O último rei de Portugal "não estava necessariamente contra a República". Como D. Manuel II elogiava Salazar, mas não viu este concretizar o seu plano

16 out 2022, 22:00
D. Manuel II

Entrevista a João Miguel Almeida, historiador e investigador, que escreve a biografia do último rei de Portugal. O monarca que fez acordos secretos com o Partido Socialista, elogiou Afonso Costa e viveu a maior parte da curta vida no Reino Unido, cujo plano passava pela restauração monárquica, que nunca chegou a acontecer

Investigador e historiador do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova, João Miguel Pereira é o autor da mais recente biografia do último, e esquecido, rei de Portugal - D. Manuel II.

Rei acidentalmente, após o assassinato do pai, D. Carlos I, e do herdeiro, Luís Filipe, subiu ao trono aos 19 anos e reinou por dois anos, até à implantanção da República. Viveu a maior parte da vida no exílio, nos arredores de Londres, ao lado da mulher, a princesa Augusta Vitória Hohenzollern-Sigmaringen, neta da sua tia-avó Maria Antónia. Morreu aos 42 anos, sem descendência, mas com um legado que vai para lá da vasta coleção de livros à guarda da Fundação da Casa de Bragança, e que se estende a António Ferro, nacionalista e ministro da propaganda de Salazar. 

O livro "D. Manuel II, a biografia do último rei de Potugal" (Manuscrito) traça um paralelo entre a vida do rei e as instituições portuguesas.

João Miguel Almeida

O que o levou a escrever uma biografia sobre o rei D. Manuel II? 

Embora não faça uma história social da aristocracia, tenho estudado a relação entre os católicos e a política no Estado Novo. Depois recuei para o final da monarquia e Primeira República, centrando a minha investigação no Centro Católico Português, que é o partido que após a Grande Guerra, seguindo as orientações do Papa da altura, Bento XV, intervém publicamente, está representado no Parlamento, e tenta defender os direitos e interesses da Igreja Católica no contexto republicano. Isso causa grandes polémicas. Estes católicos do Centro Católico Português, que após a Grande Guerra e após o fracasso da Monarquia do Norte, acham que a prioridade não deve ser a mudança do regime, mas a defesa dos interesses da Igreja Católica em qualquer regime.

Eu tinha começado por estudar esta questão do lado oposto, ou seja, dos adversários de D. Manuel II. Quando foi feito este convite para escrever a biografia de D. Manuel II, achei interessante porque permitia-me perceber melhor o outro lado, ou seja, os católicos monárquicos que estão contra o Centro Católico Português. O D. Manuel II não está necessariamente contra a República, mas está contra a política religiosa do Centro Católico Português.

Pode explicar melhor o que quer dizer com "não está contra a república"?

Ele quer a restauração monárquica, e há quem o acuse de não querer. Entendem que ele não se empenha suficientemente na restauração da monarquia. 

Porque ele tem esta visão de que as instituições não podem voltar a ser o que eram quando ele deixa Portugal?

Não, é porque ele, além de monárquico convicto, é um nacionalista. Ele considera que no contexto da Grande Guerra, e principalmente no contexto da Grande Guerra, que há o perigo de uma guerra civil em Portugal servir de pretexto para a Espanha invadir Portugal e anexar Portugal. E, portanto, ele não é contra a restauração monárquica, mas é muito cauteloso e quer evitar uma guerra civil descontrolada, em larga escala, que sirva de pretexto a Espanha para anexar Portugal. Ele é prudente. O ideal para ele seria que a monarquia fosse restaurada por pronunciamento das Forças Armadas como tais, mas a ideia de ter, no fundo, quase um grupo de guerrilheiros monárquicos a entrar no país e a desencadear uma guerra civil, ele tem muitos receios em relação a essas incursões monárquicas e por isso também a monárquicos neste neste período que o criticam muito. 

Consideram isso uma falta de convicção. 

Estudando bem, não é propriamente por falta de convicção. Ele tem convicções nacionalistas que se sobrepõem às suas convicções monárquicas e ele privilegia as instituições. Portanto, para ele, o ideal seria que fossem as Forças Armadas a pronunciar-se sobre a restauração monárquica e, no período do pós-guerra, a sua preferência é fazer uma campanha pela restauração monárquica, tendo em vista um horizonte de longo prazo, uma espécie de guerra simbólica à I República feita através dos jornais, feita através das eleições, porque há um partido monárquico que passa a participar no Parlamento e, portanto, ele tem muito a ideia de de fazer a restauração monárquica ganhando apoio nas bases. Os monárquicos irem conquistando os municípios, levar as Forças Armadas, e haver um movimento popular amplo a apoiar a restauração monárquica. Nunca chega a acontecer. 

