Neste natal vão faltar iPhones, e quase todos os gadgets, no sapatinho

11 dez 2021, 15:11
Apple

Pandemia e crise da cadeia global de componentes está a deixar os gigantes da tecnologia à beira de um ataque de nervos. Até a Apple será afetada. Vai produzir menos 10 milhões de iPhone 13 do que planeava e só metade dos iPads

Se este natal tenciona oferecer ou espera receber um smartphone, um tablet, uma consola de jogos ou um qualquer gadget eletrónico acabado de chegar ao mercado, é bom que a encomenda já esteja feita há algum tempo. Se deixar para o último momento, à boa maneira portuguesa, é provável que não consiga encontrar ou encomendar o que deseja. A crise logística global, a escassez de matérias-primas e as dificuldades dos fabricantes de chips e componentes para responder à enorme procura estão a deixar os fabricantes de todo o tipo de dispositivos eletrónicos à beira de um ataque de nervos.

O natal, que costuma ser o período de sonho para os fabricantes de telemóveis, computadores e toda a sorte de gadgets, está a transformar-se este ano num pesadelo. Não é que não haja procura, o problema é inverso: a procura é enorme, mas a oferta tem-se mostrado incapaz de se mostrar à altura das expectativas dos consumidores. 

Ninguém escapa. Nem a todo-poderosa Apple. O iPhone 13, lançado com a habitual pompa e circunstância em setembro, mesmo a tempo de entrar na lista de pedidos ao Pai Natal, está a ser uma das vítimas da crise da cadeia de distribuição. Nem a decisão da Apple de desviar componentes de outros produtos para concentrar todas as fichas na linha de produção do último modelo do iPhone está a permitir contornar a situação. A produção de iPads ficou para trás, os modelos mais antigos do iPhone também foram para a lista de espera, mas nem assim a empresa conseguiu cumprir os objetivos delineados para colocação do iPhone 13 no mercado.

A tempestade perfeita

Desde o início do outono que se estava a formar a tempestade perfeita. Os problemas não eram novos, mas a Apple acreditou que, com o peso que tem no mercado, seria capaz de os contornar - nenhum fornecedor deixaria de dar prioridade à marca americana, mesmo que isso significasse deixar “pendurados” inúmeros outros clientes. Ninguém diz não à empresa de Tim Cook e foi em boa medida por essa razão que em 2020, enquanto muitos fabricantes já estavam a braços com a crise da cadeia de abastecimento, a Apple foi escapando pelo meio dos pingos da chuva.

2021 parecia ir no mesmo sentido. Durante os três primeiros trimestres do ano fiscal de 2021, de outubro de 2020 a junho deste ano (nos EUA o ano fiscal vai de outubro a setembro), a Apple registou lucros de 74 mil milhões de dólares. Bem mais do que no anterior melhor ano fiscal (2018), quando o lucro da empresa ascendeu a 58,5 mil milhões de dólares. Ainda assim, nesses três trimestres, entre 3 a 4 mil milhões de dólares ter-se-ão perdido por causa da crise da cadeia de abastecimento. Mas com o verão veio o período mais agudo de problemas da cadeia de abastecimento global e a história começou a tornar-se mais complicada. 

Apesar do período julho-setembro ter registado lucros superiores aos períodos homólogos, ficou abaixo das expectativas. Segundo Tim Cook, a empresa perdeu 6 mil milhões de dólares apenas neste trimestre por causa das disrupções impostas pela pandemia. Na altura, Cook deixou um aviso: o final do ano seria bastante complicado, sobretudo por causa da falta de semicondutores. Apesar da “procura robusta” por produtos da Apple, a companhia dificilmente conseguiria responder aos clientes.

A previsão de Cook concretizou-se, com a tal tempestade perfeita. Conforme as economias ocidentais se foram reabrindo, a pressão sobre a logística global aumentou. E começaram a faltar porta-contentores, faltaram contentores, faltaram estivadores, faltou mão-de-obra em geral. À beira dos grandes portos do mundo formavam-se longas filas de cargueiros a precisar de carregar e descarregar matérias-primas, componentes e artigos acabados que tardavam como nunca em chegar às lojas.

