Folhetim de voto: E agora algo completamente diferente

25 jan 2022, 06:05
António Costa em campanha no distrito de Bragança (Lusa/Miguel A. Lopes)

António Costa deu uma cambalhota estratégica: já não pede maioria absoluta e afinal está pronto para negociar com todos os partidos. Leva a palma da campanha mais errática de que há memória, escreve o jornalista de política Filipe Santos Costa, na coluna diária de análise e opinião sobre campanha. Faltam 6 dias para as eleições

Não me lembro de uma campanha tão errática como a que António Costa tem protagonizado. Começou por pedir uma “maioria clara, estável e duradoura”, fugindo, como no passado, do apelo à maioria absoluta, a tal expressão que em política queima a língua de quem a pronuncia. E eis que, sem mais nem menos, talvez embalado pelas sondagens, que pareciam deixá-lo a pouca distância da maioria absoluta, Costa se deixou de cuidados e assumiu essas palavrinhas. Mas, afinal, agora mudou outra vez de discurso. 

Durou pouco a campanha de Costa para uma maioria absoluta socialista. Acabou ao ver a derrapagem do PS nas sondagens, que coincidiu com a aposta no apelo à maioria absoluta. De acordo com a tracking poll da CNN Portugal, o PS voltou a recuperar, mas continua em situação de empate técnico com o PSD (na sondagem de hoje da Aximage também, mas com ligeiríssima vantagem para o PSD). Foi o suficiente para Costa deixar de falar em maioria absoluta e deixar de ter as questões da estabilidade no centro do seu discurso.

 

Reviravolta. Ontem, consumou-se a cambalhota estratégica de António Costa, em entrevista à Rádio Renascença. “Com certeza, a seguir às eleições vamos ter de conversar com todos os partidos”, à exceção do Chega, declarou, uma garantia que repetiu mais tarde, durante uma ação de campanha em Bragança. 

Costa admite “conversar com todos”, porque “depois do aconteceu, não posso dizer que geringonça seja a única solução”. Pode não ser a geringonça, mas também pode ser a geringonça, e Costa está disponível para conversar com Catarina Martins, conforme o desafio da líder do BE. Diz, aliás, que nunca fechou a porta a conversar com o Bloco, o que é facilmente desmentido pelas várias declarações em que fechou a porta a conversar com o Bloco (como se pode ler aqui, no fact checking da CNN). Mas também está disponível para falar com a direita. Confuso? Sim. 

 

Rio estadista. A reviravolta de Costa permitiu a Rui Rio polir a sua melhor pose de estadista: “Tenho alguma dificuldade em comentar isso porque o dr. António Costa disse isso ontem, mas antes tinha dito uma coisa completamente ao contrário e eu receio que amanhã diga ainda outra diferente e depois eu vou comentar uma coisa que amanhã já não tem validade porque entretanto ele já mudou outra vez. É melhor não comentar.”

 

Recapitulando. Há menos de uma semana, António Costa jurava que  “só com maioria absoluta o país pode ter estabilidade nos próximos quatro anos”. O líder socialista, que pediu maioria absoluta por considerar que os antigos parceiros da geringonça deixaram de ser “confiáveis”, afinal voltou a estar disponível para falar com os antigos parceiros da geringonça. O candidato que pedia uma maioria absoluta por não querer conversas com a direita (lembra-se de quando Costa dizia que no dia em que dependesse do PSD para aprovar um orçamento o seu governo estaria condenado?), afinal também está disponível para falar com a direita. 

De repente, note-se, Costa mostra-se disponível para conversar com o PSD, cujo programa está cheio de “maroscas”, e que põe em risco o futuro da Segurança Social e o SNS tendencialmente gratuito. Para conversar com Rui Rio, que acusa de ser a reencarnação de Passos Coelho. E também com o CDS e a Iniciativa Liberal, que Costa zurziu sem dó nem piedade nos debates a dois.

 

Pragmatismo. A cambalhota de Costa, em tão poucos dias, faz lembrar a velha máxima de Groucho Marx: “Estes são os meus princípios, se não gostar tenho outros.”

Costa perdeu em coerência o que ganhou em pragmatismo. Optou por não persistir no erro. A conversa da maioria absoluta estava a afugentar eleitores. Deu ao líder socialista traços de arrogância cavaquista, ao mesmo tempo que o fez queimar todas as pontes de diálogo com potenciais parceiros no caso de não alcançar esse objetivo. Cada vez mais longe da meta que traçou, e sem parceiros que lhe garantissem a governabilidade, Costa meteu-se num beco sem saída do qual tenta agora fugir. Para a história, fica a mais desastrada cartada de maioria absoluta alguma vez jogada por um primeiro-ministro, e a narrativa de campanha mais errática em muitos anos.

