Não há na Terra lugar mais frio do que a Antártida Oriental. Devido à sua elevada altitude, nem mesmo a Antártida Ocidental chega às suas temperaturas hostis.
A Princess Elisabeth, uma estação de investigação polar na região de Dronning Maud Land [Terra da Rainha Maud, na tradução, reclamada pela Noruega], enfrenta ventos que podem chegar aos 249 km/h e temperaturas que chegam aos -50°C. O talento para comida caseira é, compreensivelmente, uma habilidade necessária para qualquer chef de cozinha que trabalhe neste ambiente.
"Como as pessoas estão no exterior com temperaturas extremamente baixas e em condições severas, gosto de fazer algo agradável e consistente, como fondue e raclette. Muito mesmo", diz o chef Thomas Duconseille, que trabalha neste remoto posto antártico vários meses por ano.
Quando tens um grupo de cientistas gelados a cerca de 5.000 kms da cidade mais próxima e a pelo menos 16.000 kms de casa, faz sentido que o queijo quente percorra um longo caminho. Se ao menos o resto dos deveres culinários de Duconseille fossem tão simples - cozinhar nestas condições traz desafios únicos.
Sete estações na Antártida
A Princess Elisabeth encontra-se no cume ao lado da Utsteinen Nunatak, uma montanha conhecida como "a pedra exterior", na cordilheira de Sør Rondane. Do lado de fora da janela do escritório de Duconseille veem-se montanhas de granito gelado e planícies brancas brilhantes pontilhadas por unidades de alojamento, contentores de laboratório e turbinas eólicas que germinam da neve.
Nos meses de verão, de novembro a fevereiro, a paisagem glaciar e montanhosa é banhada por uma luz constante - o sol esconde-se atrás do cume durante apenas três horas por dia. Neste período, investigadores da Bélgica, França, Alemanha, Turquia, Índia e dos Estados Unidos aproveitam os 200 kms de montanhas, litoral, glaciares e o Planalto Antártico para desenvolver pesquisas científicas e estratégias para enfrentar as alterações climáticas. Alguns permanecem apenas durante algumas semanas e outros durante toda a estação. Duconseille, o chef residente da Princess Elisabeth, fica durante quatro meses. Este ano é a sua sétima temporada na Antártida.
A Princess Elisabeth, operada pela Internacional Polar Foundation, com sede em Bruxelas, está em funcionamento desde o início de 2009, o que a torna numa das mais recentes estações de investigação polar. Embora possa parecer jovem, é a primeira estação de investigação polar do mundo com emissões zero, contando exclusivamente com energias renováveis num dos ambientes mais hostis do mundo. É também uma visão a contemplar. Localizada no topo do cume, a Princess Elisabeth assemelha-se a uma nave espacial hexagonal recém aterrada, com os seus elegantes painéis prateados a refletirem o branco brilhante da paisagem polar.
É difícil acreditar que no interior há brioche a ser feito.
"Preparamos o nosso próprio pão e cozemo-lo aqui." Ter pão fresco é importante. Gosto de fazer brioche para o pequeno-almoço com chocolate no interior", diz Duconseille. Como francês, um bom pão é tanto um modo de vida no seu posto na Antártida como na Normandia, ou nos Alpes, onde passa a maior parte do ano a alimentar outros exploradores no Monte Branco [Mont Blanc].
Como a Princess Elisabeth fica a seis horas de avião da cidade mais próxima - a Cidade do Cabo, na África do Sul - Duconseille assegura-se que a carne, o peixe e os vegetais são congelados para durar toda a temporada e que os ovos são armazenados em caixas de cinco litros com as claras e as gemas separadas. Quanto aos ingredientes frescos, um pacote desses preciosos bens é enviado todos os meses da Cidade do Cabo - desde que o tempo não esteja demasiado agreste.
Os desafios dos alimentos frescos
Apesar da sua altitude - 1,363 metros acima do nível do mar - a Princess Elisabeth permanece confortavelmente quente e protegida das intempéries graças a uma combinação robusta de feltro de lã, papel Kraft resistente, alumínio, painéis de madeira, poliestireno, membrana impermeabilizante, espuma de polietileno e aço inoxidável.
