Mais de 100 países, incluindo Portugal, subscreveram na sexta-feira uma carta de apoio ao secretário-geral da ONU, depois de Israel o ter declarado 'persona non grata' pela forma como condenou o ataque do Irão a Telavive. Um apoio que surgiu no mesmo dia em que era apontado como candidato a vencer o Nobel da Paz. À CNN Portugal, quem o conhece descreve um homem extremamente inteligente, que sempre viveu para o bem comum
Uma “pessoa especialmente dotada em termos de inteligência”, “com um conhecimento imbatível relativamente à história mundial” e “um ativista convicto”. Quem conhece António Guterres não fica surpreendido com o percurso que tomou a sua carreira profissional.
“Do engenheiro António Guterres, destaco a sua inteligência. Uma inteligência absolutamente rara. É um homem que, ao longo da sua vida, tem agido de acordo com os seus princípios, colocando os seus talentos ao serviço dos outros, regido pelos grandes princípios da humanidade. Uma pessoa exemplar. Para mim, é até um modelo”, descreve à CNN Portugal o padre Vítor Melícias, amigo de António Guterres há “dezenas de anos” e uma espécie de guia espiritual do atual secretário-geral das Nações Unidas.
Os bancos da escola
António Guterres nasceu em Lisboa, a 30 de abril de 1949, mas tem raízes familiares na aldeia das Donas, concelho do Fundão. Filho de Virgílio Dias Guterres e Ilda Cândida de Oliveira, António cedo revelou ser uma criança com grandes capacidades de aprendizagem. Frequentou o Liceu Camões, em Lisboa, onde se destacou como aluno, ao ponto de, em 1965, ter ganhado o Prémio Nacional dos Liceus.
No Liceu Camões foi colega de carteira de grandes nomes da política, da cultura e até da medicina. António Rendas, médico, antigo reitor da Universidade Nova de Lisboa e antigo presidente do Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas, sentou-se na carteira atrás “do António” durante sete anos: “Mantivemos sempre uma boa relação do primeiro ao sétimo ano”. “Tive o privilégio de ser muito amigo da primeira mulher do António, a doutora Luísa Melo. Depois, por circunstâncias que têm a ver com as minhas funções, tornei-me muito amigo da atual esposa. Tenho muita estima e admiração por ele. Acho que está a fazer um excelente trabalho, o que não me surpreende”, conta António Rendas à CNN Portugal.
O antigo reitor da Universidade Nova de Lisboa recorda Guterres como “um excelente aluno, o melhor da turma” e “um católico convicto”. “Não andava a apregoar as suas convicções, mas era um católico convicto”, recorda.
Também o psiquiatra José Gameiro foi colega de liceu de António Guterres e recorda as capacidades de aprendizagem do antigo primeiro-ministro. “O António era daqueles tipos que se percebe que estava talhado para este tipo de coisas. Era um excelente aluno, muito certinho, muito bem-comportado, não tinha muito jeito para as coisas físicas (e, na verdade, eu também não tinha). Não me lembro de ele ter atividade política nessa altura, mas lembro-me de ser já um homem de convicções muito fortes, ligado já a movimentos católicos”, aponta o médico psiquiatra.
O ativismo social
Depois de concluir o Liceu Camões, iniciou a licenciatura em Engenharia Eletrotécnica no Instituto Superior Técnico, em Lisboa, onde também se destacou como aluno, mas também onde começou a atividade política e de ativismo social. Terminou o curso em 1971, ano em que começou a lecionar na mesma instituição onde se formou.
Foi presidente do Centro de Ação Social Universitário, uma associação que desenvolvia projetos socais em bairros pobres em Lisboa, durante a década de 70. Envolveu-se em atividades de ação social, promovidas pela Juventude Universitária Católica e foi membro do chamado Grupo da Luz, coordenado pelo padre Vítor Melícias. “Refletiamos sobre o Concílio Vaticano II e a realidade portuguesa, marcada pela censura, pela PIDE, pela emigração e pelo conservadorismo. O grupo passou depois a reunir-se no Largo da Luz, no Seminário dos Franciscanos, onde eu residia”, lembra Vítor Melícias.
