Calor? Frio? Especialista explica como reage o nosso corpo às alterações climáticas que vêm aí

19 fev 2022, 08:25
Efeitos da vaga de calor em vários países na Europa

O ser humano vive nos cantos mais inóspitos do planeta, muitas vezes debaixo de temperaturas incomportáveis para a maioria da população, desde sempre. Uma resiliência que é também um sinal de como vamos enfrentar temperaturas mais extremas. Mas a resistência não é para todos

Uma das consequências do aquecimento global são as ondas de calor. E “as ondas de calor matam”, avisa, desde já, o médico de saúde pública Bernardo Gomes, em entrevista à CNN Portugal. Ao fim de muitos dias de temperaturas elevadas, “o corpo começa a ter dificuldades em fazer a regulação homeostática”, ou seja, manter em equilíbrio todas as suas funções.

“Olhando para 2021, pessoas com mais de 65 anos ou com menos de um ano, juntamente com pessoas desfavorecidas, foram as mais afetadas pelo recorde de temperaturas acima dos 40 graus no Noroeste Pacífico em junho, um evento que seria praticamente impossível sem a ação humana. Apesar de o exato número não ser conhecido, centenas de pessoas morreram prematuramente do calor”, pode ler-se no relatório anual da revista científica The Lancet, “The 2021 report of the Lancet Countdown on health and climate change: code red for a healthy future” (Contagem decrescente sobre saúde e alterações climáticas: alerta vermelho para um futuro saudável, numa tradução literal).

Hipertermia, cãibras, colapso, exaustão e insolação podem ser algumas das reações fisiológicas, “se não forem tomadas medidas ambientais adequadas para serem evitadas”, sublinha à CNN Portugal a fisiologista e professora da Faculdade de Medicina de Lisboa, Isabel Rocha.

O ser humano vive nos cantos mais inóspitos do planeta, muitas vezes debaixo de temperaturas incomportáveis para a maioria da população, desde sempre. Uma resiliência que é também um sinal de como vamos enfrentar temperaturas extremas. 

“A adaptabilidade do ser humano a diferentes ecossistemas no planeta faz antever que nós tenhamos um ponto até ao qual nos conseguimos adaptar, em termos de alterações de temperatura e de humidade, etc. Temos vários ecossistemas e vários habitats no planeta aos quais o ser humano está adaptado, sendo que a adaptação foi feita de forma lenta, ao longo de muito tempo”, nota Bernardo Gomes.

E é esse tempo que a ciência tenta estender, a custo, e de forma muito pouco otimista, como reflete o último relatório das Nações Unidas, sendo certo que o aquecimento global vai afetar o corpo humano.

“O aumento da temperatura de 1,5 a 2 graus Celsius, que é o previsto até ao fim do século, não afeta per se de forma marcada o corpo humano até porque, não sendo brusco, permite o desenvolvimento de alterações adaptativas. Ao termos mais fenómenos climatéricos extremos (furacões, inundações, seca extrema ou ondas de calor), eles vão afetar as condições ambientais e causar impacto na saúde humana, pelo que serão necessárias medidas como o estabelecimento de esquemas dietéticos mais adequados, regulação das condições ambientais e logísticas e mais informação, incluindo educação para a saúde, que protejam todos os indivíduos, principalmente os que pertencem a grupos susceptíveis como idosos, crianças e doentes”, explica Isabel Rocha.

Mas está o corpo humano preparado para aguentar estas temperaturas extremas? A boa notícia é que sim, a má é que a adaptação tem limites e ainda que não reagimos todos da mesma maneira nem estamos todos expostos de igual forma, nota a professora da Faculdade de Medicina de Lisboa.

“É, por exemplo, mais difícil a adaptação a circunstâncias de alta temperatura e alta humidade porque os mecanismos de perda de calor corporal que cursam com perda de calor e água não conseguem funcionar de forma eficaz. Se a estas condições for adicionada a poluição do ar que respiramos é claro que os limites adaptativos se tornam mais estreitos”, aponta a fisiologista.

Calor, uma lista de problemas

Mas há respostas esperadas do corpo humano ao excesso de calor. Como se manifestam fisiologicamente as temperaturas extremas? Podemos reagir de diferentes maneiras, como explica Isabel Rocha.

