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Estratega & Ex Cripto-céptico

Auditoria ao apagão é a nova comissão de inquérito?

30 abr, 07:45
Aeroporto de Lisboa (Tiago Petinga/LUSA)

Num cenário caótico, só se resolve o problema balizando o erro e avançando com coragem. O maior erro costuma mesmo ser o de não decidir. A nossa sede permanente de vilões atira inevitavelmente para a sombra os heróis

Após o apagão elétrico em Portugal e Espanha, muitos clamam por auditorias para apurar responsabilidades. Mas será esse mesmo o caminho certo? A minha resposta é que, ao contrário do que parece à primeira vista, essa não é uma boa ideia.

O que é uma auditoria

A auditoria é um processo sistemático, independente e documentado que visa obter evidências e avaliá-las objetivamente com o propósito de determinar em que medida os critérios de auditoria (como procedimentos, normas ou requisitos legais) foram cumpridos. Implica, portanto, uma noção de culpa que ficará estampada e personificada naquele, ou naqueles, que não cumpriram os ditos critérios.

É isso que muitos clamam agora, passada a tormenta e com todos novamente já com acesso ao X e à televisão onde podem despejar críticas e louvores. No artigo de ontem descrevi um pouco o que são sistemas críticos - e sistemas críticos envolvem situações que estão fora do padrão de estabilidade a que estamos habituados, requerendo a adoção de medidas que não são convencionais.

Percebo que se queira auditar as possíveis razões para o apagão que ocorrido em Espanha e Portugal, mas isso não significa que esteja de acordo com uma auditoria quanto à forma como o problema se resolveu. Fazer uma auditoria às entidades envolvidas na resolução do problema é como querer fazer uma comissão de inquérito como bónus a todos aqueles que arregaçaram as mangas e enfrentaram o touro apenas com uma faixa vermelha na cintura.

Não se faz - e vou explicar porquê:

O "retorno da experiência"

Na gestão de projetos, existe um outro processo, conhecido por RoE — Return of Experience, ou “Retorno de Experiência”. Trata-se de uma ferramenta estratégica de aprendizagem organizacional, integrada normalmente em processos de melhoria contínua. O seu princípio é pró-ativo e não acusatório: visa transformar a experiência adquirida durante um projeto — sucessos e falhas — em conhecimento reutilizável.

A auditoria procura falhas e culpados; o RoE visa aprendizagem a partir das próprias falhas. Esta é a grande diferença que coloca ambos nos extremos opostos.

É evidente que houve falhas anteontem. Quando um sistema, qualquer que seja, rebenta por completo, e ainda por cima pela primeira vez, é óbvio que não é humanamente possível encontrar soluções sem que haja falhas. Aconteceu na pandemia e decerto aconteceu agora, com a diferença de que anteontem havia um curto espaço de tempo para resolver a questão, enquanto no caso da pandemia, o próprio tempo também ajudou a resolver.

Pensemos num caso que um médico aparece na televisão e diz que executou uma cirurgia “de exenteração pélvica anterior com reconstrução microcirúrgica utilizando um retalho miocutâneo anterolateral da coxa (ALT flap), que é indicada em casos avançados de carcinoma invasivo da bexiga. O procedimento envolve a cistectomia radical, histerectomia total, vaginectomia parcial e exérese do reto sigmoide, seguida da criação de um urostoma e de uma neovagina vascularizada. A reconstrução é realizada por anastomose microvascular entre vasos epigástricos inferiores e os pedículos do retalho ALT, garantindo cobertura tecidual e funcionalidade pélvica.". Aqui, não veremos comentadores ou políticos a questionar o ato médico nem as escolhas envolvidas. Mas quando se trata de outros temas altamente técnicos, como são as redes elétricas, todos parecem ter opiniões muito assertivas e vincadas.

Heróis e vilões

Nada nos impede de dar a nossa opinião, mas devia haver muito que nos impedisse de fazer juízos sobre o desempenho daqueles que, tal como o médico, agem e decidem com base na especialidade que dominam. Estamos sempre muito focados em encontrar vilões - e, com isso, por vezes ignoramos os heróis que estão mesmo ao nosso lado.

Num processo altamente complexo, ou mesmo caótico, da dimensão do que aconteceu esta segunda-feira, são necessárias centenas de decisões por segundo e, naturalmente, cada uma das decisões tem o potencial de ser a correta, ou a errada. Proteção Civil, rede de transporte, transporte de combustíveis, hospitais, polícia, INEM, gestão de águas e resíduos e muito mais além da mera chatice de não podermos ir ao telemóvel colocar um post ou um feed.

A cada instante chegam dados que podem mudar em minutos - depois de uma série de decisões já terem sido tomadas. Num contexto como o de anteontem, as decisões passam de certas a erradas num ápice. O que distingue uma operação eficaz é a capacidade de decidir com base em treino, processos e conhecimento, minimizando o impacto das decisões erradas e maximizando o impacto das decisões certas. Só assim se consegue resolver o problema: balizando o erro e avançando com coragem.

Só acredita que ninguém errou quem nunca participou num projeto verdadeiramente complexo. Procurar um erro num momento de caos é descontextualizar. O maior erro costuma mesmo ser o de não decidir.

Claro que houve falhas, mas claramente a manutenção da ordem e a resolução do problema provaram que as equipas estavam preparadas para enfrentar um processo complexo, mas sobretudo que estavam prontas para decidir quanto a tudo o que não estava nesse mesmo processo. Portugal já não é o país do desenrasca.

Fazer uma auditoria, neste caso, é um erro estratégico. Já um processo de Return of Experience (RoE) não só é desejável — é essencial. Porque promove a aprendizagem, a melhoria contínua e a preparação para futuros desafios semelhantes. O primeiro limita a capacidade de decisão, corta as pernas que são necessárias a quem decide, criando “monos”.

A nossa sede permanente de vilões atira inevitavelmente para a sombra os heróis. Não porque alguém tenha medo de auditorias, mas porque uma sociedade que se foca nos micro erros em vez de elogiar os grandes feitos acaba por afastar os líderes. O que interessa se a central deveria ter sido ligada antes ou as comportas da barragem abertas depois? Interessa sim um todo, uma missão que levou a um resultado que, como já disse, para a maioria dos especialistas do sector, foi extraordinário.

Por uma vez, "culpemos" todos – inclusive os cidadãos e o seu enorme civismo – por tudo ter corrido bem. E aprendamos a melhorar!

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