Depois de um ano sem casa, os Artistas Unidos estão a instalar-se num armazém em Marvila. O espaço precisa de um "investimento gigante", mas já é possível fazer ali teatro. A partir desta quarta-feira, as portas estão abertas
É um armazém enorme. Entra-se por um portão azul, na rua do Açúcar, número 37, em Marvila (Lisboa), e estamos neste espaço com mais de 800 metros quadrados, muito degradado, mas onde começa a nascer uma nova sala de espetáculos. É aqui que os Artistas Unidos se estão a instalar e é aqui que pretendem ficar, se tudo correr bem, durante muitos anos. Já há um sofá numa zona de receção ao público, uma plateia com cadeiras vermelhas, umas cortinas a servirem de cenário, luzes rudimentares para iluminar o "palco". E mesmo havendo ainda tanto por fazer, aqui já há teatro. "Jantar", com texto de Moira Buffini e encenação de Pedro Carraca, que se estreia esta quinta-feira, "é oficialmente a peça de abertura da nova temporada, da nova casa, da nova época e é a peça número 200 dos Artistas Unidos". "O que nos dá, de repente, um ar já de cabelos brancos", brinca o encenador. Há 20 anos estavam n'A Capital, a tentar criar uma sala de teatro do zero, num prédio em ruínas no Bairro Alto. E agora parece que vão começar tudo de novo.
Até há pouco tempo este era o armazém onde estava guardado o espólio do produtor de cinema António Cunha Telles. As paredes ainda estão repletas de cartazes de filmes, de Corte de Cabelo a Hellboy, as divisórias envidraçadas moldam o espaço dos escritórios que aí funcionavam. No sótão, entre muitos quilos de lixo, foi deixada uma mota que, quem sabe, poderá entrar num espetáculo futuro.
"A Câmara dá-nos as paredes e o resto temos nós de tratar", explica o ator e encenador Pedro Carraca, um dos pilares do grupo. Será preciso arranjar o telhado - "estamos à espera da primeira chuva para perceber exatamente o estado do telhado, mas sabemos que é mau" - instalar um novo sistema elétrico, canalizações, pinturas, plano de acessibilidade, plano de segurança. "Tudo isso teremos que ser de nós garantir."
Tudo isso e ainda mais as necessidades específicas de um espaço que se quer polivalente e com capacidade para apresentar espetáculos de diferentes tipos. “Vemos aqui um espaço numa zona com potencial no futuro, que tem um tamanho e uma área muito interessantes e com muitas possibilidades, mas onde vai ser preciso um investimento gigante”, na ordem de “um milhão de euros” - fazendo as contas por baixo.
"É um privilégio ter um palco com 30 metros de profundidade. Acho que há muitos poucos palcos em Portugal neste momento que tenham esta profundidade E temos uma boca de cena com 14 metros." A ideia é fazer uma black box com possibilidade para ter uma, duas ou três salas, conforme os projetos que estejam a ser montados. "Uma sala multiusos, com possibilidade de variação de ponto de vista, de ser maior ou mais pequena." Tudo o resto ainda está por decidir. "Depende de quanto é que custa o telhado e depois logo veremos o que é que vamos conseguir fazer."
"Para já, funcionamos como um espaço temporário, que tem menos exigências. Ainda temos que pedir a licença para funcionar permanentemente", avisa Pedro Carraca. Abrem agora porque não podiam esperar mais. Porque já estiveram um ano sem casa e porque queriam muito começar a trabalhar aqui o mais depressa possível. "A casa está podre, ainda está completamente desarrumada, não está pintada, nem pronta para receber pessoas. Mas vamos abrir e mostrar como é que ela está” - e como irá melhorando, ao longo do tempo.
Esta quarta-feira, a partir das 15:00, as portas estarão abertas para quem quiser ir ver o Teatro Paulo Claro, a nova casa dos Artistas Unidos.
Um ano a pedir abrigo aos amigos
Fundada em 1995 pelo ator e encenador Jorge Silva Melo, a companhia já esteve em vários espaços da cidade. Em julho de 2024 foi obrigada a sair do Teatro da Politécnica, espaço que é propriedade da Universidade de Lisboa e onde a companhia já tinha estado nos últimos 13 anos. "Quando nós saímos da Politécnica, começámos imediatamente a falar com a Câmara de Lisboa, que nos foi propondo vários espaços diferentes, que nós fomos recusando porque não serviam os nossos interesses, e fomos dizendo mais ou menos de que é que precisávamos", conta Pedro Carraca. "Precisávamos de um espaço com uma área grande, com um pé direito alto, que pudesse albergar a montagem de espetáculos e onde houvesse duas salas porque achávamos que não devia ser só o nosso espaço - queríamos voltar um bocadinho ao objetivo primário da Artes Unidos, que era servir mais do que um grupo."
