Precariedade laboral, desconhecimento e amor à camisola: este é o "terreno fértil" que permite o assédio no mundo artístico. "É preciso mudar"

7 jun, 18:00
Dança (GettyImages)

O Muda é um projeto liderado por três atrizes que querem transformar práticas de trabalho de modo a prevenir situações de assédio e abuso laboral, moral e sexual nas artes performativas em Portugal. O primeiro passo é dado este mês, com a realização de um inquérito nacional para perceber a verdadeira dimensão do problema. Na verdade, o problema é transversal: também a Mutim – Mulheres Trabalhadoras das Imagens em Movimento vai apresentar o primeiro Manual de Boas Práticas o Cinema e Audiovisual em Portugal"

Fala-se cada vez mais em assédio no meio artístico, mas sabemos exatamente de que tipo de assédio estamos a falar e quão frequente é? Isso é o que se vai tentar saber através de um inquérito a realizar a partir deste mês junto de trabalhadores das áreas das artes performativas e dos cruzamentos disciplinares. O estudo científico, que tem o apoio da Direção-Geral das Artes (DG-Artes) é promovido pelo Muda, um projeto liderado pelas artistas Catarina Vieira, Raquel André e Sara de Castro que tem como objetivo prevenir e combater os diferentes tipo de assédio nas artes em Portugal.

Tudo começou em 2018 com uma série de conversas que juntaram mulheres das artes, sobretudo do teatro e dança, mas também do cinema e da música, onde se debateram questões ligadas à precariedade, à paridade, às dificuldades de as mulheres acederem à profissão. “Fomos percebendo que o assédio era um tema recorrente, que era trazido para as conversas por muitas mulheres”, recorda Sara de Castro. Em 2022, com a Plateia - Associação de Profissionais das Artes Cénicas e o Cena-STE - Sindicato dos Trabalhadores dos Espetáculos, realizaram-se mais dois encontros, em Lisboa e no Porto, já especificamente sobre assédio na cultura, e foi então que ficou clara “a necessidade de fazer um trabalho mais profundo”, desde logo para se saber exatamente do que estamos a falar. “Só temos um conhecimento intuitivo, de conversas, testemunhos que nos vão chegando. E sentimos que era necessário fazer um mapeamento do assédio, para depois pensarmos em formas de agir", explica a atriz à CNN Portugal.

Foi assim que surgiu a ideia do Muda, que foi apresentado em abril. "Muda" porque se quer mudar, mas também porque se quer acabar com o silêncio sobre este tema. 

A "romantização" do trabalho nas artes e a falta de regras

Antes de mais, convém dizer que ao falar de assédio não se está só a falar de assédio sexual, mas sobretudo de assédio laboral e moral. “Estamos a falar de práticas disseminadas, que começam logo nas escolas, são passadas aos alunos e normalizadas”, explica a atriz. Os jovens que entram no mundo das artes são avisados sobre as dificuldades do mercado do trabalho e a enorme concorrência e que, portanto, vão ter de se sujeitar a determinadas situações. 

Por exemplo, é esperado que aceitem trabalhos onde não são pagos ou recebem muito pouco, em que nem sequer há contratos assinados. É esperado que trabalhem em horários não convencionais e que trabalhem muitas horas, que estejam disponíveis todos os dias, que não tenham folgas nem férias. “Quantas vezes sabemos a que horas começa um trabalho, mas não sabemos a que horas termina? E se perguntamos ou se que dizemos que precisamos sair a determinada hora isso é mal visto, sabemos que já não nos vão chamar para outro trabalho. As pessoas aceitam porque é um setor com uma enorme precariedade.” Num meio tão pequeno, não convém fechar portas se se quer ter uma carreira.

“A experiência que temos é que alguns abusos surgem do facto de o nosso corpo ser objeto de trabalho, as nossas emoções, muitas vezes a nossa autobiografia. Existe um engajamento emocional, afetivo, muitas vezes até ideológico com os projetos em que participamos. O chamado amor à camisola.” Torna-se difícil distinguir entre o que é um trabalho e o que é a paixão que move os artistas. “Dizem-nos que somos uns privilegiados por fazermos o que gostamos, e é verdade. Mas não deixa de ser o nosso trabalho e aquilo que fazemos para ganhar dinheiro e pagar as contas.”

A “romantização” do mundo das artes faz com que “determinados comportamentos não sejam vistos como assédio, quando noutra situação qualquer seriam”. “Muitos artistas não se veem como trabalhadores, com direitos e deveres. Em nome da arte, da missão, do seu papel especial no mundo, como artistas, permitem situações que, noutros trabalhadores, seriam inaceitáveis. Esta é uma cultura normalizada no setor, que é ensinada aos jovens desde que entram na profissão. E estes são territórios férteis para o assédio.”

Por exemplo, é muito frequente haver “uma relação idealizada com os mestres”. “Trabalhamos com pessoas cujo trabalho admiramos, queremos aprender, seguir os seus passos, ser reconhecidos por eles.” E isso leva a que, muitas vezes, surjam relações pouco claras, conversas e comportamentos inadequados, mas que são aceites. 

Por outro lado, os artistas trabalham com o seu corpo, e parte-se do princípio de que não há limites. “O toque, a nudez, a intimidade, muitas vezes isso nem é negociado, e deveria sê-lo. Nunca se fala em consentimento, parte-se do princípio de que se és atriz permites tudo.”