Em simultâneo, a variante Delta começou a atingir, um após outro, diversos países asiáticos, com o regresso de confinamentos e fecho de fábricas. A produção de semicondutores, que tem sido um dos maiores constrangimentos da indústria global, voltou a ser afetada. 

Na China, o maior fabricante mundial de componentes para as grandes marcas de tecnologia, verificavam-se ao mesmo tempo, e em partes diferentes do país, fenómenos diferentes. Por um lado, com a chegada da variante Delta, milhões de pessoas eram obrigadas a confinar por causa de poucas dezenas de casos. As autoridades de Pequim levam muito a sério a política de “zero covid”, que tem deixado cidades e regiões inteiras sob fortes restrições à atividade.

Por outro lado, o despertar das economias ocidentais provocou um aumento da procura, levando inúmeras fábricas a trabalhar a todo o vapor, sete dias por semana, em ciclos laborais de 24 horas sobre 24 horas. A pressão da indústria sobre a rede de energia revelou-se maior do que a infraestrutura do país permitia. Com uma agravante: no pós-pandemia, as autoridades chinesas decidiram a desativação de muitas centrais de produção de energia mais poluentes, apostando na promoção da imagem da China como país em transição verde, na contagem decrescente para a grande cimeira do clima promovida pela ONU.

Com mais necessidade de eletricidade para a indústria e menos oferta, os cortes de energia acabaram por afetar regiões inteiras. Mais: conforme chegou o outono e as temperaturas começaram a baixar, a começar pelas regiões mais a Norte, o consumo doméstico de eletricidade também subiu, para aquecer as casas. 

Todos acabaram por pagar o preço, com cortes de energia, que nuns locais se fazem sentir umas horas por dia, e noutros se prolongam por dias a fio. Por vezes com aviso poucas horas antes. Conclusão: nas fábricas, numas semanas havia componentes mas faltava energia, noutras havia eletricidade mas faltavam componentes… 

Por fim, as consequências da guerra comercial entre os EUA e a China também continuam a fazer-se sentir, estrangulando a circulação de uma enorme variedade de matérias-primas e componentes entre as duas maiores economias do planeta.

A desvantagem de ser um produto global

Para se perceber melhor o pesadelo logístico envolvido no caso da Apple, basta pensar que o iPhone 13 Max Pro tem cerca de 2 mil componentes fabricadas em dezenas de países. Um dos modelos anteriores, o iPhone SE, junta componentes provenientes de 43 países de todos os continentes. Para aquele smartphone contribuem fábricas situadas em locais como Estados Unidos e Vietname, Taiwan e Alemanha, China e Japão, Coreia do Sul e Malásia. Falamos de lentes e processadores topo de gama, passando por complexas placas de circuito interno e baterias, uma infinidade de chips e semitransmissores, mas também as sofisticadas embalagens de cartão onde os aparelhos são acondicionados. Só na China há mais de 150 fábricas envolvidas - a montagem passa por unidades malaias e chinesas. Basta faltar um componente - apenas um em dois mil - e o telemóvel não pode seguir para a loja. 

Analistas do mercado dão conta de que a produção do módulo de câmara é um dos principais estrangulamentos na produção do iPhone 13. O Vietname, onde está localizada uma grande fábrica da Sharp, é decisivo nesta parte do circuito e a vaga pandémica provocada pela variante delta naquele país causou mossa na cadeia de produção. O desconfinamento a partir de outubro, e o recurso a uma unidade adicional de produção da LG na Coreia do Sul, acabaram por aliviar a pressão, mas os atrasos ficaram.

A chegada da variante Delta à Malásia teve igualmente um grande impacto na produção de chips e componentes, mas também na parte da montagem do iPhone 13.

Curiosamente, outro país onde a cadeia de produção do iPhone 13 está enguiçada… são os Estados Unidos. E nem estão em causa componentes caríssimos ou de enorme valor acrescentado do ponto de vista tecnológico: alguns dos componentes que têm tido mais problemas em chegar à linha de montagem da Apple são chips e semicondutores made in America pela Texas Instruments ou pela Broadcom. Materiais banais, usados em toda a indústria eletrónica, de telemóveis a computadores, de automóveis a eletrodomésticos. A procura é tanta que o preço disparou e os tempos de entrega, que eram de poucas semanas, passaram para prazos tão absurdos como seis meses ou quase um ano.

