FDUL. A academia “tristonha e opressiva” que não afronta o poder (e até o alimenta com presidentes e ministros)

20 abr 2022, 07:00
Símbolo da Justiça (Getty Images)

Na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa há situações de assédio que são encaradas como “um ato de preparação para a vida laboral”. Quem conhece a faculdade por dentro reconhece que há “maus vícios” mascarados pelo peso da tradição. A lista de ilustres saídos destas salas de aula estende-se pelos mais diversos campos da vida pública, incluindo Presidentes da República e primeiros-ministros. Só no atual Governo contam-se 12 antigos alunos da FDUL. Um círculo de influência que as novas gerações asseguram ter-se perdido, mas que, entre docentes e dirigentes, continua bem fresco. “A nossa prática é não afrontar quem está no poder”, nem que para isso seja preciso bloquear a mudança que toda a comunidade educativa deseja

Quando se procura conquistar novas gerações, há um argumento no mundo académico que nunca falha: a lista dos ilustres que passaram pelos corredores onde os novos alunos ambicionam chegar. A Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL) não é exceção. Basta abrir a página da instituição para perceber o que ela já deu ao país: quatro presidentes da República e nove primeiros-ministros.

E Portugal é hoje governado num eixo com a marca de água da FDUL. De São Bento a Belém, até podem mudar as famílias políticas, mas não a formação académica. António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa travaram na mesma faculdade lutas que os afirmaram como políticos. Para o Presidente da República, que gosta de ser chamado de “professor”, não é apenas o local onde deu aulas, foi a casa que escolheu para as noites de vitória eleitoral.

A FDUL não vive separada das esferas de poder. Alimenta-se dele e alimenta-o, seja esse poder político, económico ou da magistratura. “A nossa prática é não afrontar quem está no poder”, conta à CNN Portugal um antigo dirigente, que pede para não ser identificado. Porque a rede de influências que tem para descrever é densa e obscura: “Mesmo as figuras que não estão visíveis conseguem escolher pessoas para determinadas posições, porque não podem elas ir, porque têm alguns anticorpos.”

Não afrontar o poder significa, muitas vezes, deixar tudo como está, cultivar o status quo, mesmo quando toda a comunidade clama por mudança. Mas, antes de falar dessas barreiras internas, importa perceber de onde vem essa relação com o poder.

Tradição ou “maus vícios”?

Há quem lhe chame a força da tradição. E quem prefira evitar a palavra, falando na força do costume, dos “maus vícios”. Porque alimentar a tradição significa ir alinhando os valores com os novos tempos, com as novas necessidades. A FDUL nasceu no início do século XX. Com a Universidade de Coimbra foram, durante sólidas décadas, as únicas a ensinar Direito no país. E, com isso, estreitou-se a relação com o poder. Também no Estado Novo era assim, mesmo que António de Oliveira Salazar olhasse para Coimbra com outro brilho.

“Há mais do que uma explicação [para esta relação com o poder]: a preparação técnica destas pessoas e o atraso com que avançaram os estudos de Direito noutras faculdades. Isso levou a que, durante muito tempo, [a FDUL] dominasse na política e na vida empresarial”, conta à CNN Portugal o professor catedrático Eduardo Paz Ferreira.

E é nessa história - e na própria natureza daquilo que é ensinado - que se consolidam as raízes de uma cultura académica que, apesar do afrouxamento nas gerações mais recentes, tem funcionado como um autêntico círculo de influência. “As faculdades de Direito eram propícias a gerar vocações políticas, porque lidavam com a organização do Estado. Nessa altura, não havia escolas de ciências políticas”, reforça José Ribeiro e Castro, político do CDS-PP que se formou na FDUL.

Um deputado socialista, que foi aluno e docente na FDUL e prefere não ser identificado, insiste que a Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa “não é diferente de nenhuma faculdade de Direito”. Se há uma relação sólida com o poder, diz, deve-se à produção científica e à confiança que ela desperta num “meio razoavelmente pequeno” como é Portugal. E os novos alunos tendem a concordar com este parlamentar: “O efeito de influência foi-se atenuando.”

Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa formaram-se na FDUL (António Cotrim/ Lusa)

Governo tem 12 membros vindos da FDUL

Há uma geração onde as amizades e convívios travados na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa se espelham na esfera pública. Veja-se o caso concreto do Governo: no anterior executivo, dois dos ministros – Siza Vieira e Eduardo Cabrita – foram colegas de faculdade de António Costa. Aí ficaram amigos.

Mas a presença de antigos alunos da FDUL no Governo continua a ser uma realidade vincada. Além de Costa, no atual elenco governativo existem duas ministras que frequentaram esta faculdade: Ana Catarina Mendes e Ana Mendes Godinho. A elas juntam-se nove secretários de Estado. Ao todo, 12 governantes vindos da FDUL, um número ligeiramente abaixo dos 19 da última legislatura.

