Entrámos no Discord, a rede onde o FBI descobriu o jovem que ia matar na Universidade de Lisboa

12 fev 2022, 18:00

Jovem de 18 anos, entretanto detido, queria matar "o máximo possível" de pessoas na Faculdade de Ciência da Universidade de Lisboa. Plano ia ser posto em prática esta sexta-feira, 11 de fevereiro. Foi travado pela Polícia Judiciária, que tinha recebido um alerta do FBI

Todos os dias ao final da tarde, Miguel (nome fictício) liga-se ao servidor para entrar em contacto com os seus amigos. Depois das aulas e do trabalho, juntam-se na aplicação onde falam do dia a dia e jogam videojogos em grupo. “Acabamos por estar todos juntos, embora estejamos em diferentes partes de Portugal ou do mundo”, explica o jovem. Encontram-se no Discord, uma das plataformas utilizadas pelo jovem detido pela Polícia Judiciária (PJ) por suspeita de planear um ataque armado na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. Era ali que o jovem estudante procurava encontrar conteúdo e pessoas com quem partilhar o seu entusiasmo por um dos seus tópicos favoritos: tiroteios em escolas.

A CNN Portugal mergulhou na aplicação e falou com alguns utilizadores que ajudam a perceber esta plataforma que alberga servidores privados onde tudo se passa. Do gaming ao stream ilegal de filmes e séries, passando por grupos privados de apostas e comunidades de criptomoedas, o que esconde o Discord?

“Qualquer pessoa pode criar um servidor sobre qualquer tema, mais ou menos complexo. E isso traz grande liberdade para os utilizadores”, explica Miguel. No fundo, o Discord é uma plataforma online de chat e streaming, idêntica ao Skype ou ao Zoom, mas mais focado “no conceito de gaming”, permitindo aos utilizadores comunicar enquanto jogam. Aqui, explica Miguel, os seus amigos podem partilhar mensagens escritas, fotografias, vídeos ou partilhar os seus ecrãs em direto, tudo num ambiente de “grande liberdade de criação”.

Whiplash (nome de utilizador) é membro da comunidade num servidor de um simulador de guerra, o Arma3. Todos os dias entra nos servidores das comunidades dos seus jogos preferidos, onde convive com aqueles que partilham a mesma paixão que ele - organizar jogos ou táticas. “A maior parte das pessoas que no Discord está ligada ao gaming. Toda a gente joga”, explica Whiplash.

No entanto, há canais públicos dedicados à ciência, à educação ou à programação de software. Há também servidores que permitem aprender novas línguas. Nestes canais é preciso obedecer às regras mais restritas da plataforma, que obrigam o utilizador a verificar a sua identidade, associando um contacto de telemóvel à sua conta. Depois é só utilizar o chat para escolher o seu nível de competência e aceder a aulas adequadas ao seu nível de aprendizagem. “O Discord é quase um mundo”, diz Miguel.

Mas é nos grupos privados onde o fator liberdade é maior - aqui o acesso só é possível por convite. Foi aqui que o jovem detido pela PJ utilizava o username PsychoticNerd#6116 e onde contou a um norte-americano os seus planos para executar um atentado no bloco 3 da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. O jovem americano alertou as autoridades, que fizeram a denúncia chegar à PJ, levando à sua detenção.

As teorias da conspiração

É nestes grupos em que funciona também uma rede servidores de streaming ilegal de filmes, jogos de futebol, desportos motorizados e “de tudo o que precisa de uma subscrição paga”. “Acabam por agregar conteúdos que estão dispersos em várias plataformas. Tudo de forma completamente gratuita”, revela Miguel.

O acesso a estes servidores não é feito com uma simples pesquisa. No caso de Miguel, a entrada foi facilitada por um amigo que está muito ligado ao meio. “Entrei nesse server com a minha conta de Discord e daí consigo entrar num site que me permite aceder a todo o conteúdo que eu quiser. Entro num dos chats, escrevo o nome do filme que quero ver e um ‘bot’ envia-me um link do filme - que abre instantaneamente.”

Há quem crie autênticas máquinas de fazer dinheiro com os seus servidores privados. A CNN Portugal falou com um jovem conhecido na rede como Goldstein, que pertence a uma comunidade no Discord focada no mundo das criptomoedas e análise técnica de gráficos financeiros. Para conseguir o acesso ao grupo é preciso pagar cerca de mil euros e, além de acesso ao servidor, recebe também acesso a um curso.

“Dentro do grupo há vários canais divididos por tópicos. Em alguns deles só o proprietário do servidor tem permissão para partilhar informação, como é o caso dos anúncios, moedas para deter a longo prazo, etc.. Noutros, todos podemos participar”, conta Goldstein. Além disso, os membros do grupo podem interagir através da funcionalidade de chamada de voz ou da partilha de ecrã, onde mostram gráficos dando indicações aos outros membros do grupo. “No fundo, é como uma reunião de zoom”, acrescenta.

O grupo tem também um outro lado, não menos comum na plataforma, onde se trocam “memes e conversas de teorias da conspiração”. Num dos servidores públicos explorados pela CNN Portugal, o “Social Heaven”, a troca de insultos entre utilizadores foi constante, que rapidamente se transformou num debate acerca da cor de pele de Jesus Cristo, culminando de seguida num debate geográfico acerca da localização da Babilónia. Os temas não têm limites, as conversações não param, mas há também muitos grupos públicos inativos.

À semelhança do Telegram ou do WhatsApp, o Discord centra-se na sua maioria em grupos privados de amigos, colegas de trabalho e até família, ou seja, em grupos que partilham uma ou mais características entre todos os seus elementos sobre as quais sentem o ímpeto de dialogar.

Preparado para morrer

O jovem de 18 anos que planeou um atentado na Universidade de Lisboa foi presente sexta-feira ao Tribunal de Instrução Criminal em Lisboa, onde lhe foi indicada a medida de coação de prisão preventiva. A CNN Portugal sabe que o crime esteve para acontecer no dia 7 mas o jovem hesitou quando já estava na Faculdade

O jovem estudante de engenharia preso por planear um ataque à Universidade de Lisboa tinha fascínio pela figura de homicidas cujos nomes ficaram conhecidos na sequência de crimes cometidos no estrangeiro ou em Portugal.

Numa rede social tinha como foto de perfil a imagem de Timothy O'Brien Smith, norte-americano que assassinou dois homens e duas mulheres num parque de lavagem de automóveis, no estado da Pensilvânia. Também numa publicação numa rede social fez referências a um português que, em 1988, assassinou quatro pessoas no quartel da GNR na Ajuda, em Lisboa.

Das pesquisas que fazia na Internet, tinha preferência pelas frases "mass shooting" e "school shooting" - referentes aos homicídios em massa cometidos em escolas americanas. Nas publicações e comentários mostrava desprezo pela vida e, quando cometesse o atentado, que faria dele "um herói", estava preparado para morrer - de preferência às mãos da polícia, como muitas vezes acontece nos Estados Unidos.

Relacionados

Crime e Justiça

Mais Crime e Justiça

Patrocinados