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Colunista e comentador

Os "Boaventuras" e o "Reino dos Parasitas"

29 mar 2023, 19:56
César Boaventura: "O Cássio nunca disse que eu lhe ofereci dinheiro"

Rui Santos escreve sobre a acusação do Ministério Público ao empresário César Boaventura de crimes de corrupção activa e diz que há uma ‘saga parasitária’ no futebol em Portugal que é preciso desmantelar

O Ministério Público acusou o empresário César Boaventura de três crimes de corrupção activa e um crime de corrupção activa  na forma tentada, uma vez que no âmbito da “operação malapata” e da referida acusação terá aliciado, em 2015-16 - em Abril e Maio de 2016, mais concretamente - três jogadores do Rio Ave (Marcelo, Cássio e Lionn) e ainda Salin, que na altura era guarda-redes do Marítimo, com o propósito de beneficiarem o Benfica, em cuja temporada conseguiria conquistar o tricampeonato.

Nesse momento, o Benfica liderava a tabela classificativa com 2 pontos de avanço sobre o Sporting.

O respectivo despacho do Ministério Público refere que “foram recolhidos indícios” destes aliciamentos mas diz também que não se indicia que o arguido (César Boaventura) “tenha sido incumbido de qualquer tarefa” por parte de alguém na esfera da liderança do Benfica.

César Boaventura vai responder por outros 10 crimes: 5 de burla qualificada; 3 de falsificação de documentos; 1 de fraude fiscal qualificada e 1 de branqueamento de capitais.

O despacho faz alusão “à relação de confiança e proximidade que mantinha com Luís Filipe Vieira e, por seu intermédio, com a Benfica SAD” e refere mesmo que, no âmbito da sua actividade profissional, Boaventura mantinha uma relação pessoal com o ex-presidente dos ‘encarnados’, “falando de outros assuntos relacionados com o meio do futebol”.

Diz o Ministério Público, através do despacho assinado por duas magistradas, que os factos “foram cometidos” pelo arguido César Boaventura e, apesar de ser a Benfica SAD a possuir um interesse específico, essa pessoa colectiva só poderia ser responsabilizada se o crime fosse cometido por indivíduos que nela ocupassem uma posição de liderança.

César Boaventura (CB) não se achava vinculado à Benfica SAD de forma alguma nem tinha poderes para a representar e o despacho é muito claro na conclusão de que “não se indicia suficientemente que o arguido (CB) tenha sido incumbido de qualquer tarefa, seja por quem for e, desde logo, por alguém com uma posição de liderança na estrutura da Benfica SAD”.

Foi por este motivo que a Benfica SAD ficou de fora de qualquer acusação e, no que diz respeito a ele, foi decidido o arquivamento dos autos.

Esta é a parte factual.

Vamos agora às leituras e… ao estado do nosso futebol.

Há as questões legais e, paralelamente, ou a montante, as questões éticas que são quase sempre atiradas para o lixo.

O facto de não haver um vínculo formal de ligação à Benfica SAD, é público e notória, como aliás o despacho reconhece, a existência de uma relação de extrema proximidade de César Boaventura com Luís Filipe Vieira.

Dir-se-á que a condição de “empresário” pode desencadear esse tipo de relações.

Contudo, e como também é público e notório, César Boaventura não se coibia de se expressar publicamente, e de forma bem expressiva, em contendas que nem sequer deveriam ter lugar em ambiente televisivo, sempre com o intuito de se posicionar e ficar bem na fotografia do “Benfica de Vieira”.

Caberá ao tribunal condenar, ou não, César Boaventura pelos crimes de que é acusado pelo Ministério Público.

À justiça ao que é da justiça, a partir do princípio de que não foi possível provar, até á data, que o comportamento e as acções de César Boaventura tenham sido patrocinados por pessoas com posições de liderança no Benfica.

Sabemos, no entanto, e não apenas neste caso do Benfica presidido por Luís Filipe Vieira, que há uma espécie de consentimento de quem deveria ter uma posição absolutamente inegociável nestes domínios sobre as acções de muitas figuras que não estão formalmente ligadas às pessoas colectivas que são as sociedades anónimas desportivas, mas que têm sobre elas não apenas relação mas também influência e capacidade para… ajudar a decidir.

As pessoas insinuam-se quando querem. E só se insinuam se sentirem que se podem insinuar, porque daí não resulta mal algum.

Não basta ter preocupação para não comprometer formal e legalmente quem possa ter maior ou menor influência sobre o dia-a-dia dos clubes de futebol. É preciso mais. É preciso não condescender e muito menos patrocinar.

Toda a gente do mundo do futebol sabia da influência de Paulo Gonçalves no funcionamento da ‘máquina’ dos “encarnados”, no tempo de Vieira, mas dava jeito (formal/legal) não reconhecer.

Paulo Gonçalves também foi protegido até onde foi possível proteger. Acabou por ser condenado a dois anos e seis meses de prisão, com pena suspensa, no âmbito do processo “e-toupeira”, devido a um crime de corrupção activa, uma vez que o tribunal deu como provado o suborno a um funcionário judicial, com o intuito de obter informações que fossem úteis ao clube da Luz a troco de camisolas assinadas, equipamentos e bilhetes para jogos. Paulo Gonçalves defendeu-se sempre dizendo que “simpatia e cortesia” não são corrupção.

Nunca a César Boaventura foi pedido para que não envolvesse de forma alguma o nome do Benfica em questões relacionadas com intermediações ou lógicas enquadradas no binómio amigo/inimigo que tem marcado, lamentavelmente, as últimas décadas do futebol português.

A questão de fundo é que o dirigismo desportivo tem de se livrar definitivamente todos aqueles que se alimentam do sistema, o sistema que é patrocinado pelas figuras de proa da bola indígena que também mostram algum interesse na sua manutenção.

Os clubes de futebol e os Estados continuam sem reação aos dinheiros   que se movimentam designadamente em termos de intermediações, nalguns casos sem lógica desportiva associada, mesmo que isso possa lesar o erário público…

…E o mais grave de tudo é que consentem a instalação de uma frente parasitária que a todos contamina.

A norte ou a sul, a oriente ou a ocidente, são necessário líderes que não alimentem estes parasitas, alimentando-se deles.

E esse é o desafio para o futuro. Um desafio que tem longos anos de atraso.

Não é uma questão clubística. É uma questão de decência. E pode ser, igualmente, uma questão de enquadramento legal.

A verdade desportiva, no futebol e no desporto em geral, precisa de ser defendida por quem esteja em condições de a defender. Mas, para isso, é preciso que gente com responsabilidades (independentemente das questões jurídicas) pare de fazer de conta que não tem nada a ver com nada nem com ninguém, mesmo que se lhes atravessem debaixo do nariz, com graves custos reputacionais.

Além disso, há questões associadas à actividade de representação, intermediação ou assistência na negociação ou celebração de contratos desportivos que não podem continuar a ser ignoradas olimpicamente, por falta de regulação, não obstante a tentativa recente de a FIFA querer colocar algum decoro no sector.

A saga parasitária, em Portugal, é enorme, envolveu os clubes de uma forma dramática (contas no vermelho) e também está incrustada na área da comunicação.

Cabe ao tribunal condenar, ou não, César Boaventura em julgamento, repito, mas cabe-nos a todos nós e aos clubes desportivos perceber que estas figuras só existem porque lhes dão palco e serviços.

As mordomias e os milhões não caem do céu. Que se faça justiça plena, neste caso e em todos aqueles que mancham a reputação dos clubes e a do futebol português.

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