Sofia estava a tentar acender o gás para tomar banho quando se apercebeu que os seus inquilinos tinham “roubado tudo” - incluindo o miolo do esquentador - do seu apartamento. Pedro esteve um ano e meio sem receber renda, fez investimentos avultados na moradia e agora “não tem hipótese senão vender”. Sofia L. viu a sua casa “absolutamente vandalizada” e, mesmo assim, foi obrigada a devolver a caução aos arrendatários. Estas são as histórias de proprietários que perderam a confiança no mercado do arrendamento
Em 2003, Sofia deu um “passo em frente” na vida. Depois de dois anos a morar num T0 na região de Sintra, encontrou um emprego que pagava melhor e comprou um T1 logo à frente da sua antiga casa. Pensou em vendê-la, mas a agência imobiliária que a ajudou a fechar o novo contrato aconselhou-a a colocar o pequeno apartamento a arrendar. “Sempre rentabilizas o espaço”, disseram-lhe na altura. Foi o momento em que começou uma longa batalha judicial.
Na altura, conta à CNN Portugal, o T0 ficou arrendado a uma inquilina estrangeira, mas que trabalhava em Portugal. Tudo corria bem, até que a senhora começou a ter problemas, primeiro de saúde e, depois, de dinheiro. “A própria família dela roubou-a e ela deixou de conseguir fazer face à renda”.
O valor da renda, cerca de 250 euros por mês, deixou de ser pago e Sofia conta que em vez de a contactar, a inquilina decidiu “esconder-se e evitá-la”, uma tarefa que se tornou difícil, pois a casa que arrendava era diretamente à frente da casa onde estava a viver. “Tentei e tentei, mas não conseguia falar com ela e ela recusava-se a falar comigo”.
Este “jogo do gato e do rato” decorreu durante quase um ano e coincidiu com a altura em que Sofia ficou desempregada e, como era trabalhadora independente e sem acesso a fundo de desemprego, a renda tornou-se fundamental para a sua subsistência. Acabou por avançar com o caso em tribunal e, passados cinco anos, conseguiu reaver o dinheiro com juros.
O susto fez com que a casa ficasse fechada durante algum tempo e que Sofia até preparasse a sua venda, mas a vinda de um familiar de um vizinho que a convenceu a arrendar novamente fê-la acreditar que este mercado pudesse ser uma opção viável novamente. Correu tudo bem e a proprietária aceitou a vinda de um outro casal e durante algum tempo, tudo estava “aparentemente normal”.
Só que uns dias após este contrato de ano e meio ter acabado, quando Sofia voltou à casa para prepará-la para um novo arrendamento, viu que toda a mobília tinha sido roubada. E ao tentar ligar o gás, deparou-se com algo estranho. “O esquentador não funcionava e, quando chegou o técnico para tentar resolver o problema é que me apercebi, até o miolo do esquentador me roubaram”.
Sofia, de 47 anos, ainda aluga a casa, ficou desempregada depois de os pais adoecerem e o seu rendimento vem quase na totalidade do aluguer de duas casas da qual é hoje proprietária. Para ela, o novo pacote do Governo para a habitação não resolve “o problema maior”, “o fiscal”. Por volta de 2016, quando a sua mãe adoeceu, teve de a colocar num lar, o que significava uma despesa de 1500 euros, mais trezentos do que a pensão da sua mãe. Por isso, viu-se obrigada a arrendar o T2 dos pais para conseguir fazer face às contas. “Só que chegou à altura de fazer o IRS e acabei a pagar 2.600 euros, resumindo e concluindo, ainda fiquei praticamente no prejuízo”.
Encostada à parede
Era um T3 em Benfica, com uma renda de 400 euros. O primeiro contrato foi em 2014 e a renovação surgiu em 2017. Dois anos depois, a inquilina entrava em incumprimento. A Sofia L., prometia-lhe que o dinheiro ia chegar, mas tal nunca se concretizou, o que levou a proprietária a instaurar um processo de despejo no Balcão Nacional do Arrendamento. “Foi feito um plano de pagamento em prestações, que foram pagas, mas, entretanto, começámos a achar que tudo aquilo estava a ser um pouco confuso e, como o contrato terminava em maio de 2022, enviámos uma carta a dizer que não queríamos continuar com o arrendamento”, conta.
A inquilina recebeu a carta, assinou, mas quando chegou a altura de sair, “disse que não o ia fazer, porque não tinha casa”. Mas Sofia L. estava resoluta e avançou com uma ação de despejo contra a inquilina, levando-a a ser condenada a entregar o imóvel. A entrega das chaves aconteceu em outubro do ano passado, mas sob uma condição. Sofia L. teria de pagar à inquilina a caução do arrendamento. Disse-lhe que o faria, mas só depois de ver o estado da casa.
“No dia da entrega da casa, no dia 15 de outubro, quando abriu a porta da casa, não queria acreditar, a casa estava toda vandalizada”. No primeiro olhar de Sofia, parecia que as paredes e o teto tinham dejetos, o chão estava marcado profundamente com lixívia, os interruptores desapareceram, havia marcas de “uma coisa que parecia ou azeite ou urina” por todo o lado.
A casa tinha deixado de parecê-lo. “Não tinha um móvel da cozinha, não tinha nada”, descreve, mesmo assim, a inquilina “continuou a dizer, se não me dás a caução, não te dou a chave”. Encostada à parede, Sofia L. só via uma forma de resolver o problema, recorrendo aos tribunais, mas “dada a morosidade da nossa justiça, nunca mais tinha a casa”, pensou. Então, deparou-se com a realidade, ou entregava a caução, ou ficava sem a chave.
