Porque é que os Óscares de 2022 podem ser revolucionários para as diretoras de fotografia

CNN , Thomas Page
5 fev 2022, 16:00
A atriz Kirsten Dunst numa cena do filme "O Poder do Cão"

Só há uma categoria que nunca foi ganha por uma mulher em 93 anos de história dos Óscares.

A direção de fotografia é a última fronteira para as mulheres nos Óscares. Categorias de interpretação por género à parte, passados 93 anos, é a única categoria ainda existente na qual uma mulher nunca ganhou um Óscar.

Ao ler esta estatística, Ari Wegner, a diretora de fotografia do favorito "O Poder do Cão" riu-se, como se soubesse o que aí vinha. “Espero que isso mude em breve”, disse Wegner por videochamada, antes de acrescentar apressadamente: “Não sei quem será a primeira”.

Apenas 6% dos 250 filmes mais lucrativos do ano passado, nos EUA, tiveram uma diretora de fotografia, segundo um relatório anual do Centro para o Estudo da Mulher na Televisão e no Cinema da Universidade de San Diego. Até ao momento, apenas uma mulher foi nomeada pela Academia. Rachel Morrison por “Mudbound – As Lamas do Mississípi”, um filme de Dee Rees de 2017. Nos BAFTA, nunca uma mulher foi nomeada pela fotografia.

Tudo isso pode mudar em breve, agora que um punhado de filmes com mulheres atrás das lentes disputam os prémios. Wegner já foi premiada por organizações como as associações de críticos de cinema de Los Angeles e de Nova Iorque, e Claire Mathon (“Spencer”) e Hélène Louvart (“A Filha Perdida”) também foram aclamadas.

Com as grandes nomeações ao virar da esquina, a CNN falou com estas três diretoras de fotografia, que partilharam as experiências vividas para levarem os filmes ao grande ecrã e muito mais.

“Há algo muito mais assustador no som dos passos de alguém numa escada... do que na imagem de alguém a sacar de uma arma” - Ari Wegner

Ari Wegner surgiu através de filmes independentes como “Lady Macbeth”, “In Fabric” e “Zola” antes da sua colaboração com Jane Campion em “O Poder do Cão”, o maior projeto da sua carreira, até à data.

A adaptação de Jane Campion do livro de Thomas Savage, passado nos anos de 1920, sobre dois irmãos cowboys e o que acontece quando um deles casa com uma jovem viúva, estava longe de ser simples (e isso antes de a covid-19 ter imposto uma pausa de quatro meses em 2020). Por um lado, a história desenrola-se no Montana, mas, hoje em dia, o Montana está demasiado urbanizado e não providenciava o rústico território que era necessário. Campion escolheu Otago, na sua Nova Zelândia natal, como substituto, e isso fez com que Wegner tenha tido de captar a beleza do local, ao mesmo tempo que escondia a sua identidade (“há paisagens verdadeiramente deslumbrantes, mas que são demasiado icónicas”, disse a diretora de fotografia).

A localização foi um dos muitos fatores considerados durante a extensa pré-produção. “A Jane e eu adoramos planear”, disse Wegner. Durante um mês, as duas debruçaram-se sobre o guião, elaborando uma lista abrangente de planos cinematográficos: Wegner com “pequenos rabiscos” e Campion com “belas” ilustrações, disse a diretora de fotografia. Qualquer pessoa que tenha visto o filme reconhece a importância da informação a conta-gotas, portanto, saber ao certo quando podemos mostrar algo e quanto mostrar, foi fundamental. O resultado, disse Wegner, é que “praticamente todos os planos que vemos tiveram origem em algo que desenhámos”.

Embora tanto o livro como o filme tenham sido frequentemente descritos como westerns modernos, Wegner disse que tanto ela como a realizadora não tinham esse género em mente. “Há cowboys, vacas, vastas extensões de terra e ranchos, mas, de muitas formas, a semelhança fica por aí”, explicou ela.

Wegner e Campion “não tinham um verdadeiro interesse pelas armas... nós realmente não as consideramos sensuais nem achamos que acrescentem alguma coisa”. A violência psicológica tem prioridade sobre a violência física, e Phil Burbank, interpretado por Benedict Cumberbatch, expressa-a no seu expoente máximo.

Phil, o cruel irmão do amável George (Jesse Plemons), atormenta a sua nova cunhada Rose (Kirsten Dunst) e o filho desta, Peter (Kodi Smit-McPhee), por razões pouco compreendidas. Wegner filmou a casa de Burbank ao estilo de um filme de terror, argumentando que “há algo muito mais assustador no som dos passos de alguém numa escada... ou em alguém a puxar uma cadeira na mesa... do que na imagem de alguém a sacar de uma arma.” E ela fá-lo com êxito. 

