Folhetim de voto: O Costa do guterrismo e o Costa do cavaquismo

14 jan 2022, 07:52

Quem ganhou o frente-a-frente? A sondagem da CNN Portugal responde que foi Rui Rio. Na coluna diária de análise e opinião da campanha, o jornalista de Política Filipe Santos Costa concorda que este foi o melhor debate de Rio e o mais fraco de Costa. Este clarificou finalmente que poderá governar como Guterres. Mas por alguns minutos só fez lembrar Cavaco

Vantagem. Pouco antes do arranque do único frente-a-frente entre António Costa e Rui Rio, ontem à noite, a RTP divulgou a sua mais recente sondagem para as legislativas. Os números sobre PS e PSD coincidem com os da sondagem lançada um dia antes pela CNN Portugal/TVI: PS com 39% e PSD com 30%, crescendo para 9 pontos percentuais a diferença entre ambos. No melhor cenário para o PS, podem faltar só 3 deputados para a maioria absoluta. E, na análise do Público, o apelo de Costa ao voto útil pode mesmo resultar, indo buscar votos ao PCP, BE e Livre.

Sim, é verdade, faltam 2 semanas para as eleições, ainda muita coisa pode acontecer. Mas também pode nada acontecer de muito relevante que mude o status quo. Como não vale a pena contar com o imprevisível, os partidos têm de trabalhar com aquilo a que os economistas chamam “cenário invariante” (ouviu-se falar disso no debate, quando Rui Rio explicou que o seu quadro macro-económico tem esse pressuposto). Nesse cenário, Rio precisa de pedalar muito se quiser aproximar-se de António Costa. Foi com essa certeza que ambos entraram para o debate no Capitólio. 

 

Missão. Rio não só tinha de fazer mais do que Costa. Tinha de fazer diferente. Manuela Ferreira Leite explicou-o bem na CNN Portugal após o debate: “Costa tinha de mostrar os resultados da governação de 6 anos, e porque é que depois desta governação espera que as pessoas lhe dêem o seu voto”; quanto a Rio, estava “na situação de propor um novo caminho”. Pela diferença de pontos de partida, e pela diferença de tarefas que cada um tinha, o debate exigia mais do líder da oposição do que do primeiro-ministro. E assim aconteceu. Rio mais assertivo e desenvolto, Costa mais à defesa.

 

Esclarecedor. Foi um debate entusiasmante? Nem de longe. Foi esclarecedor? Bastante. Focado num conjunto de temas essenciais (governabilidade, impostos, salários, serviços públicos, Saúde, justiça e TAP), ficaram bem patentes as diferenças entre dois caminhos que são distintos mas não radicalmente diferentes (são dois centristas, como escreve aqui Maria João Marques). É sobretudo uma questão de graduação e de enfoque - no fundo, o debate sobre o que separa PS e PSD nestes pontos também podia ser sobre o que os aproxima, e seria igualmente esclarecedor (hoje, em entrevista ao DN, José Miguel Júdice não duvida de que Rio vai apoiar o futuro Governo de Costa). 

“Estes dois políticos foram feitos para se entenderem”, sentencia, na mouche, António Barreto, mas “cada um sabe que só ganha se esmagar o outro”. E as campanhas são o momento de pôr a lupa sobre as diferenças - o tempo das aproximações será a partir de 31 de janeiro.

 

Absolut Costa. Vou já a seguir ao debate, tema a tema. Antes, vou ao que é mais importante: o pós-debate. Findo o frente-e-frente, António Costa resolveu dar uma conferência de imprensa de 15 minutos. Rio, mais modesto (e com menos perguntas dos jornalistas), falou só 7. Em compensação, Rio levou claque, o que deu à coisa um ar de comício (fraquinho, mas comício).

Findo o debate, Costa falou com mais clareza sobre o que realmente quer no dia 30: a maioria absoluta. Já não tem vergonha de a pedir, mas isso coloca-lhe um problema de coerência: desde o cavaquismo, nos anos 80/90, o PS demoniza as maiorias absolutas. Sócrates, entretanto, também teve uma, e esse não foi um governo de boa memória, conforme se constata cada vez mais - mas, por alguma razão, a má fama da maioria absoluta parece vir só do absolutismo cavaquista. 