 

Absolutamente. O sistema eleitoral português não foi concebido para facilitar maiorias absolutas. Pelo contrário, os pais da democracia quiseram obrigar os partidos a fazer entendimentos de governo, dificultando as hipóteses de um só partido conquistar mais de metade dos lugares no Parlamento. A primeira maioria absoluta, em 1987, com Cavaco Silva, resultou de circunstâncias únicas, desde o logo o erro de cálculo da oposição que derrubou um governo jovem e popular, que começava a distribuir pelo país os milhões da Europa. Depois de lhe tomar o gosto, Cavaco foi o único candidato a primeiro-ministro que fez campanha exigindo ao eleitorado uma maioria absoluta. Fez disso condição para continuar em funções - e conseguiu.

Nessa campanha de Cavaco, não houve hesitações nem tibiezas. Era pão-pão, queijo-queijo. Uma exigência que batia certo com o perfil político do “homem do leme”, que “nunca se enganava e raramente tinha dúvidas”, e tinha zero disponibilidade para andar em negociações com os outros partidos, e raramente punha os pés na Assembleia da República. Essa exigência encaixava na sua persona política. E, à boleia dos milhões da Europa, Cavaco sentia-se com força suficiente para impor aos eleitores um tudo ou nada. Apostou e ganhou, reforçando em 1991 a maioria de 1987.

 

Guterres. António Guterres, que sucedeu a Cavaco, nunca pediu maioria absoluta - os socialistas tinham demonizado de tal forma essa fórmula, que Guterres evitou sempre ir por aí. A teoria de Guterres era a mesma que Costa seguiu ao longo de muitos anos: as maiorias absolutas não se pedem; ou se conquistam ou não. Ponto. Quando foi reeleito em 1999, conseguindo metade dos deputados (115/115), houve quem teorizasse que, se tivesse dramatizado o apelo à maioria absoluta, Guterres poderia ter chegado aos 116 lugares. Mas é uma teoria indemonstrável.

 

Sócrates. O outro primeiro-ministro a alcançar uma maioria absoluta foi José Sócrates. Nunca escondeu que era esse o seu objetivo - usou fórmulas aproximadas, como “maioria clara”, “maioria estável”, “apoio maioritário”, blá-blá-blá, mas também falava em “maioria absoluta”. “A questão da maioria absoluta já não é uma opção; é uma necessidade”, dizia Sócrates. Mas não se deixou cair na tentação de fazer uma exigência que não tinha certeza de alcançar. Curiosamente, nessa campanha Guterres pediu para o seu delfim o que nunca havia pedido para si próprio. “Nunca pedi para mim essa maioria. Mas hoje a situação é muito mais difícil”, afirmou num comício, acrescentando: “Tenho a autoridade moral de, não para mim mas para José Sócrates, pedir a maioria absoluta.”

Convém lembrar o contexto dessa campanha. Do outro lado, estava Pedro Santana Lopes, o primeiro-ministro com o desempenho mais embaraçoso desde os tempos do PREC. A vontade de correr com Santana podia contribuir para um resultado excepcional do PS, que se apresentava a votos com Sócrates, um líder acabado de eleger, sem desgaste e com um discurso focado e determinado que fazia o total contraste com o incumbente. O país estava tão farto de Santana que até Cavaco fazia saber que esperava que Sócrates ganhasse com maioria absoluta. 

 

Costa. Com Sócrates, todos os santos ajudaram. Não é o caso com Costa. Tem o desgaste de seis anos de governação, num país com o cansaço acumulado de dois anos de pandemia, e vai a eleições antecipadas porque a sua aposta política em acordos exclusivamente à esquerda se desmoronou. No dia em que o Orçamento foi chumbado com os votos do PCP e do BE, a narrativa de Costa desfez-se. Seria sempre difícil reinventá-la. Mas nada faria prever algo tão atabalhoado como apostar num discurso de maioria absoluta que durou meia dúzia de dias.

Depois de tentativas e erros, Costa voltou à casa de partida. Quis convencer os portugueses de que uma maioria absoluta seria algo necessário e sem riscos, mas agora constata que o povo “não tem grande amor pela ideia da maioria absoluta”. O facto de a última ter sido protagonizada por Sócrates talvez contribua para esse desamor.

