"Perdi a noção do dinheiro". Histórias de vício: "No online não é dinheiro, são números"

8 jun 2022, 22:28

Três casos de vício de jogo: um começou a jogar na adolescência; o segundo perdeu mais de meio milhão de euros; e o terceiro trocou os casinos físicos pelo jogo online durante a pandemia

A 'carreira' de apostador de Luís Silva começou quando era adolescente e durou quase uma década. Apostou em todo o tipo de desportos - mesmo naqueles que desconhecia - e ligas secundárias ou distantes que não dizem nada a qualquer português.

Passou noites em branco que começavam com apostas em futebol, passavam para as apostas em jogos da NBA, partidas de ténis, hóquei no gelo e podiam chegar à liga australiana onde os encontros começavam durante a manhã portuguesa.    

0,9 segundos

"Só não apostei em lutas de galinhas porque não encontrei", ironiza Luís Silva que percebeu que tinha um problema sério após mais um jogo de basquetebol que foi um desastre para as suas contas.

Faltavam 0,9 segundos e a 'sua' equipa ganhava. Quando nada o fazia esperar, numa jogada que ficaria histórica na NBA, um jogador da equipa adversária fez um triplo que virou as contas da partida e da aposta do jovem Luís.

Aquele triplo que caiu no cesto já depois do apito final significou "um vazio dentro de mim pois ia ser mais um mês de mentiras, esquemas, truques... Fiquei sem dinheiro para comer, para pagar renda, para nada...".

Perder mais de meio milhão de euros em 20 anos

Luís Silva desconhece completamente quanto dinheiro perdeu, ao contrário do que acontece com João que ao longo de duas décadas de vício estima que perdeu pelo menos 500 a 600 mil euros, apesar de confessar que "provavelmente foi mais".  

Tal como Luís e apesar de ser mais velho, João (que prefere não revelar o apelido) tinha uma vida invisível para os amigos e família.

Durante duas décadas andou naquilo a que chama "vida dupla": "arranjava dinheiro, depois pagava dívidas, depois arranjava dinheiro e pagava dívidas... sempre a tentar justificar o dinheiro que gastava".  

Seis recaídas e um divórcio

Hoje, João tem pouco mais de 40 anos. Entrou no jogo ainda nos tempos áureos dos casinos. Com a Internet virou-se para os jogos de fortuna ou azar no online e depois para as apostas desportivas.

Para este viciado em jogo a Internet significou o descalabro: "Foi a altura em que a quantidade de dinheiro que gastava foi cinco ou seis vezes superior".

"No online não é dinheiro, são números. Perdi a noção do dinheiro", confessa este viciado em jogo que depois de seis recaídas e de um divórcio provocado pela adição acabou por ser internado.

Online em alta

Nos últimos dois anos o jogo e as apostas online prosperaram em Portugal. As receitas têm aumentado de forma contínua e hoje os portugueses gastam, ao todo, mais de 1,3 milhões de euros por dia em sites deste tipo, algo que preocupa os psicólogos que acompanham os casos de adição e que confirmam que o online tem factores muito mais atractivos que os casinos físicos.

Os peritos recordam que é possível jogar em qualquer lado, apenas com um telemóvel, e que a distância de um ecrã faz com o dinheiro valha, psicologicamente, menos. 

"A heroína do jogo"

A Associação Portuguesa de Casinos já admitiu que a pandemia e o fecho de portas durante largos meses desviou boa parte dos clientes para o online e muitos não regressaram.

Foi isso que aconteceu a Madalena (nome fictício), uma jovem de pouco mais de 30 anos que começou a jogar em casinos pouco antes da pandemia e que com o confinamento se virou para a Internet.

"Estava muito tempo em casa, muito tempo fechada e naquela altura não havia como sair para ir ao casino", recorda. A solução foi jogar online e aí o hábito de jogar ficou mais viciante.

"O online é... a heroína do jogo. Vais uma vez, vais a segunda, vais a terceira, quando dás conta já lá estás", desabafa Madalena que não joga há cerca de dois meses e que acumulou mais de 30 mil euros de dívidas. Pelo meio foi despedida e enganou amigos que naturalmente acabou por perder.

"Nós conseguimos transformar uma pedra em ouro se precisarmos de dinheiro", constata.  

"A solução de todos os problemas"

Para Luís Silva "o jogo passou a ser a solução para todos os problemas" a partir de 2010, com apenas 16 anos, após uma aposta em que previu um empate da selecção portuguesa contra o Chipre.

O golo do Chipre, aos 89 minutos, valeu mil euros e deu-lhe "uma sensação de adrenalina" indescritível que queria "voltar a sentir", esquecendo-se dos problemas pessoais e inclusive do divórcio dos pais.

Entretanto, o adolescente Luís cresceu e começou a trabalhar. Pelo meio tirou dinheiro aos pais, à avó e enganou amigos, pedindo dinheiro emprestado para "alimentar o vício".  

Luís Silva tem hoje 28 anos, não joga há mais de dois e talvez por isso fale do assunto com um sorriso de quem recorda um tempo cada vez mais distante.

Vive no Algarve, mas ainda hoje faz questão de visitar, regularmente, a Clínica Linha de Água, na Batalha, onde esteve internado seis meses e onde acabou por conseguir controlar a sua adição.

Conta a sua história e dá a cara para tentar ajudar quem sofre em silêncio de uma dependência semelhante.
"É como se tivesse um animal aqui dentro que neste momento está adormecido e que eu preciso de fazer algumas coisas para continuar adormecido", conclui, apesar de sublinhar que não se lembra da última vez que teve vontade de jogar.

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