Sem nunca aludir a Sócrates, Costa esforçou-se por convencer os portugueses de que nada têm a temer com uma maioria absoluta, pois não é Cavaco. Se dúvidas houvesse, Costa até jurou que lê jornais e não diz que nunca se engana e raramente tem dúvidas (para quem não se lembre, Cavaco gabava-se de não os ler e de não se enganar nem duvidar).

 

Reviver o cavaquismo no Capitólio. Foi um momento estranho, aquele no Capitólio. Sobretudo porque quanto mais Costa dizia que não era Cavaco, mais dizia coisas que o aproximavam do antigo primeiro-ministro. 

  • Na auto-suficiência, quando falou em governar na pandemia: os outros dizem o que “teriam feito, mas quem teve de fazer fomos nós”.
  • Na retórica contra “aventuras”: “Os portugueses não estão aqui para aventuras, vão-nos dar confiança para podermos ter maioria que o interesse nacional exige”.
  • Na desconsideração do processo democrático: “Não podemos é continuar a perder tempo”, declarou Costa, prometendo “arregaçar as mangas” e ficando a um passo do célebre “deixem-nos trabalhar!”. Como o PS não quer “perder mais tempo”, a maioria absoluta permite reapresentar o Orçamento chumbado em novembro, e “nem mais um dia em duodécimos”.
  • Na maioria absoluta como sinónimo de governabilidade: “maioria absoluta não é poder absoluto, é ter condições para governar”.

 

Marcelo como argumento. Há muito que sabemos que os políticos em campanha encontram “pessoas na rua” que lhes revelam verdades convenientes. Uma vez uma velhinha disse a Paulo Portas que tinha sido Nossa Senhora a livrar Portugal de uma maré negra; outra vez, outra velhinha disse a Fernando Nogueira que este ia ganhar as eleições (pelo menos a segunda enganou-se). Não sabemos se foi uma velhinha, mas Costa revelou ontem o que lhe “dizem na rua”: “Sabemos que não vai abusar da maioria, sabemos que temos um Presidente da República em quem podemos confiar e que está cá para garantir que não há abusos, sabemos que há imprensa livre que vai estar atenta e vigilante”. 

E insistiu em puxar Marcelo para a dança, usando-o como argumento eleitoral do PS: “Alguém acredita que com Marcelo Rebelo de Sousa como Presidente da República podíamos ter uma maioria absoluta que pisasse o risco? Não pisava o risco dois dias. Era o primeiro e acabava.” Por absurdo, o argumento pode resultar para quem não tenha memória das maiorias absolutas de Cavaco - mas não para quem se lembra da pressão cerrada de Mário Soares sobre Cavaco, que em nada impediu os abusos dessa maioria absoluta. 

 

Governabilidade: vantagem Costa. Voltemos ao debate. Não era possível Costa esconder mais o jogo. Pede uma maioria absoluta, já tinha dito que sai se perder as eleições, mas não o que fará se ficar entre um caso e outro; se ganhar sem a maioria absoluta. Esclareceu ontem: estará disponível para conversar com todos, como o PS fazia no tempo dos governos de António Guterres. Como enfatizou a Ângela Silva na SIC-N, essa foi a grande notícia de ontem à noite. 

Após seis anos de porta fechada ao PSD, Costa volta a predispor-se a falar com o maior partido da oposição. Já não diz que no dia em que o Orçamento for viabilizado pelo PSD o governo cai. E convém lembrar que o primeiro Governo de Guterres - quando Costa estava nos Assuntos Parlamentares, na torre de controlo das negociações “diploma a diploma” - foi um tempo por excelência dos acordos PS-PSD.

Depois deste esclarecimento, Rio insistiu que “não se entende muito bem como pode haver estabilidade com a vitória do PS”. A resposta, por ironia, foi dada logo a seguir pelo mesmo Rio, quando disse no pós-debate: “Estou disponível para negociar a governabilidade do país (...) Na perspetiva de não haver maioria absoluta, que remédio tem um democrata, que não seja negociar com os outros, procurando uma negociação equilibrada?”, questionou o líder do PSD. Costa podia ter dito o mesmo.

Há uma alternativa que Costa colocou antes da solução de pesca à linha: se o PS ficar mesmo à beira da maioria absoluta, pode conseguir fazer acordos estáveis com parceiros que não estiveram na geringonça - citou o PAN, mas também podia ter falado do Livre. Rui Tavares parece estar bem encaminhado para a eleição, e o PAN também deverá manter alguma representação parlamentar. Resta ver se basta.