O planeamento rigoroso deu lugar a uma abordagem mais espontânea quando se tratou de captar o lado despercebido e privado de Phil, muito diferente daquilo que aparenta ser em público. Wegner recorreu às câmaras de mão para filmar Cumberbatch, que mantinha a personagem no plateau.

"Era eu e o Phil - porque o Benedict não estava presente”, disse Wegner. "Isso teve de ser negociado, porque entramos numa sala com alguém que não é uma pessoa fácil e que, provavelmente, tem sentimentos fortes. Mas era essa a energia.”

"Temos de nos envolver emocionalmente”, acrescentou ela, “para antecipar onde a câmara pode querer estar, ou apenas ter a paciência para ficarmos quietos, a ouvir e a ver sem nos movermos”.

A estranha mensagem subliminar do filme surge nestas cenas; começam a aparecer falhas na fachada de Phil e as emoções reprimidas espalham-se pelo rosto de Cumberbatch. “Foi estonteante testemunhar a dança entre a Ari e o Ben, naqueles momentos”, relembrou Campion num e-mail. "Acredito que (o elenco) confiou plenamente na sensibilidade e no talento dela.”

A realizadora sabia que queria uma mulher como diretora de fotografia para este projeto. “Sei que é mais difícil as mulheres terem oportunidades como diretoras de fotografia, mesmo quando têm muito talento”, disse Campion, e com um elenco dominado por homens, ela procurou “um equilíbrio entre energia feminina e masculina, nas filmagens.”

Estarão a surgir oportunidades para as mulheres atrás das lentes? Wegner descreveu a indústria cinematográfica como “um navio muito lento”. “Mesmo que as pessoas queiram (a indústria) mudar rapidamente, demora muito tempo até as pessoas ganharem experiência e receberem formação”, disse ela.

“Espero mesmo que, em algum momento da minha vida, não precisemos de falar sobre membros da equipa através de nomes ou géneros”, continuou Wegner. “Será como em algumas outras indústrias, onde não é preciso especificar o género de alguém, pois qualquer um pode fazer esse trabalho.”

“No futuro (espero) essa conversa deixará de existir, mas temos muito trabalho pela frente até chegarmos a esse ponto”, acrescentou.

“É mais do que intimidade. É quase interioridade” - Claire Mathon, sobre filmar Kristen Stewart

 

Kirsten Stewart como princesa Diana no filme "Spencer", de Pablo Larrain

A diretora de fotografia francesa Claire Mathon esteve atrás das câmaras em dois filmes aclamados de 2021: "Spencer", do realizador chileno Pablo Larrain, e "Petite Maman", da sua compatriota Celine Sciamma. Este último não foi escolhido por França para competir nos Óscares (embora estivesse nas listas de final de ano dos críticos), mas o seu trabalho majestoso no atordoante “Spencer” representa a sua melhor oportunidade até hoje de ser nomeada para um Óscar.

Larrain criou um relato fictício da Princesa Diana (Kristen Stewart) a passar o Natal com a família real, enquanto o seu casamento se desmoronava. Em termos de tom, aproxima-se de filmes como “Shining” e é um afastamento das representações mais convencionais da realeza como é o caso de “The Crown”.

Sandringham Estate, lar das festividades reais, torna-se o castelo do qual a princesa deve fugir – e, neste caso, é o príncipe que a tenta lá manter. “(Larrain) disse desde o início que é um conto de fadas (virado) de cabeça para baixo. É uma princesa que opta por deixar de ser princesa”, explicou Mathon numa entrevista em novembro passado. “É mais desconstrução e menos história.”

Stanley Kubrick foi uma inspiração com “Shining”, disse a diretora de fotografia. Mathon e Larrain viram as adaptações norte-americanas “Barry Lyndon”, do livro de William Thackeray, e “Laranja Mecânica”, do livro de Anthony Burgess, enquanto se preparavam para as filmagens. Vemos vislumbres da influência de Kubrick em jantares formais iluminados pelo brilho da luz das velas e imagens de Diana a vaguear pelos intermináveis ​​corredores da propriedade, enquanto procura uma saída da sua prisão física e emocional.

Mathon filmou em 16mm, com o grão a dar energia e crepitação mesmo durante os poucos momentos parados do filme. A construção de cenas e do espaço de Larrain “está muito longe do naturalismo”, disse a diretora de fotografia. “Acho que é um filme muito coreografado.”