 

Desorientação. O que mais impressiona nesta desorientação estratégica de António Costa, é que acabou por dar razão aos seus principais competidores nestas eleições. Todos os partidos com os quais o PS disputa eleitorado tiveram razão, e Costa não.

Rui Rio anda há que tempos a dizer que o partido que ganhar as eleições deve poder contar com a abertura do segundo classificado - e promete que, se ficar em segundo, não irá obstaculizar o trabalho ao vencedor, exigindo reciprocidade nesta atitude. Depois de tanto tempo a recusar esse cenário, Costa admite conversar com o PSD, e acaba por dar razão a Rio.

Os comunistas Jerónimo de Sousa e João Oliveira têm desvalorizado a resolução de Costa em fechar portas à esquerda, com um argumento muito pragmático: “uma coisa é aquilo que o PS diz e outra coisa é o que o povo vai decidir”. “Por muito que o PS queira limitar as suas possibilidades e opções apenas à hipótese de uma maioria absoluta ou de haver entendimentos com o PSD, o povo português pode dar uma resposta diferente dessa”, tem avisado Oliveira. Costa acaba de dar razão ao PCP. 

Catarina Martins tem insistido que Costa não pode fechar portas à esquerda, e ainda este fim de semana dizia ao Expresso: “Costa não é irresponsável, negociará soluções para a legislatura”. O líder socialista acaba de lhe dar razão. Com o brinde, para a líder bloquista, de o fazer no dia a seguir a Catarina o ter desafiado para se sentarem a negociar a 31 de janeiro. “Agora espero que seja possível nestes dias que faltam de campanha o PS dar outro passo, deixar este nim, e falar claro sobre necessidade de um contrato à esquerda”, reagiu Catarina Martins.

Até Rui Tavares, do pequenino Livre, teve razão antes de Costa, ao defender novas formas da geringonça (chama-lhe “ecogeringonça”) e ao avisar: “Não nos ponham facas no peito quanto a maiorias absolutas.”

 

Resumindo. Costa dizia, há apenas quatro dias: “Acredito, pela primeira vez, na maioria absoluta”. A breve digressão absolutista do líder do PS terminou, sem lucro nem glória, dando ganhos de causa a Rui Rio, a Jerónimo de Sousa, a Catarina Martins e a Rui Tavares. É obra. E ainda deu pretexto a João Cotrim Figueiredo, da IL, e a Francisco Rodrigues dos Santos, do CDS, para recusarem qualquer tipo de negociação pós-eleitoral com o PS. Chicão até sugeriu às tvs um novo reality show, “Quem quer casar com António Costa?”, avisando: “A mim não me convidem para esse programa.”

 

Mr. nice guy. A reorientação do discurso de Costa ficou bem patente no comício de ontem à noite, em Vila Real. Sem fazer de Rio o bombo da festa, com um discurso pela positiva mostrando o que foi feito, e humilde no reconhecimento de que nem tudo correu bem na gestão da pandemia (“Nunca li nenhum manual sobre como se governa em tempo de pandemia. Mas aprendi e todos nós aprendemos. Em tempo de pandemia governa-se falando com todos, dirigindo-nos a todos”). A pancada no PSD ficou para as segundas figuras do comício.

 

Rio. Continua a preparar o seu futuro governo. Ontem revelou que as florestas passam do Ministério do Ambiente para o da Agricultura. “Já preparei a estrutura [do Governo] a 90%”, diz Rio. Mas não revela nomes porque "senão vocês [jornalistas] vão vasculhar a vida de toda a gente e vão descobrir que certa vez atirou um cigarro para o chão e calcou" - ou que mentiu num currículo; ou que prestou falsas declarações sobre presença em reuniões do Parlamento... Rio continua a viver mal com o escrutínio da comunicação social. Entretanto, apesar de há dias ter admitido cumprir o sonho de Francisco Rodrigues dos Santos, dando-lhe o Ministério da Defesa, Rio diz agora que o seu governo “poderá ser com a IL e o CDS ou não, logo se vê”. Estes devem estar nos 10% que falta estruturar.

 

Adolfo. O ex-vice-presidente do CDS, Adolfo Mesquita Nunes, que se desfiliou do partido no ano passado, declarou que irá votar na Iniciativa Liberal, surpreendendo um total de zero pessoas.

 

Frase do dia. “Eu não sou o Marco Paulo mas tenho dois amores: o PSD e a Aliança. (...) Eu pertenço lá [ao PSD].”

Pedro Santana Lopes em entrevista à CNN Portugal

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