 

A ameaça fantasma. Quando pressionou Costa para ser claro sobre o que fará, Rui Rio levantou o risco de um PS liderado por Pedro Nuno Santos, como quem agita com o fantasma do regresso do comunismo. Foi estranho ouvir Rio dar um argumento ao eleitorado de centro para que vote em Costa, travando, com isso, a ascensão de Pedro Nuno. Para além disso, foi um tiro na água, até porque não há uma única sondagem que aponte para a hipótese de vitória do PSD, e esse é o único cenário em que Costa admite sair de cena. 

 

Impostos: vantagem Rio. Num debate em que Costa se apresentou prometendo continuar um caminho já bem conhecido - até levou o Orçamento chumbado há dois meses como estando pronto para voltar a entregá-lo -, Rio foi hábil a apontar o lado sombrio da governação socialista. Um país em “estagnação”, com “degradação dos rácios todos”, baixos salários, emigração e “cada vez mais a caminho da cauda da Europa”. Mensagem: “Temos de fazer diferente”, “mudar o modelo”, pois a mesma receita não dará resultados melhores. 

Rio argumentou bem o contexto em que propõe, não um aumento dos rendimentos das famílias, como Costa, mas o desagravamento do IRC, para ajudar as empresas a criar riqueza - que mais tarde chegará às famílias. É a velha teoria da trickle down economy, na qual há quem acredite, mas que não cabe aqui discutir. O ponto é que o retrato de estagnação e a defesa de um “novo modelo” pode ser apelativo para algum eleitorado de centro. Mas tem um risco, óbvio, e reconhecido pelo próprio Rio: “seria mais popular” fazer ao contrário, e desagravar primeiro os impostos sobre as famílias. “Mas isso seria persistir no erro”, respondeu o social-democrata. Este reconhecimento, e a candura calculada com que Rio o faz, acaba por funcionar também a seu favor, com a imagem do homem que diz aquilo em que acredita mesmo que isso o prejudique eleitoralmente.

 

Salários: vantagem Costa. O risco que Rio admitiu correr no debate sobre impostos (optar pelo caminho mais impopular, com a promessa de amanhãs que cantam) é ainda maior na discussão sobre salário mínimo. Costa não deixou que Rio fugisse do anzol: disse mesmo que era contra o aumento do salário mínimo. Enquanto o socialista põe o aumento do salário mínimo como prioridade das políticas públicas, o líder do PSD vê-o como consequência de uma série de fatores. É todo um mundo que os separa. Rio argumentou com a insustentabilidade dos aumentos prometidos, mas Costa lembrou que no passado a direita tinha avisado para várias desgraças por causa deste aumento, e nenhuma se concretizou: nem chegou o diabo, nem o desemprego disparou, nem o investimento estrangeiro fugiu do país. 

Rio prefere falar do salário médio, e apresentou a patusca teoria de que as empresas só não aumentam os salários médios porque são obrigadas a subir os vencimentos mínimos. Costa atirou-lhe com a frase que trazia preparada:  “Quem não quer aumentar o salário mínimo muito menos aumentará o salário médio e os outros salários.”

 

Serviços públicos: vantagem Rio. “Há mais funcionários públicos do que havia, e os serviços públicos estão muito pior” - com esta frase, Rui Rio arrumou o assunto. Apesar do exagero de alguns exemplos de Rio, é uma constatação que qualquer pessoa fará se tiver de pedir um Cartão do Cidadão ou entrar com um processo de reforma. Rio nada esclareceu sobre o que fará (“otimizar os recursos” é uma frase vazia), mas o seu diagnóstico arrumou os argumentos de Costa.

