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A serenata à chuva de António Costa ‒ uma entrevista em forma de musical

31 jan 2023, 08:00

Depois de um ano de tempestade, o primeiro-ministro deu ontem uma entrevista em que, dançando entre as gotas da chuva, parecia cantar para elas, de guarda-chuva aberto, impermeável a crises e trapalhadas, e um sorriso tão ágil quanto os passos de Gene Kelly em Singin’ In The Rain (Hollywood, 1952). 

No filme, o secundário ainda que tremendamente útil Cosmo anima o protagonista, seu amigo, dizendo: “Qual é a primeira coisa que um ator aprende? O show tem de continuar! Faça chuva, faça sol, faça neve ou orvalho, o show tem de continuar!”. Costa, feito bailarino, seguiu a máxima perante a bateria de questões de António José Teixeira. O show tem de continuar, senhoras e senhores. E, pelos vistos, vai mesmo.

No aniversário de uma maioria que nem mantém o pé esquerdo com que começou, o dado mais importante foi a aura de inteira normalidade com que António Costa se dispôs a ouvir, responder, bater e rebater cada ponto levantado pelo seu entrevistador, o diretor de informação da RTP. Poder-se-á apontar a falta de uma ideia de país, de um projeto de futuro ou de um otimismo mais esperançado, mas Costa, que nunca foi pródigo em “visões”, tinha realidade a potes com que lidar. O facto é que não fugiu dela. 

Para quem a preparou e para quem a concedeu, foi uma boa entrevista. 

Sorry seems to be the hardest word

“O governo pôs-se a jeito”, “cometeram-se erros”, “aprendi muito”, entre outras, foram surpreendentes expressões de compunção para o chefe de um governo cuja regra é nunca ‒ nunca ‒ assumir diretamente ter metido o pé na poça. 

Nos idos de janeiro, Augusto Santos Silva constatara as evidências com franqueza semelhante. “Não há dúvida nenhuma que [as demissões] são um problema do governo (…) que o desgasta”. Na reunião da Comissão Política Nacional do PS, na mesma semana, Carlos César ensaiara uma versão light do mesmo arrependimento. As polémicas do governo, a que então chamou “situações”, não seriam “boas para a democracia” nem “boas para o sentimento de confiança dos portugueses”. Duas semanas mais tarde, as sondagens confirmariam essa quebra de confiança nos socialistas com um trambolhão de 9% no barómetro da Pitagórica para a CNN Portugal. 

Ontem, o primeiro-ministro falou diretamente para esses 9% e, em mais do que provável contragosto, fez o que não costuma fazer: confessou que errou. 

Arguidos no caminho? Guardo todos. Um dia faço um governo

Outra das novidades, além de uns óculos de haste mais fina, foi a revelação do critério do primeiro-ministro para a manutenção ou exoneração dos governantes consoante a sua situação judicial. 

Arguidos? Mal nenhum. “Eu também já fui, mais do que uma vez”, contou, empenhando-se seguidamente na desdramatização da figura jurídica como criada para defender direitos e não para pré-culpabilizar visados. Para os menos lembrados, foi exatamente assim que relativizou as buscas de que Mário Centeno foi alvo no ministério das Finanças, em 2018, devido à suspeita de um favor fiscal ao filho de Luís Filipe Vieira, hoje ex-presidente do Benfica. No news, good news. 

Pelo meio, declarou a sua confiança na Justiça portuguesa, demarcando-se daqueles que lhe atribuem intenções (indireta direta a Sócrates) e daqueles que se dedicam a pressões (indireta direta à direita).

Por persistência do seu interlocutor, colocou-se a hipótese de um ministro ser acusado e Costa levava a réplica na ponta da língua ‒ no caso, na ponta do guarda-chuva. A Constituição prevê que o parlamento delibere perante esse cenário, rodopiou. E dependerá sempre da gravidade do crime, deslizou novamente, imaculado. Como no parlamento manda o seu PS e a gravidade dos crimes, por agora, é especulação, zás, o show continua outra vez. 

Palma na mão com palma na mão, a pergunta passou debaixo de ambos para, em jeito de grande final, ser Costa a questionar A. J. Teixeira: 

“Mas conhece algum facto criminal contra Fernando Medina?”.

E palmas. 

Da Habitação para a habituação

Antes da cortina vermelha rolar, o primeiro-ministro teve tempo para defender uma década que ainda nem sequer concluiu (“Um aumento do salário médio em 50%” de 2016 a 2026), o desemprego “felizmente” sossegado no último ano e as ditas contas certas, “mas não a qualquer custo”, listando os 6 mil milhões de euros em ajudas extraordinárias ao longo de 2022. 

Com esperteza e espertice, sublinhou a “estabilidade das políticas”, esquecendo que de nada serve sem estabilidade na política, e afirmou que as greves dos professores não são contra nenhuma medida dos seus governos, mas antes fruto de frustrações oriundas de decisões anteriores. Tal é verdade (porque os professores não estão a protestar contra nenhuma solução do PS) e é mentira (porque os professores estão precisamente a protestar contra a ausência de soluções do PS).

A dança prosseguiu, da educação para a habitação, com o anúncio de um conselho de ministros extraordinário focado na pasta recém-promovida a ministério. Ao mesmo tempo, três canais à frente, a TVI noticiava que o ministro dos Negócios Estrangeiros não declarou 78 mil euros em lucros da sociedade imobiliária a que pertence e que a ministra da Agricultura vive atualmente num belíssimo T2 com a renda convenientemente a metade do valor de mercado. Habituem-se, sugeriu-nos Costa, antes do natal. Para a habitação, teremos de esperar pelo conselho de ministros. Para a habituação, avisa que é mesmo “até 2026”.

A música poderia ter parado, que não faltaria coreografia ao primeiro-ministro. Não sobreviveu apenas a um ano absolutamente atípico; sobreviveu incrivelmente à entrevista sobre esse ano. 

O show, como dizia Cosmo, tem de continuar. E ele também. Na serenata à chuva. 

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