Fábricas paradas, menos 10 milhões de iPhone 13

No início de outubro, quando os principais fornecedores da Apple na China deviam estar a trabalhar a todo o vapor para produzir o último iPhone e os novos iPads lançados no mês anterior, muitas dessas fábricas não só não estavam a fazer horas extra como não conseguiam sequer ter as horas de laboração normais. Foi a primeira vez em mais de uma década que, tão perto do natal, essas fábricas fecharam durante dias seguidos, segundo uma reportagem recente do Nikkei Asia. 

"Devido à quantidade limitada de componentes e chips, não fazia sentido trabalhar horas extras", revelou o responsável de uma dessas unidades de produção, citado pelo Nikkei Asia. "Isso nunca aconteceu antes."

Resultado: a produção de iPhones e iPads está muitos milhões aquém do previsto e a época mais forte de vendas, no Natal e ano novo, pode significar a frustração de muitos clientes potenciais.

Ainda de acordo com a grande investigação da Nikkei Asia, em setembro e outubro a produção do iPhone 13 ficou 20% abaixo do que estava planeado. E isto aconteceu apesar da decisão da empresa de dar toda a prioridade ao seu produto mais importante, desviando para a produção do iPhone 13 componentes destinados a outros artigos, como modelos anteriores do iPhone e toda a produção de iPads.

Sem surpresa, essa prioridade ao último modelo do iPhone refletiu-se em cortes de produção ainda maiores dos outros artigos. A de iPad ficou 50% abaixo do previsto. O fabrico do iPhone 12 e iPhone SE também caiu cerca de 25%. A situação para estes produtos não melhorou em novembro.

Clientes esperam para comprar o iPhone 13

De acordo com os dados atuais, a produção total da Apple em 2021 ficará muito longe dos valores previstos no início do ano. Só no caso do iPhone 13, e apesar de ser o artigo menos afetado do catálogo da tecnológica americana, estarão em casa cerca de 10 milhões de unidades a menos entre setembro e 31 de dezembro. Deviam ser colocados no mercado 95 milhões de unidades, mas o valor final ficará entre os 83 milhões e os 85 milhões. 

Toda a produção mundial de iPhones ao longo do ano, que a companhia estimava que seriam 230 milhões de unidades, será encurtada em pelo menos 15 milhões.

Não há volta a dar: vão faltar iPhones no sapatinho (e iPads e muitos mais gadgets, como veremos abaixo). Os prazos de entrega de encomendas do iPhone 13 apontam neste momento o final do ano - a situação melhorou; em novembro, a demora estava em mais de cinco semanas. No caso do iPad, cilindrado pela prioridade dada ao iPhone 13, as encomendas feitas agora ao fabricante deverão chegar lá para finais de janeiro. 

Todos os equipamentos tecnológicos afetados

Convém ter em conta que as dificuldades da Apple estão longe de ser caso único. Pelo contrário: o gigante americano é até das marcas menos afetadas pela crise global da cadeia de distribuição, pois tem uma posição no mercado e uma capacidade de negociação incomparável. Uma marca que é responsável por 200 milhões de iPhones, 20 milhões de MacBooks, 50 milhões de iPads e mais de 70 milhões de AirPods anualmente tem um poder que ninguém disputa. Aliás, se algo distingue a companhia de Tim Cook, para além da capacidade de inovação, é a complexidade e perfeição da sua cadeia de produção - a marca é americana, mas a produção é literalmente global, e ao longo de anos funcionou como um relógio suíço.

O caso da Apple é sintomático por outra razão: se a Apple sofre estes constrangimentos, é sinal de que todos os outros players do mercado de tecnologia se debatem com dificuldades ainda maiores. A borrasca tem de ser mesmo muito grande para atingir até a Apple.

Que o digam outros colossos da indústria da eletrónica de consumo como a Samsung, a Xiaomi ou a Oppo; fabricantes de computadores como a HP, a Dell e a Acer, ou os gigantes das consolas Sony, Nintendo e Sega. Os grandes fabricantes de eletrodomésticos, como a LG e a Dyson, também têm a mesma história para contar. 