 

Saúde: empate. O debate sobre saúde focou-se num caso concreto, os médicos de família, que tanto PSD como PS já prometeram dar a todos os portugueses, mas nenhum cumpriu. A resposta de Costa é “continuar”, e debitou muitos números provando a melhoria das respostas de saúde. Rio apresentou-se como uma resposta pragmática, a garantia de um “médico assistente” do serviço privado enquanto não há médico de família no SNS para todos. Sem “preconceitos ideológicos”. Foi a deixa para Costa acusar Rio de querer acabar com o SNS como o conhecemos, não só desviando recursos para o setor privado, mas sobretudo ao inscrever na sua proposta de Revisão Constitucional um artigo que na prática significa o fim do SNS “tendencialmente gratuito”. “Essa bravata ideológica, por preconceito ideológico, tem consequências: as pessoas da classe média vão passar a ser tratadas de forma diferente pelo SNS. (…) O que vai acabar por acontecer é termos serviços mínimos para os remediados e o serviço bom para quem tem posses”, disparou Costa. Rio respondeu que não, mas não se conseguiu livrar da suspeita.

 

Justiça: vantagem Costa. É um dos temas favoritos de Rui Rio, que ontem voltou a fazer um retrato negro do setor, mas foi Costa quem capitalizou politicamente. A velha proposta de Rio para que o Conselho Superior do Ministério Público tenha uma maioria de membros indicados pelo poder político justificou a acusação de que Rio quer politizar a investigação, o Ministério Público e a Polícia Judiciária. O social-democrata negou, como tem feito há anos, mas esta é uma acusação que lhe tem sido dirigida até por gente do seu partido, como a ex-ministra da Justiça Paula Teixeira da Cruz. O português médio terá percebido o que estava em causa nesta discussão? Não.

 

TAP: vantagem Rio. O líder do PSD tem tido um discurso ambíguo sobre a TAP, que ontem resolveu com uma ideia e um escândalo. A ideia foi a de que se trata de um buraco sem fundo, onde se perdem milhões para salvar uma empresa que presta mau serviço. O escândalo foi a rota Madrid-Lisboa-São Francisco: os bilhetes a partir de Madrid não chegam aos 200€; a partir de Lisboa passam dos 600€. Foi um momento de empolgamento com o “escândalo” e a “vergonha”. Passado esse momento, Rio concordou com Costa: a empresa é para privatizar “o mais depressa possível”, sendo que o primeiro-ministro até revelou que já há interessados. Mas o que ficou para memória futura foi o preço do bilhete para São Francisco, e Costa não teve como lhe responder. 

 

Vitória. A pergunta que sempre é feita aos comentadores após os debates foi respondida, desta vez, numa sondagem divulgada pela CNN Portugal. Antes do debate, a maioria esperava que fosse Costa a sair por cima, depois do frente-a-frente, a maioria respondeu que foi Rio a sair-se melhor. Do que vi e li, a avaliação dos 300 entrevistados pela Pitagórica coincide com a análise da maioria dos comentadores nas televisões e jornais. 

 

Empate. Concordo que este foi o melhor debate de Rui Rio. E concordo que esta foi a prestação mais fraca de António Costa. Para esta avaliação, a expectativa é essencial. Tal como os inquiridos na sondagem esperavam que Costa vencesse, também eu constato que o líder socialista tem feito bons debates, ao contrário do presidente do PSD - as prestações anteriores de Rio foram, em geral, tão fracas, que um mau desempenho na noite passada podia ser a morte do artista. Rio saiu melhor que a encomenda, e Costa ficou aquém da expectativa. Quem tem memória lembra-se que já tinha sido assim em 2019 (desta vez não há segunda oportunidade para o primeiro-ministro). 

Mas foi um debate tão equilibrado que me parece fútil declarar vencedores, a não ser que se queira instituir um sistema de VAR no comentariado politico. O melhor argumento em defesa da vitória de Rui Rio, ouvi-o da Maria João Avillez, no especial de ontem à noite da CNN Portugal. “É muito interessante que [Costa] tenha necessitado de perder tanto tempo no fim [na conferência de imprensa após o frente-e-frente]. Porque perdeu o debate.” 

 

Cabrita. Continua a pesar, mesmo depois de ter saído do Governo. O ex-ministro Eduardo Cabrita e o seu chefe de segurança vão ser investigados pelo Ministério Público por suspeita de homicídio negligente no caso do atropelamento mortal de um trabalhador da Brisa na A6. A notícia está no Público.

 

Últimas. Segundo a edição impressa do Expresso de hoje, Rui Rio prepara a eventualidade de vir a apoiar um Governo de Costa: quer avançar com a sua reforma da Justiça em troca da viabilização dos Orçamentos. Entretanto, se formar Governo com o PSD, Francisco Rodrigues dos Santos quer ser ministro da Defesa.

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