Primeiro, conhecer a realidade; depois, mudá-la

Sara de Castro admite que, felizmente, há cada vez mais consciência sobre estas situações. “Tem havido ações pontuais e denúncias, mas achamos que ir para a comunicação social ou para as redes sociais denunciar nomes muitas vezes deixa a pessoa que denuncia altamente vulnerável e os efeitos para quem assedia não são os esperados. Não criticamos quem o faz, mas essa nem sempre é a melhor solução.” Apesar de considerar importante punir os agressores, o Muda está mais focada em prevenir as agressões. 

O plano do Muda começa, primeiro, pelo tal mapeamento, com a realização de um estudo científico junto dos profissionais das artes performativas e setores transdisciplinares, financiado pela DGArtes e conduzido por uma equipa multidisciplinar de investigadoras: as psicólogas Ana Bártolo e Isabel Silva, a socióloga Dália Costa e a advogada especialista em direito do trabalho Joana Neto. “Estamos há três anos a tentar obter financiamento, mas finalmente temos condições para arrancar”, diz a atriz. O inquérito para recolha de dados começa a ser partilhado este mês e irá prolongar-se até setembro, estando prevista a publicação final dos resultados em março de 2026. Seguir-se-á uma fase de discussão, promovida pelo Muda, e que se quer muito abrangente.

Sara de Castro acredita que não serão só mulheres, mas provavelmente serão mais mulheres do que homens a passar por situações destas. “Aquilo que já sabemos, da nossa experiência, é que é preciso haver mais informação. Há muitos equívocos. As pessoas não sabem o que é o assédio e muitas vezes nem percebem que sofreram assédio. Como estas práticas estão normalizadas as pessoas não identificam. Depois, não sabem como denunciar, não conhecem a legislação. E, por fim, têm medo das consequências.”

 

Portanto, depois do inquérito, o primeiro passo tem de ser informar e empoderar todas as pessoas que trabalham na cultura, conversando abertamente sobre o tema. “Para que as pessoas estejam preparadas para prever a situação e saber o que fazer antes que a situação evolua. Muitas vezes é no assédio moral que se inicia o assédio sexual, tenho de parar isto já”. E, depois, para que “percebam que não são as únicas, que não estão sozinhas. Ter uma rede é um fortalecimento enorme”.

“Temos ouvido histórias de danos muitos profundos, pessoas que desistem desta área, que têm de ser acompanhadas por psicólogos. É muito difícil. Tem de haver um acompanhamento. Quando nos chegam histórias de pessoas que estão em sofrimento, caladas e sozinhas, pensamos que algo tem mesmo de mudar", afirma Sara de Castro. 

Por isso, o Muda assume que tem como principal objetivo transformar práticas de trabalho que permitem situações de assédio, não consentimento, abusos de poder, manipulação e vitimização. “Esperamos que desse estudo científico possam sair recomendações das investigações em relação ao que pode ser feito. Queremos fazer ações de formação, não só com profissionais, mas também com professores e alunos”, explica Sara de Castro. A ideia é também criar um manual de boas práticas para o setor e, finalmente, seria importante “haver uma alteração legislativa no código de trabalho, uma vez que os vínculos laborais são muito curtos e não contemplam ações fiscalizadoras da ACT - Autoridade para as Condições do Trabalho”.

"Cada vez estamos mais informados, mais conscientes do que se passa. É mesmo preciso mudar o paradigma. Pensamos que é possível uma mudança mais estrutural se formos à raiz o problema. Essa é uma missão mais lenta, mas mais profunda."

A preocupação é transversal - o cinema já tem um manual de boas práticas

O caminho que a Muda está a fazer cruza-se com o trabalho que a Mutim – Mulheres Trabalhadoras das Imagens em Movimento tem feito também desde 2022. Com um âmbito um pouco mais alargado, esta associação preocupa-se com a paridade no setor, tentando contribuir para "uma representatividade equitativa e realista" das mulheres nas várias fases da produção cinematográfica e audiovisual. Depois de um primeiro estudo - que sublinhava as condições de precariedade de todo o setor, mas em especial das mulheres -, de ações de formação e outras ações com o objetivo de dar mais visibilidades ao trabalho das mulheres, a Mutim prepara-se para lançar na próxima quarta-feira um "Manual de Boas Práticas para o Cinema e Audiovisual em Portugal".

Este manual pretende ser "uma ferramenta prática, ética e jurídica para a promoção de ambientes de trabalho mais seguros, inclusivos e respeitadores no setor do cinema e audiovisual", propondo medidas concretas de prevenção e resposta a situações de assédio, discriminação e outras formas de violência no local de trabalho.

Resultado de um processo colaborativo entre profissionais do setor, juristas e investigadoras, o manual tem autoria de Ana Sofia Pereira e Camila Lamartine, revisão jurídica de Leonor Caldeira. No comunicado divulgado, as autoras salientam que “o combate ao assédio moral e sexual nos setores do cinema e do audiovisual em Portugal não pode ser uma preocupação passageira — é uma transformação estrutural essencial e urgente. É um caminho, uma jornada que só pode ser percorrida em conjunto”. E referem o papel essencial das empresas, sindicatos e profissionais da área na implementação de políticas eficazes e na promoção de uma cultura de tolerância zero ao assédio.

“Este manual é um instrumento essencial de transformação cultural no setor", afirma Leonor Caldeira. "Mais do que um guia sobre como reagir ao assédio, prima pela atuação na prevenção, procurando promover ambientes de trabalho seguros, respeitadores e criativos, onde a dignidade de todas as pessoas seja uma prioridade inegociável”.

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