  • Hipertermia, caracterizada por uma desproporção entre a perda de calor e a produção de calor interna ou fornecimento de calor externo sem mudança do setpoint (ou seja, do valor da temperatura interna) ao contrário do observado com a febre. Trabalhos recentes têm mostrado que especialmente a exposição ao calor de longa duração e a alta temperatura apresenta a maior taxa de mortalidade. Nos últimos 100 anos, a frequência dessas condições climáticas extremas aumentou significativamente em regiões com clima normalmente moderado devido ao aquecimento global. Durante o dia, as ondas de calor levam ao aquecimento das cidades densamente construídas fazendo com que as temperaturas à noite não caiam abaixo de 28-30 graus Celsius. A população que vive nestas áreas está, por isso, exposta a um stress térmico permanente de 24 horas, principalmente aqueles que vivem nos andares mais altos dos edifícios.

Os mais afetados são os bebés até um ano, idosos, diabéticos e pessoas que sofrem de doenças cardiovasculares. Também para uma pessoa acamada a perda de calor por convecção é diminuída.

  • Cãibras de calor, ocorrem normalmente com trabalho físico pesado, especialmente com temperaturas ambientais acima de 27 °C e alta humidade relativa, observando-se a perda de água e eletrólitos por evaporação que pode resultar em cãibras na musculatura da barriga das pernas, ocasionalmente na musculatura abdominal (com sensação de uma situação de emergência abdominal) ou diminuição da acidez gástrica. Especialmente num clima tropical, facilita a incorporação de patógenos no trato gastrointestinal.

  • Colapso por calor é a doença de calor mais frequentemente observada. É um distúrbio circulatório, que pode ocorrer durante os primeiros dias de uma estadia num clima quente. O colapso por calor é causado por uma falha da reação cardiovascular à temperatura ambiente elevada criando, assim, uma perturbação da distribuição volumétrica da circulação. Como expressão da desproporção entre produção de calor, absorção de calor e perda de calor, em primeiro lugar, a circulação sanguínea da pele é aumentada pela vasodilatação periférica. Mesmo em repouso, isso requer um aumento de débito cardíaco. Devido à vasodilatação periférica, o volume intratorácico de sangue fica diminuído, o que pode levar a um colapso de calor. Como possíveis indícios de colapso circulatório, deve-se considerar diminuição da pressão arterial, bradicardia (expressa por fraqueza, tontura, cansaço), dor de cabeça, falta de apetite, náuseas, vómitos e vontade de defecar. Outros sintomas, como piloereção (arrepios), observada no peito e na parte superior dos braços, hiperventilação, cãibras musculares e, às vezes, também sinais neuronais, como ataxia e discurso incoerente, também podem ser observados.

  • Insolação, corresponde a um superaquecimento mais duradouro acima de 40 °C e caracteriza-se por desorientação, cãibras e delírio, nos casos mais graves. A insolação é uma perturbação da temperatura com risco de vida e ocorre mais frequentemente durante os primeiros dias de uma onda de calor em idosos que sofrem de doenças crónicas como por exemplo arteriosclerose, insuficiência cardíaca ou diabetes. No entanto, os jovens também podem sofrer insolação após esforço físico extremo e com a cabeça descoberta sob forte radiação solar. A regulação da temperatura no hipotálamo é perturbada de modo que, apesar do alto stress térmico, ocorre uma vasoconstrição cutânea e a produção de suor é suspensa apresentando-se a pele seca e quente. A cada 1 °C de aumento de temperatura, a taxa metabólica basal aumenta em 7%, ou seja, para uma temperatura de 41 °C isso significa um aumento metabólico de quase 40%, sendo um critério importante para a existência de uma insolação um valor de temperatura corporal central acima de 40,5 °C. Os sintomas de aviso a curto prazo incluem: dores de cabeça intensas, tonturas, sensação de fraqueza, dor abdominal, confusão ou hiperpneia. A pressão arterial é extraordinariamente baixa. Os músculos são flácidos e os reflexos tendinosos podem estar diminuídos. A pulsação aumenta e a respiração é rápida e fraca. A pele fica vermelha, seca e quente. Dependendo da gravidade, a insolação pode levar ao coma ou ser fatal. A mortalidade com insolação é de pelo menos 10% e a morte pode ocorrer dentro de poucas horas ou nos dias e semanas seguintes como consequência de várias complicações, por exemplo, insuficiência renal, enfarte do miocárdio ou broncopneumonia. 

O que nos faz o frio

Mas também o frio pode afetar-nos e não há muito tempo Portugal passou por um período de vários dias de temperaturas anormalmente baixas para a época, mesmo tratando-se de janeiro. Além de valores baixos de temperatura, que chegaram em algumas regiões a vários graus abaixo de 0 ºC, também a sua duração foi acima do expectável.