Os Artistas Unidos são, para começar, Pedro Carraca, António Simão e João Meireles - estes são os sócios-gerentes, que estão aqui praticamente desde o início e que, agora, a par do trabalho como encenadores e atores assumem a responsabilidade pelas áreas-chave do grupo. Mas não estão sozinhos. Os "artistas" são muitos, uns com funções diárias, outros com colaborações regulares, assegurando a produção, a comunicação, a cenografia, os figurinos, a luz, o som e tudo o mais.
O último ano, desde que deixaram a Politécnica em julho do ano passado, foi um verdadeiro desafio à sobrevivência da companhia. "Foi bastante difícil. Fica tudo mais lento e mais caro quando tens os serviços distribuídos pela cidade. Fica tudo mais tenso, mesmo dentro da própria equipa. Mas queríamos muito cumprir a programação porque sabíamos que estávamos em falta com as nossas obrigações com a DG-Artes", diz Pedro Carraca. Apesar de todas as dificuldades, nunca pararam.
"Nós conseguimos sobreviver devido à simpatia de outros grupos que demonstraram imediatamente solidariedade connosco. Estávamos dependentes da bondade daqueles que nos podiam acolher", explica. Acolhendo-os não só disponibilizando espaços para se apresentarem como também ensaiar e até para guardar todo o espólio da companhia.
Até que finalmente surgiu a hipótese de irem para este armazém em Marvila. "Este espaço tinha bastantes problemas jurídicos a resolver e não sabíamos quanto tempo iriam demorar, mas pareceu-nos um espaço muito possível, tem um dimensão que permite pensar um futuro." Outra das exigências do grupo era que o espaço não fosse "por dois ou três ou quatro anos". "Queríamos que fosse no mínimo por 10 anos. E foi isso que nos deram, com a hipótese de renovar depois." O grupo paga uma renda "bastante acessível", mas sabe que tem pela frente um longo caminho e muitas despesas para transformar este armazém numa sala de espetáculos.
A par disso, há que descobrir este novo bairro e trazer o público a Marvila. "A nível de acessibilidades é mais difícil [do que o Príncipe Real, onde estavam], mas estamos bem rodeados com bons vizinhos, com o Teatro Meridional e a Companhia Portuguesa de Arte Contemporânea, que já foram abrindo este caminho para nós. Eles facilitaram-nos esse trabalho. Mas ainda não sabemos efetivamente como é que vai ser."
O "Jantar" está servido e promete gargalhadas
"Jantar" é uma peça da dramaturga e argumentista inglesa Moira Buffini. Um casal recebe os amigos para um jantar especial, com uma ementa recheada de pratos exóticos servidos por um criado perfecionista e silencioso. Ao longo da noite, à medida que os convivas vão brindando e bebendo copos de vinho, as conversas soltam-se, revelam-se segredos, as discussões sobem de tom.
Esta peça surgiu na mesa de trabalho dos Artistas Unidos há três anos através de uma proposta de Catarina Campos Costa, a atriz que faz o papel de Paige, a anfitriã do jantar, e Pedro Gil, que entretanto teve que abandonar o projeto. "Achei o texto bastante engraçado, um bocadinho fora da linha dos Artistas Unidos mas que podia ser feito por nós", conta Pedro Carraca. Mas como a peça precisava de um elenco grande acabou por ir sendo adiada. "Quando surgiu a hipótese de vir para este espaço lembrámo-nos dela, pensando que gostaríamos de entrar neste novo espaço com uma comédia."
"É uma comédia negra, com partes surpreendentes, bastante ácida, bastante acutilante nas piadas e que, embora já tenha 20 anos, aborda temas que estão muitos presentes neste momento", explica Pedro Carraca. "Interessou-me muito trabalhar esta ideia das novas filosofias de autoajuda, centradas no eu e na rejeição da responsabilidade sobre os outros. O que é que temos de fazer, o que é que devemos fazer e o que é que podemos fazer."
O desafio maior foi adaptar o estilo de representação dos Artistas Unidos ao ritmo e aos tempos da comédia. Foi preciso "acelerar" um pouco as coisas. "A partir daí, os atores vão criando a loucura das suas personagens."
Os "comensais" deste "Jantar" são Catarina Campos Costa, Gonçalo Carvalho, Inês Pereira, Pedro Caeiro, Raquel Montenegro, Tiago Matias e Vicente Wallenstein. O esetáculo fica em cena até 15 de novembro.