas de forma cirúrgica” pelo próprio partido.
Também Lina Lopes se disse “vítima de intrigas” e “tentativas de chantagem”, nas redes sociais, que faziam dela suspeita de ter sido corrompida com dinheiro e bens. O alegado denunciante, que acumulava com o papel de alegado corruptor, respondia pelo nome de Vítor Pilas e divulgou nas redes sociais prints de supostas mensagens trocadas com a candidata, que antes de ser do Chega tinha sido do PSD, chegado à direção do partido com Rui Rio.
Saiu Lina, subiu Cachaço. António Cachaço, que era n.º 2 da lista. Até à hora da publicação deste texto, ainda era o candidato.
O mandatário que incendiou a campanha…
Marco Silva, de 40 anos, foi detido pela GNR, no concelho de Montemor-o-Novo, à beira da Estrada Municipal 530. No momento da detenção estaria de cócoras, uma posição nem sempre incomum entre políticos, mas a dedicar-se a uma atividade pouco comum: atear fogos florestais. Saiu do carro, parado na berma, levando consigo um isqueiro, uma garrafa de álcool e jornais. A Guarda andava à coca, porque já tinham sido detectados vários pequenos fogos na região, e acabou por apanhar o suposto incendiário em flagrante delito.
Dá-se o caso de que Marco Silva, para além de incendiário nas horas vagas, era mandatário da candidatura autárquica do Chega à Câmara de Vendas Novas. Nas autárquicas anteriores tinha mesmo sido o candidato à edilidade. Partilhava nas suas redes sociais toda a propaganda e teorias conspirativas do partido sobre fogos florestais e incendiários, esses “bandidos” que precisam de “penas de prisão mais pesadas”. Agradecia, como convém a um “português de bem”, o trabalho dos bombeiros. Gostava tanto de os ver a trabalhar que fazia questão de lhes dar mais trabalho.
Quando foi detido em flagrante, o Chega tudo fez para se distanciar do seu militante e mandatário, tentando destituí-lo do estatuto de mandatário (como a lista já estava oficialmente entregue, a coisa é complexa), e abrindo procedimentos para o expulsar do partido, com queixa apresentada pelo próprio “querido líder” André Ventura. Para que não ficassem dúvidas, Ventura defendeu “uma pena longa” para o ainda militante e mandatário.
"As pessoas sabem que todos os partidos, em todas as circunstâncias, podem ter pessoas que entram e que não correspondem àquilo que são os valores do partido. O que faz verdadeiramente a diferença é como é que são tratados e qual é a resposta que o partido dá", defendeu Ventura, passando ao lado do facto de o Chega, apesar da sua curta história e de quase não ter poder executivo, contar já com uma recheada história de casos embaraçosos. Até nas autarquias.
…e o bombeiro que desviava materiais inflamáveis
Outro candidato do Chega a estas autárquicas que já garantiu a sua nota de rodapé na história das campanhas autárquicas é Luís Silvano, bombeiro de profissão que concorria à presidência da junta de Aradas, em Aveiro. Note-se que Silvano se tornou bombeiro depois de deixar de ser técnico de emergência pré-hospitalar do INEM. E porquê a mudança de carreira? Porque o INEM descobriu que Silvano, “português de bem” à moda de André Ventura, andava a desviar gasóleo do Instituto de Emergência Médica. Quando publicou nas redes sociais a brochura da sua candidatura (Sou o Luís Silvano, bombeiro e há muito residente em Aradas. Sei o que é servir com verdade e sacrifício”), alguém juntou, noutra publicação, a cópia do seu “despedimento disciplinar, com justa causa”, publicado em Diário da República. O homem que sabe o que é servir também sabia o que era servir-se, e utilizava o cartão frota não apenas para atestar as ambulâncias mas também a sua viatura.
Apesar de Ventura ter garantido que, desta vez, o Chega tinha feito o devido escrutínio aos seus candidatos, escapou-lhe este caso, publicado não apenas no Diário da República mas também no jornal Expresso em 2018. O candidato, que se tinha filiado no Chega dois dias antes, desistiu imediatamente da candidatura.