Em que ponto é que esse trabalho está quando D. Manuel II morre? Produz algum efeito nesse sentido? 

Ele morre em 1932, quando o Estado Novo se começa a definir, portanto, a constituição do Estado Novo é de 1933, um ano depois. Ele tem expectativas em relação à ditadura militar em 1926 e a ditadura militar no início é um movimento muito indefinido. É feita por militares que não têm propriamente uma doutrina. Acontece no momento em que há uma grande irritação - quer à direita, quer à esquerda - com o Partido Republicano Português, que é dirigido por António Maria da Silva. Não há a noção imediata de que o 28 de Maio vai dar origem a uma ditadura que vai durar muitos anos. Aquilo é mais um pronunciamento militar e, portanto, o D. Manuel II tem expectativas.

Na verdade, passa pouco tempo entre 28 de Maio e a morte de D. Manuel II. 

Sim, e é um tempo de grande indefinição, pois é um tempo de transição da ditadura militar para o Estado Novo. E ele inicialmente tem uma grande expectativa em relação a Salazar, admira aspectos específicos da sua obra, nomeadamente no campo das finanças e a restauração do prestígio internacional de Portugal. Mas o apoio que ele dá a Salazar é condicional. Aliás, eu cito no livro algumas cartas que D. Manuel II dirige a Salazar em que já mostra uma atitude crítica. Ele diz que o Estado está mais rico, mas os portugueses estão mais pobres. Isto no início da década de 30. O António Ferro entrevista D. Manuel II nessa altura, em 1930, e ele tenta apanhar D. Manuel II num apoio claro a Salazar e ele diz, de uma forma muito inteligente, que o Salazar é uma figura nacional e tem grandes qualidades como o Afonso Costa.

Ele apoia paradoxalmente Afonso Costa, e é o único católico conservador que eu conheço que o elogia publicamente. Ele apoia o Afonso Costa por causa da posição de Portugal na Grande Guerra, o que é um pouco paradoxal, porque quando se entra na Grande Guerra há um certo consenso entre as elites republicanas e monárquicas de que Portugal deve entrar na Grande Guerra para defender as colónias. Mas a modalidade dessa intervenção é muito discutível. O Afonso Costa e uma parte dos republicanos é que forçam a entrada de Portugal no palco europeu, porque acham que isso é uma forma de consolidar a República. Quando a Grande Guerra começa, só há duas repúblicas na Europa: França e Suíça. E Portugal, que é uma República com grande instabilidade política e um fraco prestígio internacional. O Afonso Costa e muitos republicanos acham que a entrada de Portugal é importante para consolidar a República e muitos monárquicos estão contra essa entrada de Portugal na Flandres, mandando tropas para combater na Europa. Estão contra os republicanos e alguns até são germanófilos e acham que a vitória das monarquias da Europa Central vai servir para a restauração monárquica. E há muitos monárquicos que defendem a neutralidade de Portugal com uma intervenção, quando muito, em África, para defender as colónias e nada mais do que isso. 

O D. Manuel II defende, paradoxalmente, também a entrada de Portugal de corpo inteiro na Grande Guerra, porque ele diz, numa carta, se a Inglaterra perde a guerra, Portugal perde a independência, seja a República, seja monarquia. Nessa entrevista ao António Ferro em 1930, é muito engraçado ele comparar os elogios que faz ao Salazar com elogios a Afonso Costa, claramente um adversário político. Mas isso também dá ideia do seu apoio a Salazar, um apoio condicional. Salazar, por seu turno, quer conquistar o apoio dos monárquicos para o Estado Novo e, portanto, tem uma admiração sincera por D. Manuel II, mas vai adiando sine die a restauração monárquica, porque no Estado Novo há grandes divisões também sobre essa questão. Há monárquicos - por exemplo, Pedro Teotónio Pereira e Mário de Figueiredo, que são figuras monárquicas muito importantes no Estado Novo - mas também há republicanos conservadores. Franco Nogueira era republicano e, portanto, Salazar não quer que a questão monárquica divida os apoiantes do Estado Novo, vai empatando a questão e nunca chega a haver uma restauração. 

Politicamente, quem são as referências de D. Manuel II? Parece ter tido uma educação progressista, mas até que ponto isso foi determinante na tomada de decisões? 