E foi precisamente na Associação Académica da Faculdade de Direito, enquanto presidente, que António Costa começou a dar sinais de saber negociar (à esquerda) para conseguir levar a sua avante. A organização sempre foi encarada como uma rampa de lançamento para os novos valores da política, embora sem o fulgor que a marcou nas décadas de 1960 e 1970.

Jorge Sampaio, que viria a ser Presidente da República, conseguiu no ano letivo 1960/61 fazer história, com uma lista de esquerda a ganhar pela primeira vez a associação de estudantes. Depois, com a Revolução de Abril, o MRPP acabaria por tomar a gestão da associação numa Reunião Geral de Alunos – e, com isso, nomes como Durão Barroso ou Ana Gomes deram passos na sua afirmação política.

Uma realidade politizada que, apesar de ter perdido esse carácter vincado nos últimos anos, continua a tentar ser plataforma para quem procura vir a fazer da política a sua vida. Mas é preciso saber entrar num outro jogo – o da conformação - para conseguir ter frutos.

Forças de bloqueio

O retrato é o mesmo, quando se fala com alunos, antigos alunos ou professores: a Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa é “avessa à mudança”, uma “faculdade tristonha e opressiva”. “É muito difícil criar um espaço de liberdade e respeito naquela faculdade, a começar pela própria formação e pelo exemplo de ética frouxa que dão ali”, resume o antigo dirigente que pediu anonimato.

Chamam-lhe as dores de uma faculdade histórica. Métodos de ensino que assentam na exposição, sem confrontar o professor, pelo “medo” de que tal possa significar o rebaixamento do aluno. Mas, diz este também professor, o bloqueio faz-se em todos os sentidos: subir na carreira “depende totalmente de uma rede de influência” que, de forma mais ou menos clara, vai sendo escolhida para os concursos e para as avaliações.

Eduardo Paz Ferreira, cujo percurso na FDUL se aproxima do fim, confessa que esperava que a democratização do ensino tivesse trazido outro espírito à faculdade. “O que foi muito surpreendente e desagradável foi que todos pensávamos que isso se ia traduzir numa faculdade mais aberta e transparente”.

E há exemplos, entre os relatos que chegaram à CNN Portugal, que comprovam como esta dinâmica contamina até as ações aparentemente mais simples: como o bloqueio a uma campanha de recolha de produtos menstruais, que muito burburinho gerou nos corredores da faculdade. Ou alunos que, por terem um sotaque das ilhas, acabaram gozados pelos próprios professores.

Alunos lamentam falta de ligação com antigos alunos (apesar de uma extensa lista de ilustres)

Os ilustres (que de pouco servem aos alunos)

O que têm em comum Ramalho Eanes, Pedro Santana Lopes, Luís Menezes Leitão, Nazaré Costa Cabral, Vitalino Canas, António Vitorino, João Vale e Azevedo, Mota Amaral ou Leonor Beleza? Foram todos alunos da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Mas, apesar de uma lista ilustre que se estende em diferentes campos da vida pública, os alunos mais recentes queixam-se de que a faculdade não explora esse apoio. O círculo de influência que existiu no passado ficou aí mesmo, no passado.

“Nunca olhei para os estagiários pela sua proveniência. Não tenho relação especial com a faculdade”, confessa à CNN Portugal um dos mais conhecidos advogados portugueses, formado na FDUL, que preferiu não ser identificado. E um aluno licenciado já nesta década confirma que não há atalhos para o mercado de trabalho: “Os colegas que conheço em grandes escritórios tiveram de enviar o seu currículo. A faculdade não divulgava muitas iniciativas.”

Francisco Cordeiro Araújo, que frequentou a FDUL, alinha no mesmo cenário: “Sinto que a faculdade vive do slogan ‘A melhor faculdade do país’. Falha na ligação ao mercado internacional, na integração no mercado de trabalho e na ligação a antigos alunos, como há noutras faculdades”. Hoje é responsável pelo projeto “Os 230”, onde procura promover a literacia nas questões políticas. Cultivou o gosto pela política na faculdade mas garante que essa ligação não é incentivada pelos professores. “Há interesse pelo associativismo, pela vontade de participação. Mas julgo, comparando com o período em que a faculdade era muito politizada, que as próprias juventudes partidárias não têm muito peso na vida académica. Já não há listas por forças políticas, por exemplo”, explica.

O contexto perfeito para o assédio?

Com este ambiente de resistência, de conformação, estão criadas as condições que favorecem situações de assédio, como aquelas que a Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa tem protagonizado? A sensação geral é de que sim: uma tradição de medo cultiva o silêncio. Sobretudo quando está já interiorizada a “cultura de achar que as coisas são muito difíceis” e que os professores são senhores e donos do conhecimento e da razão.

“Essas situações [de assédio] são vendidas, às vezes, como um ato de preparação para a vida laboral”, lamenta o ex-dirigente contactado pela CNN Portugal. Como se ser gozado, rebaixado, humilhado ou mesmo abordado sexualmente fosse um ritual de iniciação para o mundo do trabalho e para as exigências da advocacia.

As vítimas, as que começam agora a quebrar o silêncio, querem um mundo (e uma faculdade) diferente.

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