Kristen Stewart de costas para a câmara numa cena de “Spencer”. Sobre a perspetiva do filme, a diretora de fotografia Claire Mathon disse: “é mais do que intimidade, é quase interioridade”. 

Por mais coreografado que possa ser, o filme nunca parece ter movimentos certos. Isso deve-se à dança que Mathon e Stewart interpretam, diretora de fotografia e atriz a colaborarem como um só elemento. “Foi ideia do Pablo, essa proximidade muito, muito íntima”, disse Mathon. “É mais do que intimidade. É quase interioridade.”

Algumas cenas foram improvisadas, outras não, explicou ela. Este método aproxima-se da arte que imita a vida, tendo em conta como os paparazzi perseguiam a verdadeira Diana, de câmaras na mão.

“Nunca estive tão perto de uma atriz com uma câmara. Até tinha medo de lhe tocar”, disse Mathon. “Mas acho que a interpretação dela brincou com a câmara... É um dos temas do filme: a relação (de Diana) entre esconder-se e fechar-se, ao mesmo tempo que é constantemente vista.”

O uso subversivo das lentes da câmara foi uma jogada que rendeu dividendos. “No final das contas, estar perto de (Diana) é algo sincero e, em última análise, muito simples”, disse Mathon.

“Quando os atores são bons, é muito mais fácil filmar bem” - Helene Louvart

 

Uma imagem do filme "A Filha Perdida", com Olivia Colman

 

Hélène Louvart tinha mais de 100 trabalhos feitos antes de concordar em fazer “A Filha Perdida”, a adaptação de Maggie Gyllenhaal do romance homónimo de Elena Ferrante.

A diretora de fotografia francesa conhecia o trabalho de Ferrante, tendo trabalhado em episódios de “My Brilliant Friend”, a adaptação da HBO dos romances napolitanos da autora. Gyllenhaal tinha visto a série, bem como alguns outros filmes de Louvart, e gostou da forma como ela filmou os atores, disse a diretora de fotografia. “Ela queria ter alguma espécie de liberdade, alguma intuição e ser inventiva”, explicou Louvart.

O filme de estreia de Gyllenhaal como realizadora transita entre dois períodos da vida de Leda, uma académica cujas férias são perturbadas por uma família norte-americana. Quando a menina da família desaparece e Leda (Olivia Colman) ajuda a encontrá-la, estabelece uma ligação com a mãe da criança, Nina (Dakota Johnson), e isso invoca memórias de Leda como uma jovem mãe (Jessie Buckley) presa entre os filhos e o crescimento da sua carreira.

A covid-19 transformou o filme radicalmente. Originalmente passado em Nova Jérsia, a produção mudou-se para a Grécia e permitiu que o Mediterrâneo se infiltrasse na história. Os planos para filmar em Super 16mm foram descartados devido a pesadelos logísticos e recorreram ao digital.

Louvart disse que observar os ensaios meticulosos de Gyllenhaal fez com que, quando chegaram os 28 dias de filmagens, “soubéssemos perfeitamente o que queríamos captar em cada cena”.

“Queríamos manter tudo simples e estar perto da personagem”, explicou ela, acrescentando que Gyllenhaal queria que o público sentisse que está com as duas Ledas.  

A espetacularidade de “A Filha Perdida” assenta nas suas interpretações e as composições de Louvart concentram-se de perto nos rostos. Processamos o mundo através dos rostos de Colman e Buckley; cada irritação e desilusão, cada vitória, pequena ou grande. A lente de Louvart tem o trabalho subtil de captar as semelhanças e as diferenças entre as interpretações de Colman e Buckley, reunindo-as num retrato cuidadosamente pintado de uma mulher que ousou pedir mais para si mesma do que a sociedade estava disposta a dar.

“A forma como Gyllenhaal orienta estas personagens, tenho de dizer que é incrível. Ao vê-la orientar a Olivia ou a Jessie, aprendi muito”, disse Louvart.

“Quando os atores são bons, é muito mais fácil filmar bem”, acrescentou. “Às vezes, só temos de estar ali.”

A diretora de fotografia já tem uma lista de realizadores com os quais estabeleceu relações duradouras. Então, após esta primeira experiência, será que se vê a trabalhar novamente com Gyllenhaal?

“Fiquei tão impressionada com o trabalho dela”, disse Louvart. “O cinema é uma língua internacional. Eu entendi-a e ela entendeu-me. Com certeza, vamos continuar.”

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