“Quando foi aquele incidente com as cheias em 1967, ali para os lados de Loures, em que morreu muita gente, o António Guterres fez um trabalho notável a ajudar as pessoas. Na altura, a PIDE encobriu aquilo, até para não aterrorizar as pessoas. Mas o António Guterres fez um trabalho notável”, exemplifica.
A ligação de amizade que une António Guterres e Vítor Melícias manteve-se ao longo dos anos e ainda hoje trocam frequentemente mensagens. O franciscano presidiu ao primeiro casamento, batizou e deu catequese aos filhos, presidiu o funeral da primeira mulher do antigo primeiro-ministro e presidiu ao segundo matrimónio.
Juntos, além do Grupo da Luz, estiveram na génese de várias associações de ativismo social que ainda hoje se mantêm. “A Deco foi fundada praticamente pelo Grupo da Luz. O António Guterres é o associado n.º 1, creio eu. Também estivemos entre os fundadores da APAV”, recorda o sacerdote.
Do ativismo social à política
Do ativismo social à política, o passo foi pequeno. Aderiu ao Partido Socialista (PS), pelo qual viria a exercer cargos políticos nos primeiros governos após o 25 de Abril. Foi deputado da Assembleia da República desde 1976 e presidiu a diversas comissões parlamentares durante 17 anos. José Gameiro recorda o dia em que lhe entrou pelo hospital adentro para o convidar para o partido. “Quando me formei, fui fazer bancos para Torres Novas. Um dia, apareceu lá no banco a convidar-me para o PS. Disse-lhe que não, porque eu estava no MES (Movimento de Esquerda Socialista), mas lembro-me muito bem desse dia”, conta.
Guterres foi também membro da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa entre 1981 e 1983, onde presidiu à comissão de Demografia, Migrações e Refugiados. Em 1992, foi eleito secretário-geral do PS e mais tarde exerceu o cargo de primeiro-ministro chefiando os XIII e XIV Governos Constitucionais, entre 1995 e 2002.
“Conheci o engenheiro António Guterres na SEDES, onde ele era um jovem com um papel extremamente importante. Era um cidadão extremamente empenhado na preparação da democracia, com uma grande preocupação com as questões sociais, com o desenvolvimento económico e coesão social, com o combate às desigualdades e às injustiças sociais”, recorda à CNN Portugal Guilherme de Oliveira Martins, que foi ministro da Educação, das Finanças e da Presidência no Governo liderado por António Guterres.
"Especialmente dotado em termos de inteligência"
Maria de Belém Roseira assumiu a titularidade da pasta da Saúde no Governo de António Guterres e também ela recorda à CNN Portugal um homem dedicado ao próximo desde muito cedo, uma característica que, garante, comprovou quando foram colegas de Governo. “Durante o período em que foi primeiro-ministro e eu titular da pasta da Saúde, pude apreciar melhor as suas qualidades enquanto governante, sempre muito pautadas pela preocupação do desenvolvimento humano”, sublinha.
“É uma pessoa especialmente dotada em termos de inteligência. Conhecemos muitas pessoas dotadas de inteligência, mas ele é diferente. Sempre considerou que esses talentos deveriam ser colocados ao serviço dos outros. Sempre esteve na política para servir o bem comum, mesmo na sua perspetiva filosófica”, acrescenta Maria de Belém Roseira.
Enquanto primeiro-ministro de Portugal, Guterres esteve também envolvido na resolução da crise de Timor-Leste. Há quem defenda que o processo de paz em Timor-Leste “deve muito” a António Guterres. “A libertação de Timor-Leste deve-se fundamentalmente a ele. Quem teve a coragem, juntamente com Jaime Gama e Jorge Sampaio, de agir em prol da libertação de Timor foi o António Guterres. Não é por acaso que o Alexandre Gusmão lhe entregou o cartão de cidadão timorense”, sublinha Vítor Melícias.