“Engoli, não foi um sapo, foi um elefante”, recorda, descrevendo o momento em que assinou os papéis da caução e entregou à inquilina os duzentos euros em dinheiro. “Ela contou-o à minha frente duas vezes, enquanto me chamava de má, de ordinária e me ameaçava bater”. Quando finalmente se foi embora, explica, “só me dava vontade de chorar, de raiva, porque fiquei totalmente incapacitada e percebi que não temos direitos nenhuns”.
A casa está fechada até aos dias de hoje. As obras para recuperá-la rondam os 30 a 40 mil euros. “Não sei quanto tempo levaria a conseguir amortizar as despesas com o valor da renda”, confessa, sublinhando que prefere deixá-la desabitada para quando um dos seus filhos precisar dela do que voltar ao mercado do arrendamento. Até lá, será preciso substituir janelas, estores, o chão, os móveis, uma cozinha inteira, o frigorífico.
O drama que Sofia L. enfrentou, segundo o mais recente barómetro da Associação Lisbonense de Proprietários não é raro. Aliás, metade dos senhorios representados por esta associação, segundo os dados, já sofreram atos de vandalismo nos seus imóveis. A esmagadora maioria destes, mais de 80%, não conseguiu ser ressarcida pelos prejuízos causados pelos seus inquilinos e apenas uma percentagem de 7,4% conseguiu diminuir as perdas sofridas através da caução retida para o efeito.
Sofia diz, no entanto, que não é por causa da sua experiência com inquilinos que perdeu a confiança no mercado de arrendamento. A culpa, afirma, é a inconsistência dele, porque “num dia a ministra tem uma ideia e há uma lei e, depois, no outro dia há uma diferente”, o novo pacote para a habitação é um exemplo disso, afirma. Mas também, porque, cada vez mais sente que o peso está cada vez mais elevado do lado dos proprietários. “Os senhorios hoje funcionam quase como se fosse a segurança social, o suporte dos inquilinos, mas os senhorios não se podem substituir ao Estado”, sublinha, evidenciando que é irrealista que os proprietários adiram a contratos de longo termo. “Isto é uma coisa que ninguém, por muitas benesses que dê, vá querer. Quanto menos anos me comprometer melhor, porque já sei que a lei hoje é uma e amanhã é outra”.
"Ligou-me a dizer que ia abandonar o apartamento, mas que o ex-marido ia lá ficar”
Sandra, 50 anos, conta que a sua família é mais um exemplo de quem perdeu a total confiança no mercado de arrendamento após uma experiência que lhes custou “perto de dois mil euros” em processos de despejo. A família é proprietária de um T2 em Santo Amaro de Oeiras que foi alugada a uma mulher. “Tudo estava certinho, até que, um ano depois de lá estar no apartamento, ligou-nos a dizer que ia deixar de pagar renda, mas que o ex-marido ia ficar lá”.
Seguiram-se dois anos de “grande dificuldade” para a família que já fazia planos de retirar a casa do mercado para que a irmã de Sandra pudesse lá ir viver. “Tentávamos ir bater à porta, esperávamos, mas o senhor já tinha as manhas todas”, conta, explicando que avançaram com um processo judicial, mas que nunca conheceu qualquer decisão final. “Um solicitador chegou a bater à porta, mas o senhor que nunca pagou uma renda, fugia, acabámos por gastar cerca de dois mil euros em advogados e no processo, mas a lei não anda”, sublinha.
O processo acabou por se resolver, mas apenas após a morte deste inquilino. A família de Sandra diz que, nos tempos próximos, não conta regressar ao mercado de arrendamento, mesmo com os apoios que o Governo quer aprovar. “É um tiro no escuro. A lei e os maus exemplos fazem com que, para quem tem casas, isto se torne numa roleta russa”, afirma.
Quando começou a pandemia, Pedro, 46 anos, deixou de receber o pagamento da renda por parte do inquilino durante um ano e meio. “Estive à procura nas juntas de freguesia de algum tipo de apoios ao arrendamento e a enviar ao inquilino, mas pura e simplesmente parou de pagar”. Quando o arrendatário saiu, o proprietário viu uma oportunidade para melhorar a moradia localizada no Funchal.
Umas pequenas obras, custaram entre 4 e 5 mil euros, mas seria “impossível recuperar o investimento no mercado do arrendamento”. Assim, garante, a sua única hipótese, é vender.
Por outro lado, Pedro tem também uma casa arrendada aos mesmos inquilinos desde 1963. Recebe 75 euros de renda todos os meses. Agora, com o novo programa do Governo para a habitação, a renda vai ficar congelada para sempre. “Numa casa, já só posso vender, e na outra, estou completamente condicionado”, queixa-se.
Também Maria de Jesus, de 82 anos, dona de várias frações num prédio na Lapa, reitera que há cerca de três anos a sua visão do mercado de arrendamento mudou drasticamente após ter recebido novos inquilinos num dos seus apartamentos, uma mulher e o seu filho, “acumuladores”, descreve. “Deixaram de pagar a renda durante quase um ano, enquanto tinham uma casa na margem Sul”, conta esta proprietária, revelando que o preço da renda era “quase simbólico, cento e tal euros”.
O assunto só ficou resolvido após a proprietária ter avançado com um processo de despejo. No final, no entanto, Maria de Jesus conta que as despesas que teve para tornar o apartamento novamente habitável foram “muito altas”. Primeiro, teve de “alugar uma carrinha que foi cinco vezes ao apartamento para retirar de lá toda a tralha” e levar estes objetos para a outra casa dos inquilinos na margem Sul, depois teve de contratar uma equipa de limpeza, “essencialmente para remover os cheiros que ficaram”, o frigorifico, por exemplo, “estava cheio de alimentos com bolor, teve de ser envolto em plástico e devolvido”.