A lista de espera para conseguir uma Playstation 5 faz da consola da Sony um dos produtos de eletrónica mais desejados do momento. A companhia japonesa contava colocar no mercado até março mais de 16 milhões de unidades, mas já admite que será um sucesso se conseguir chegar aos 15 milhões. E o esforço para lá chegar tem afetado também a produção da PS4. A PS5 foi a consola da Sony que mais depressa chegou aos 10 milhões de unidades vendidas (marca atingida em julho), mas desde então as vendas têm sido mais lentas do que as do modelo anterior por falta de produto no mercado. 

A rival Nintendo queixa-se do mesmo problema. As vendas da consola Switch devem ficar 1,5 milhões de unidades abaixo do previsto para este ano. Até março, a produção da Switch deve ficar 20% do previsto. 

Mesmo marcas tão poderosas como estas queixam-se de que, na selva negocial em que se tornou o mercado de componentes eletrónicos, são passados para trás por players mais poderosos. 

O impacto da guerra comercial

Neste tabuleiro global, há outro facto que teve um papel central na corrida a matérias-primas e componentes essenciais de equipamentos eletrónicos: a guerra comercial entre Washington e Pequim. 

Ainda antes da pandemia, a Huawei foi a primeira vítima da guerra comercial declarada no tempo de Donald Trump. O momento definidor desse braço de ferro foi a prisão da vice-presidente e CFO da Huawei, Meng Wanzhou, também conhecida como “Princesa da Huawei”. Foi detida no Canadá a pedido das autoridades americanas e extraditada para os EUA sob acusação de fraude. Pouco tempo depois, a Huawei surgia na lista negra de marcas banidas pelos Estados Unidos por colocar riscos à segurança nacional - e Washington pressionou os aliados para que também bloqueassem o acesso da tecnológica chinesa aos respetivos mercados.

Vendo o caminho que a guerra comercial levava, e temendo ficar excluída dos mercados globais, a Huawei começou a acumular matérias-primas e componentes indispensáveis à produção dos seus equipamentos. Outros fabricantes chineses de equipamentos tecnológicos começaram a fazer o mesmo, perante a ameaça dos Estados Unidos de elevar tarifas alfandegárias. 

Estávamos em 2019, ainda o SARS-Cov2 não tinha sido descoberto em Wuhan, e debaixo dos radares já estava a acontecer uma corrida aos stocks. Por essa altura, o inventário da ZTE, o maior fornecedor chinês de componentes para telecomunicações, triplicou. Em 2020, o governo norte-americano colocou na sua lista negra o maior fabricante chinês de chips, a SMIC (Semiconductor Manufacturing International Corp.). 

Por todo o mundo, os clientes da SMIC recearam ficar sem fornecimento e começaram a fazer grandes encomendas aos concorrentes do fabricante chinês - o grande beneficiário foram as fábricas de Taiwan. Um mercado que estava estabilizado ficou, em pouco tempo, em rutura. O impacto da pandemia só agravou a situação, impondo suspensões de produção um pouco por todo o mundo. Conforme os fornecedores fora da China se mostravam incapazes de responder ao aumento da procura, os mesmos clientes acautelavam-se, duplicando e triplicando encomendas - e voltaram a comprar à SMIC e às outras fábricas chinesas, que continuaram a ser essenciais neste mercado apesar do boicote americano.

A questão deixou de ser “quem está a açambarcar componentes e matérias-primas?” e passou a ser “quem não está a açambarcar?”. E, ao fim de algum tempo, até isso deixou de compensar as falhas da cadeira global de distribuição.

Os analistas ouvidos por diversas publicações internacionais de economia admitem que a tendência será de normalização, conforme a pandemia deixe de ser tão disruptiva. Mas levará tempo. Na melhor das hipóteses, no segundo semestre de 2022 as pressões no mercado deixarão de ser tão notórias. Talvez o Natal do ano que vem já seja “normal”.

Até lá, talvez seja melhor pensar em prendas alternativas, caso ainda não tenha encomendado aquele smartphone ou aquela consola.

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