O parlamento de Timor-Leste atribuiu, em agosto deste ano, por unanimidade a nacionalidade timorense a António Guterres, pela “prestação de altos e relevantes serviços ao país” ao longo de várias décadas. Na resolução aprovada, os deputados timorenses referem que António Guterres teve “um papel fundamental na defesa da autodeterminação de Timor-Leste, tendo contribuído para suscitar a questão timorense nos mais altos fóruns internacionais”, pressionando para a realização do referendo sobre a independência em 1999.
“Ainda recentemente, aquando da visita do Papa Francisco à Indonésia e a Timor-Leste, ele acompanhou muito atentamente a visita, as palavras e as preocupações”, nota Guilherme de Oliveira Martins, para quem “existe entre Guterres e o Papa Francisco uma grande confluência, e até um contacto discreto, uma grande partilha de preocupações”.
Depois do Governo
António Guterres presidiu ao Conselho da União Europeia durante a presidência de Portugal, no primeiro semestre de 2000 – altura em que foi adotada a Agenda de Lisboa e foi realizada a primeira cimeira entre a União Europeia e os países africanos. Após a demissão do cargo de primeiro-ministro foi consultor do Conselho de Administração da Caixa Geral de Depósitos.
Continuou, garantem os amigos, a entregar tempo aos outros. “Quando deixou de ser primeiro-ministro, a atividade voluntária que desejou desenvolver foi a de participar na educação e no acompanhamento de jovens estudantes carenciados”, recorda Guilherme de Oliveira Martins.
“Não é homem para dar murros na mesa, mas também não é homem para desistir dos processos. A humanidade e a Igreja até, devem-lhe muito. É um homem de paz. Um homem que às vezes até sacrifica o seu nome, a sua oportunidade política, em detrimento do oportunismo”, garante Vítor Melícias.
As Nações Unidas
António Guterres entrou para as Nações Unidas em 2005, quando foi nomeado Alto-Comissário das Nações Unidas para os Refugiados, cargo que viria a ocupar durante dez anos. Exerceu o cargo em tempos exigentes, num mandato marcado pelo agudizar de conflitos na Síria, no Iraque e no Iémen e de várias crises no continente africano, como no Sudão do Sul e na República Centro-Africana. Nesse período levou a cabo uma série de reformas estruturais do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), visando melhorar a capacidade de resposta e a eficácia da agência em situações de emergência.
A 1 de janeiro de 2017 sucedeu a Ban Ki-moon à frente das Nações Unidas, cargo que ocupa até hoje. O mandato de secretário-geral da ONU ficará definitivamente marcado pela guerra na Ucrânia e pelo agudizar do conflito no Médio Oriente.
“O António Guterres está numa posição semelhante ao Papa. Aquilo que o Papa é para a Igreja, o Guterres pode ser para as Nações Unidas”, nota o Padre Vítor Melícias.
Um "leitor extraordinário" e um "viajante profissional"
Guilherme de Oliveira Martins destaca a disponibilidade de Guterres para “situações concretas”, apesar do cargo que exerce como secretário-geral da ONU. “Mesmo neste tempo de mil preocupações e mil ocupações, ele está sempre disponível. É alguém que está sempre disponível para os outros. Ele anda por todo o mundo, mas existe sempre uma grande disponibilidade relativamente às situações concretas”, garante.
O antigo ministro de António Guterres destaca ainda características mais mundanas do também amigo. “É alguém que tem um forte de sentido de humor, mas sobretudo a partir do senso comum e do bom senso. É um leitor extraordinário e um viajante profissional. Prepara muito pormenorizadamente as suas viagens não profissionais. É imbatível na preparação de viagens. Descobre sempre o sítio mais interessante, o sítio melhor e o sítio que não pode deixar de ser visitado”, revela.
António Guterres é um apaixonado pela História, com “um conhecimento imbatível relativamente à história mundial”, capaz de “ver além daquilo que os comentários comuns evidenciam”. “É um homem para quem a História não é feita apenas de claros e escuros. Tem a preocupação de compreender e conhecer a realidade nas suas diferentes perspetivas”, garante Oliveira Martins.