Ele nunca pensa que vai ser rei, mas tem a mesma educação que o príncipe herdeiro [Luís Filipe], têm exatamente os mesmos professores. E o príncipe herdeiro é educado para ser o rei de uma monarquia constitucional liberal. O liberalismo nesta época - no final do século XIX, início do século XX - também não é o liberalismo das revoluções liberais. É o liberalismo que o Eric Hobsbawm chama a era do império, uma fase em que há uma grande disputa na Europa em torno de África e por isso a questão do Ultimato fragiliza muito a monarquia constitucional. Ele é um monarca constitucional. O que é que isso quer dizer? Quer dizer que ele defende uma monarquia católica, mas onde há uma supremacia do poder civil sobre o poder religioso. Os padres são funcionários públicos e há um certo controle da monarquia sobre a carreira dos padres seculares. Ele, sendo monárquico liberal, é particularmente anglófilo. Dentro desta referência liberal, ele tem uma grande admiração e uma grande ligação ao Reino Unido e ao liberalismo britânico. Ao estudarmos a sua atuação como rei, chegamos à conclusão que, usando uma palavra que na altura não se usava, até é mais progressista, mas ele não é visto como tal. Ele negoceia com o Partido Socialista, mas essas negociações são secretas e são descobertas já no período da República. E os republicanos consideram que todos os católicos são reacionários e, portanto, ele, sendo católico, é necessariamente conservador e reacionário. Ao estudar a questão, chego à conclusão que, sobre matérias sociais, ele está bastante à frente do que era o movimento social católico, que era anti-socialista. Isso é inconsequente, mas mostra o contrário do que muitos julgam, que está nas mãos dos jesuítas e é instrumentalizado pela mãe. Ele é muito influenciado por uma velha figura do Partido Progressista, que é o José Luciano de Castro, mas a ideia de negociar com o Partido Socialista vem das suas próprias convicções. 

Naquele contexto, Portugal estava muito atrasado. A monarquia constitucional reconhecia as liberdades individuais e direitos cívicos, mas o que hoje chamamos direitos sociais praticamente não existiam. Era uma monarquia católica em que os trabalhadores nem sequer tinham o direito de descansar ao domingo. Portanto, o Partido Nacionalista, que é o Partido Conservador, de inspiração católica, ligado aos jesuítas, tem no seu programa uma medida que é introduzir o descanso dominical para os trabalhadores, no final da monarquia constitucional. E o Partido Socialista considerava que a prioridade era fazer melhorias com o Partido Socialista, que também também vive de diversas tendências dentro do Partido Socialista. Mas a tendência de Azedo Gneco, que é a pessoa com quem D. Manuel II tenta negociar, a prioridade não era mudar o regime, mas conseguir melhorias sociais para os trabalhadores portugueses. E, portanto, é nessa base que ele tenta negociar alguns direitos sociais. 

D. Manuel II tem esta característica de ser quase um factoide da história de Portugal. Existe a sensação que o último rei foi D. Carlos, mas afinal houve outro a seguir. O reinado dele é muito curto, o exílio, sendo maior, também é curto. Ele vive pouco e, portanto, é um rei esquecido. 

Exatamente.

Ele tem um impacto real em Portugal? 

Sim, de certo modo, ele é considerado uma espécie de rei póstumo. Ele não tem grande impacto na vida política comparável com D. Carlos. O que me interessou também nesta biografia foi tentar compreender uma época. O D. Manuel II como tema de estudo é bastante interessante para perceber melhor as instituições políticas e o que se chamam as figuras sociais daquele tempo. Winston Churchill, que é a pessoa que nós conhecemos, achava que o D. Manuel II tinha grandes qualidades pessoais, faz-lhe grandes elogios. Sou levado a concordar com Churchill. De facto, tinha qualidades que faltaram a outros políticos do seu tempo. A grande questão é: porque é que, apesar dessas qualidades, ele não consegue mudar o rumo da história? E eu acho que esta biografia contribui para explicar isso, porque não foca só qualidades pessoais em seu percurso individual, mas também as instituições e as condições socioeconómicas e políticas daquele tempo. 

As instituições aí jogaram um papel?

Sim, sim, claramente. O D. Carlos I tenta seguir por uma via que já tinha sido teorizada por Joaquim Pedro de Oliveira Martins que é a modernização autoritária - reforçar a autoridade do Estado e, por essa via, alcançar alguns aspectos de modernidade. O D. Manuel II até é mais moderno do que o D. Carlos, no sentido em que quer implementar reformas sociais, etc. Em termos de conceção do poder, ele está num dilema e entra numa grande contradição: ele não quer seguir a via autoritária de D.Carlos I e a do João Franco [chefe do governo], porque isso tinha dado na desgraça que tinha sido por regicídio, mas também não pensa sequer em democratizar, porque aquele sistema político oligárquico com uma elite política pequena em que o rei decidia quem ia governar, essa pessoa organiza as eleições e ganhava-as sempre.