“Consideram-se ambientes frios, os ambientes nos quais a temperatura da atmosfera está próxima ou abaixo de 0°C. Existem quatro tipos principais de ambiente frio: polar, de alta montanha, glacial e periglacial, este último representado principalmente pelas regiões árticas e antárticas que recebem radiação solar menos intensa porque a luz do sol atinge a terra em um ângulo oblíquo, isto é, se espalhando numa área maior e passando pela atmosfera terrestre a uma distância maior”, observa.

As adaptações fisiológicas do Homem ao frio “são muito limitadas” e diferentes consoante o nível de exposição, caracteriza Isabel Rocha.

  • Depois da sensorização do frio por receptores cutâneos, e de uma forma geral, surge o aparecimento de uma série de respostas reflexas autonómicas (que levam ao aumento da frequência cardíaca e da pressão arterial e à diminuição da frequência respiratória) e endócrinas (aumento da secreção de insulina, cortisol, hormonas tiroideias) associadas ao aumento da diurese que leva à diminuição da volemia, à hemoconcentração e ao aumento da viscosidade sanguínea necessárias para a conservação e produção de calor e que se expressam, por exemplo, por contrações musculares involuntárias para produzir calor ou por termogénese sem tremores por ativação beta-adrenérgica do tecido adiposo castanho. De forma mais específica, as alterações fisiológicas são diferentes consoante o grau de hipotermia.

  • Assim, para temperaturas entre os 32-35 ºC (hipotermia ligeira) observam-se tremores, taquicardia, diurese, cianose, disartria, ataxia, amnésia; na hipotermia moderada entre os 28-32 ºC a confusão, rigidez muscular, perda de tremores reflexos, desnudação paradoxal, hipotensão, arritmias e outras alterações eletrocardiográficas; e na hipotermia grave com temperaturas inferiores a 28 ºC observa-se arreflexia, coma, fibrilhação ventricular, assistolia e morte.

Dar a volta ao termómetro

O que podemos, então, fazer para aumentar a nossa temperatura ou baixá-la consoante o ambiente externo?

  • No caso do excesso de calor, a prevenção passa por evitar bebidas açucaradas (ou ligeiramente salgadas) antes da exposição, roupas leves, banhos frios frequentes, ambiente fresco e atividade física reduzida. Para se evitar cãibras de calor e colapso por calor, o esforço físico em altas temperaturas ambientais (> 26 °C) e alta humidade deve ser restringido ou evitado.

  • Já a adaptação ao frio é feita em três eixos: adaptação metabólica que aumenta a produção de calor; adaptação hipotérmica que aumenta a tolerância a temperaturas baixas: e adaptação insulativa que aumenta a capacidade de conservar calor. Assim, o comportamento do indivíduo, a tecnologia, a climatização de ambientes e o apoio logístico desempenham um papel central na sobrevivência ao ambiente frio. E, claro, os indivíduos mais susceptíveis (idosos, crianças e doentes ) devem tomar precauções adicionais nestas áreas.

A capacidade de adaptação a uma onda de calor ou uma vaga de frio de vários dias depende sempre, sublinha a fisiologista, “do ambiente climatizado onde nos encontramos, da nossa saúde, do apoio logístico existente”, isto é, de tudo o que nos rodeia, como, por exemplo, o facto de podermos estar em casa, debaixo de uma temperatura ideal face à adversidade no exterior, termos acesso a líquidos quentes ou frios, sermos saudáveis ou termos uma boa capacidade homeostática.

No entanto, mesmo que o corpo humano seja resistente a estas temperaturas extremas, devemos saber se estamos bem ou não. E neste campo, a educação em saúde não poderia ser mais importante.

“Bom, o corpo humano não é resistente de forma prolongada a frio extremo ou calor extremo sem condicionamento do ambiente em que um indivíduo se possa encontrar. Para além do uso de dispositivos, os chamados wearables que poderão dar indicação da variação de parâmetros fisiológicos e de dispositivos de controlo ambiental, nada melhor do que existir educação em saúde para que o indivíduo seja alertado para as alterações fisiológicas e fisiopatológicas que está a sentir e a auto-avaliar. Por outro lado, é importante que existam locais e profissionais de saúde em proximidade (por exemplo, farmácias comunitárias; enfermagem de família) que façam uma avaliação rápida do indivíduo e o direcionem ou não, consoante a situação e caso necessário, para outros profissionais com grau de intervenção mais adequada", finaliza Isabel Rocha.

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