Porque os Estados Unidos não conseguem mudar a lei das armas

25 mai 2022, 10:26
Venda de armas de assalto nos Estados Unidos (Keith Srakocic/AP)

Um mecanismo especial e um lóbi de décadas dificultam a mudança de uma lei que muitos pedem há anos

O ano de 2022 ainda não vai a meio e já foram registados pelo menos 40 tiroteios em escolas do ensino básico nos Estados Unidos. A conta ao número de mortes subiu para 70 esta terça-feira, depois de um jovem de 18 anos ter entrado a matar numa escola em Uvalde, no Texas. É a mais recente entrada numa longa história de violência em estabelecimentos de ensino, e que volta a trazer para o centro da questão a discussão do lóbi das armas.

Mudar a lei das armas é algo que tem pairado nas várias presidências norte-americanas nos últimos anos. Uns com mais afinco, outros nem tanto, mas todos os mandatos presidenciais têm falado sobre o tema, que volta sempre à baila quando uma tragédia do género acontece. Mas então, porque será tão difícil mudar uma lei que permite o acesso a armas, muitas vezes de forma indiscriminada?

O efeito filibuster

Na prática, esta é a grande razão pela qual a lei continua sem sofrer alterações. Trata-se de um mecanismo legislativo que faz com que todas as leis, no caso relacionadas com armas, acabem por sofrer adiamentos intermináveis na câmara alta do Congresso, o Senado.

A figura do filibuster pode ser utilizada por uma minoria de senadores, algumas vezes até por apenas um dos 100 que foram eleitos, para adiar ou prevenir alterações legislativas. O que acontece é que os senadores em causa podem utilizar tempo ilimitado para falarem sobre um assunto antes de ele ser votado, o que geralmente acaba sempre numa de duas formas: ou a proposta de lei é alterada ou é retirada.

Este mecanismo entrou para a política norte-americana no século XIX, mas foi em 1957 que teve um dos seus momentos mais icónicos, e que mostram bem até onde um senador pode ir para tentar “empatar” uma alteração legislativa. Naquele ano, o republicano Strom Thurmond, que até chegou a ser candidato presidencial, falou por mais de 24 horas, o recorde individual de filibuster, para tentar obstruir uma lei sobre direitos civis. Na altura acabou por não ser bem-sucedido, mas ficou na retina a resistência: leitura das leis eleitorais de todos os estados em ordem alfabética, Declaração da Independência, Declaração de Direitos ou a carta de despedida de George Washington, estes foram apenas alguns dos documentos lidos pelo senador. O Senado mostrou ainda mais resistência, e acabou por conseguir fazer passar a lei duas horas após o fim do demorado discurso.

“A tradição do debate ilimitado permite a utilização do filibuster, um termo designado para prolongar o debate e adiar ou prevenir a votação de uma lei, resolução, emenda ou outra questão”, refere a página do Senado dedicada ao tema.

Senador Strom Thurmond após um filibuster de 24 horas e 19 minutos (AP)

Existe uma forma de terminar o filibuster sobre um assunto, mas também é difícil de lá chegar. Trata-se da invocação daquilo a que os norte-americanos chamam uma “cerca” (figura criada em 1917 para fazer frente aos problemas criados pela Primeira Guerra Mundial), e que tem como objetivo limitar o tempo de uma discussão a 30 horas (sendo que nenhum senador pode falar mais do que uma hora), obrigando a que se realize uma votação no fim desse período. No entanto, o processo para estabelecer esta “cerca” é demorado e complexo, exigindo uma votação.

Foi o filibuster que impediu que Barack Obama tivesse feito mais reformas à lei das armas, e o mesmo está a acontecer com Joe Biden. É que, na prática, o Senado funciona como órgão fiscalizador do presidente, é o lado do Congresso responsável pelas ações presidenciais.

O lóbi das armas

A lei norte-americana é pródiga na realização de lóbis, formas de pressionar o poder legislativo de modo a conseguir um determinado objetivo. Um dos mais fortes é, sem dúvida, o lóbi das armas.

A Associação Nacional de Armas (NRA, na sigla original) é uma das grandes responsáveis pelo lóbi. Organização importante nos Estados Unidos, foi criada com o intuito de “promover e encorajar as armas numa base científica”.

Começou a sua atividade lobista em 1934, ao enviar cartas para os seus membros a alertar para eventuais leis sobre as armas.

Mulher protesta durante reunião da Associação Nacional de Armas (Evan Vucci/AP)

A partir de 1975 começou a influenciar a política de forma direta, criando o Instituto para a Ação Legal, fundando mais tarde o Comité de Ação Política, que tem servido para financiar vários congressistas.

Oficialmente gasta cerca de três milhões de dólares por ano (cerca de 2,8 milhões de euros) para fazer lóbi junto de políticos, mas os valores reais serão bem acima, até porque o orçamento anual da associação ronda os 250 milhões de dólares (perto de 233 milhões de euros). Grande parte desse dinheiro vai diretamente para campanhas de congressistas.

A questão do lóbi foi um dos pontos centrais do discurso de Joe Biden sobre o caso em Uvalde.

Um exemplo prático

Uma das leis que deverá ser votada em breve no Senado está precisamente relacionada com as armas. O objetivo é fechar a “Charleston loophole”, uma lacuna na lei que continua a permitir que continuem a existir vendas de armas sem que seja necessária uma verificação do passado do comprador.

Em concreto, esta alteração, que já foi aprovada na Câmara dos Representantes, prevê aumentar o tempo de investigação sobre o passado da pessoa de três dias úteis para dez, período durante o qual os serviços federais deverão atestar se o comprador poderá obter a licença para a arma.

Como refere a CNN Internacional, esta lacuna permitiu que um homem comprasse a arma que utilizou para matar nove pessoas numa igreja em Charleston, na Carolina do Sul, em 2015. É a esse ataque que a proposta vai buscar o nome.

O calendário da votação está em discussão, mas ainda nem sequer é claro se ela vai chegar a existir. A CNN refere que são precisos 60 senadores (uma maioria de três quintos) para ultrapassar um eventual filibuster, sendo que não é certo que exista esse apoio, até porque, mesmo do lado democrata, nem todos os senadores parecem concordar.

Ainda assim, a proposta do senador democrata Richard Blumenthal é a de que a votação avance na mesma. “Temos de responsabilizar todos os membros do Congresso e votar para que o público saiba o que cada um defende”, afirmou.

A experiência de Biden

O presidente dos Estados Unidos fez um discurso emotivo após o massacre em Uvalde. Recorrendo à sua experiência como senador, afirmou que quando foi aprovada uma lei que proibia as armas de assalto, como as semiautomáticas, "os tiroteios em massa diminuíram".

"Quando a lei expirou, os massacres triplicaram", afirmou.

Joe Biden voltou assim a pedir que se faça algo mais para mudar as leis atuais, algo que tenta há vários anos, primeiro como senador, depois como vice-presidente e agora como presidente.

"Por Deus, porque precisamos de armas de assalto exceto para matar alguém?", questionou.

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