O D. Manuel II está numa situação em que não quer exercer o poder de rei afirmando a sua autoridade, mas também não consegue dar um impulso novo. A estratégia era, a longo prazo, conseguir uma melhor reorganização social e, por isso, ele convidou o economista e sociólogo Leon Ponsard para fazer um relatório e, portanto, havendo uma melhor organização do trabalho, isso acaba por influenciar a política. É esse o seu pensamento. Mas isso só seria um resultado a longo prazo e, portanto, ele falha. Portanto, ao contrário do que se diz, ele tem um pensamento próprio, estratégias próprias, mas, em termos políticos, isso não é suficiente.

D. Manuel II reina por pouco tempo, vai para o exílio, morre novo, não tem descendência, o que parece muito importante aqui e escreve-o. Ele morreu sozinho e não está lá ninguém para dizer "morreu o rei, viva o rei". A monarquia portuguesa morreu sozinha. A vida de D. Manuel II também parece conduzir para uma solidão enorme. 

Mas não teria de ser necessariamente assim. Há grandes personalidades que passam por momentos de grande solidão e depois voltam à ribalta.

Aqui, o facto de ele ter as suas próprias ideias ainda parece confirmar mais isso. 

Às vezes há uma certa tendência de ver o D. Manuel II como uma espécie de intelectual isolado. Ele não é um intelectual, ele tem influência social e tem vivência simbólica. Dá-se com os reis de Inglaterra e é recebido pelo Papa. É que às vezes parece haver essa ideia de que ele falava para certos grupinhos monárquicos, ele tinha de facto influência social. Exerce uma diplomacia paralela cujo impacto é difícil de avaliar, mas que ele exerce. 

Recentremos na questão de não ter descendência. D. Manuel morre, acabou-se a história.

A ideia da monarquia é que há outros descendentes. Há o Pacto de Paris, de 1922, em que ele reconhece que se morrer sem descendência o pretendente ao trono é D. Duarte Nuno.

Mas não há uma relação, como se continuassem um trabalho. E resolveu um problema a Salazar. 

O partido monárquico enfraquece claramente. Apesar disto ser um reino periférico, D. Manuel II tinha crescido com uma corte. D. Duarte Nuno tinha crescido num meio social muito mais limitado e não tinha sido educado para ser rei. O Rocha Martins, que é um dos historiadores e jornalistas que eu vou citando e que é manuelista, dá muito essa ideia. É claramente monárquico e, depois da morte de D. Manuel II, afasta-se da monarquia e mais tarde acaba por aderir ao MUD - Movimento de Unidade Democrática. Mas há monárquicos politicamente ativos no Estado Novo e que, de certo modo, se reconhecem neste legado espiritual. Pessoas como Francisco Sousa Tavares, a Sophia de Mello Breyner, Gonçalo Ribeiro Telles. São pessoas que se considera que de facto se filiam um pouco nessa tradição de pensamento monárquico e que intervêm civicamente fiéis a essa tradição. Nesse sentido, pode falar-se de um certo legado de D. Manuel II. 

Essa questão do legado de D. Manuel II tem muito que se lhe diga, porque o António Ferro [que entrevistou D. Manuel II] é um assumido manuelista. Considera que teve três mestres, Fidelino Figueiredo, o Salazar e o D. Manuel. Há de ter ido buscar alguma coisa ao pensamento nacionalista de D. Manuel II. 

Como era a relação dele com o pai, o rei D. Carlos? 

Ele é tido como mais próximo da mãe. Até porque há o lado católico que parece que os une. Em relação ao pai, mesmo em termos desportivos, ele gostava mais de ténis, o pai de caça. O pai tinha uma postura mais militar, mas não há notícias de que tivesse uma má relação com o pai.

Quando iniciou este trabalho por onde começou? Qual foi a sua primeira leitura?  

Trabalhei essencialmente aqui na Biblioteca Nacional e dediquei-me a ler as memórias e a historiografia daquele tempo e os jornais daquele tempo. O Rocha Martins é um ponto de partida muito interessante, porque ele começa como jornalista, depois vai escrevendo livros e torna-se historiador, embora mais próximo da crónica. Ele conhece pessoalmente o rei D. Manuel II, está próximo da Casa Real. Umas memórias que já tinha lido e que valem muito a pena são as de Raul Brandão. Para o final da monarquia constitucional, há também uma espécie de crónica que segue quase como um diário que é do Armando Ribeiro. A minha preocupação foi conciliar estes pontos de vista com a bibliografia atual e com uma contextualização histórica da sociedade e das instituições políticas, à luz do tem produzido na historiografia mais recente. Depois para cada capítulo, há quase um bibliografia própria. No capítulo do regicídio, o D. Manuel II tem o que ele chama "O Diário do Regicídio", que é um texto de umas umas 30 páginas que é uma espécie de memória pessoal do regicídio. 

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