"Haverá uma festa em Moscovo". Macron quer partilhar armas nucleares na Europa mas isso pode dar ao Kremlin algo que quer há 76 anos

17 mai, 08:15
Macron e Putin (AP)

De olhos postos na autonomia estratégica europeia, presidente francês abriu a porta a uma medida que pode alterar o equilíbrio nuclear no continente — ou abrir a porta a uma nova crise

Enquanto o mundo estava de olhos postos em Istambul, onde a Ucrânia e a Rússia se preparavam para negociar a paz, o presidente francês lançou uma bomba em forma de ideia, ao sugerir que França está pronta para discutir a partilha das suas armas nucleares com outros países europeus, à semelhança do que acontece há mais de 70 anos com os Estados Unidos. Esta decisão, que seria um passo decisivo para autonomia estratégica europeia, arrisca ter consequências profundas na segurança do continente. 

"Se a França começar a enviar armas nucleares para a Polónia, isso significa que o papel nuclear da NATO entrou em colapso. É um sinal de que a NATO está em sérios apuros, de que os EUA estão a retirar-se dos seus compromissos para proteger os seus aliados europeus. Esse é um dos principais objetivos da política externa russa desde a Guerra Fria. Se isso acontecer, haverá uma festa em Moscovo", alerta John Erath, especialista em proliferação nuclear e diretor sénior de Políticas do Center for Arms Control and Non-Proliferation, em entrevista à CNN Portugal.

O presidente francês anunciou que vai apresentar "um quadro legal" nas próximas semanas para criar as bases deste programa de partilha de armamento nuclear. Apesar disso, Macron já fez conhecer três condições inegociáveis para que esta parceria avance. Em primeiro lugar, os países que recebem esta proteção devem ser responsáveis por todos os custos associados. Ainda assim, a decisão de utilizar as armas nucleares vai permanecer nas mãos do presidente francês. Emmanuel Macron garantiu ainda que, independentemente da dimensão deste programa de partilha, a capacidade de defesa do país não pode ser afetada. 

No mês passado, o presidente polaco, Andrzej Duda, admitiu que o país está interessado em receber ogivas nucleares francesas de forma a reforçar as defesas do país, que faz fronteira com a Rússia e com a Bielorrússia. Semanas antes, o chanceler alemão Friedrich Merz também demonstrou estar aberto a esta possibilidade de criar um programa de partilha de armas nucleares com França e com o Reino Unido. 

Desde a saída dos britânicos da União Europeia, França passou a ser o único país do bloco com armamento nuclear, com um arsenal de 280 ogivas, de acordo com o Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo. O número de armas é muito inferior ao arsenal russo. Moscovo conta com 1.710 ogivas prontas a utilizar, mas esse número dispara para 4.380 se as armas armazenadas forem contabilizadas. Ainda assim, o número mais reduzido de armas nucleares francesas pode ser suficiente para cumprir o propósito de evitar um ataque russo.

"A dissuasão é psicológica e não matemática. Em teoria, um potencial adversário pode ser dissuadido com apenas uma arma nuclear. 280 é um número muito mais grave, mas também é possível que os russos decidam que não se trata de um adversário muito sério e que vão continuar a fazer o que estão a fazer", explica Erath. 

Expandir o arsenal nuclear francês seria um processo com custos extremamente elevados para o orçamento francês que enfrenta sérios problemas. A França gasta 5,6 mil milhões de euros por ano para manter o seu atual arsenal, que pode ser lançado por ar ou de um dos seus submarinos nucleares. Desde 1995 que o país deixou de ter a capacidade de lançar armas nucleares por terra. Devido às atuais limitações logísticas francesas, os especialistas estimam que produzir 100 novas ogivas pode demorar mais de uma década. 

Durante anos, o presidente francês tem sido um dos principais defensores da autonomia estratégica europeia de forma a que o continente não fique dependente da defesa dos Estados Unidos da América. Esta ideia tem-se intensificado nos últimos meses, depois de a nova administração americana ter feito várias ameaças aos aliados europeus, incluindo a anexação da Gronelândia, território que pertence à Dinamarca. 

"Penso que [os países europeus] estão certamente menos confiantes. A retórica da administração Trump conduziu a esta situação. Ele disse que não acredita na NATO. Disse que a NATO não passa de uma despesa para o contribuinte americano. No entanto, o objetivo dos franceses é, como tem sido há décadas, diminuir a influência dos EUA na Europa e reforçar a liderança francesa", admite John Erath, que fez parte do Conselho de Segurança norte-americano durante o primeiro mandato de Trump.  

Atualmente, a capacidade de dissuasão nuclear europeia é assegurada pelos EUA, que mantêm aproximadamente 100 armas nucleares espalhadas por cinco bases de aliados da NATO, na Bélgica, na Alemanha, em Itália, Países Baixos e Turquia. John Erath defende que o destacamento destas armas é apenas "um gesto político" para demonstrar o compromisso americano com a defesa europeia. No entanto, a "verdadeira" capacidade de dissuasão americana encontra-se no mar, nos submarinos nucleares, e em solo norte-americano, onde milhares de mísseis intercontinentais com capacidade de atingir o território russo em poucos minutos.  

A expansão do dispositivo nuclear francês para países próximos da sua fronteira arrisca aumentar ainda mais a tensão entre a Rússia e a União Europeia. No entanto, o especialista acredita que Moscovo pode ver com bons olhos a possibilidade de receber algumas armas nucleares francesas junto à fronteira, em troca da retirada total dos EUA da Europa. "Na perspetiva russa, seria uma boa troca. Mesmo que isso aproximasse as armas", frisa. 

Qualquer que seja o cenário, existe a possibilidade de o planeta estar a caminhar na direção de uma corrida ao armamento nuclear. Mas isso "depende muito da forma como a guerra" na Ucrânia acabar. Para o analista, o principal receio passa por um acordo de paz na Ucrânia que possa ser visto internacionalmente como uma vitória para a Rússia. Isto porque Moscovo utilizou repetidamente a retórica nuclear como instrumento geopolítico, para evitar que os países da NATO ajudassem a Ucrânia. 

"Existe um grande receio de que, se a guerra terminar com a Rússia a poder reivindicar algum tipo de sucesso, este tenha sido alcançado, em parte, graças a uma chantagem nuclear. Isto valida a utilização de ameaças nucleares como um instrumento de política e uma parte normal da diplomacia no futuro. Torna as armas nucleares muito mais úteis. A forma como os países europeus e os EUA configuram os seus acordos de dissuasão nuclear no futuro vai depender, em grande medida, do resultado deste conflito", garante John Erath.

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