"Nos meses de verão, não precisamos de aquecimento dentro da estação, porque toda a radiação solar, e a nossa própria presença cá dentro, é suficiente para manter uma temperatura interior de 20-21°C", diz Henri Robert, um oficial de ligação científica da Princess Elisabeth.
Através de um sistema híbrido de nove turbinas eólicas e 408 painéis solares fotovoltaicos, a energia de 100 dias de sol durante 24 horas e fortes rajadas vento é aproveitada para alimentar a estação.
"Atualmente, temos sol durante todo o dia, porque estamos abaixo do Círculo Polar Ártico. Felizmente, há esta montanha a sul e o sol põe-se atrás dela, o que faz com que tenhamos um pouco de sombra durante algumas horas, e depois o sol volta a nascer. Mas nunca desce abaixo do horizonte", acrescenta Robert, um nativo belga.
Para chegar à Princess Elisabeth, a tripulação viaja da Cidade do Cabo num DC-3, um avião adaptado ao transporte de carga e manobras em pistas geladas. O voo demora pouco mais de seis horas, à qual se segue uma viagem de 90 minutos até à estação. Os alimentos frescos, incluindo vegetais e leite, são também transportados no DC-3, e esta operação é repetida todos os meses (se o tempo permitir).
É um cenário que pode causar algum receio aos que que confiam regularmente naquela corrida de última hora até à mercearia para ir buscar as ervas frescas que se esqueceram ou o café expresso, mas Duconseille adaptou-se aos rigores do trabalho.
"Cada vez mais, tenho-me habituado a esperar um mês pela entrega dos alimentos frescos. Há alguns anos, quando comecei este trabalho, era difícil porque os alimentos frescos degradam-se depressa. Com a experiência, aprendi a perceber o que vai estragar-se primeiro, por isso, durante a primeira semana temos muitas saladas frescas. Tento fazer com que estes ingredientes durem o máximo de tempo possível. Durante quatro semanas, sou capaz de fazer essa gestão, e ainda consigo oferecer algo apetitoso para comer até à quarta semana", garante Duconseille.
Conservação e armazenamento dos alimentos
As refeições que Duconseille prepara na Princess Elisabeth são variadas e incluem sopas, carnes, pizzas, saladas, quiches e sobremesas. "Há sempre uma opção vegetariana ou vegana, por isso todos têm uma variedade à escolha", sublinha Duconseille. Para ocasiões especiais, como no Natal ou Ano Novo, o chef prepara pratos como foie gras, peru recheado e gelado de nougat.
"Como consumidor, posso dizer que é como estar num restaurante. É maravilhoso, é um jantar completo", descreve Robert.
A estação recebe normalmente entre 20 a 30 membros da tripulação de uma só vez, mas ao longo dos anos as instalações têm sido ampliadas para suportar 45 a 50 pessoas. Os membros da tripulação alternam na ajuda a Duconseille na cozinha, pondo a mesa, limpando e guardando os pratos, ou descascando grandes quantidades de batatas. A alimentação é um esforço de grupo.
Dado o isolamento da estação e a variação do número de tripulantes, é importante que seja mantida uma reserva de alimentos básicos de estação para estação. Transportar artigos que durem mais tempo e não perecíveis como grãos, feijões e conservas de tomate para a estação é uma situação diferente da de levar alimentos frescos mensalmente a conta-gotas.
"Na Bélgica, enchemos os contentores marítimos com uma grande quantidade de alimentos secos e congelados e a cada dois anos chega um navio que nos abastece desses ingredientes", explica Duconseille.
Os alimentos são armazenados no andar de baixo da estação, onde existe uma grande sala com prateleiras para os alimentos secos, um congelador do tamanho de um contentor de carga (-25ºC) e um frigorífico mais pequeno (5-7ºC). "Na verdade, temos de aquecer alguns frigoríficos porque muitos alimentos, como algumas frutas, não podem ser congeladas", observa Duconseille.
Duconseille não planeia as refeições com antecedência, mas mantém um amplo inventário alimentar, e por isso sabe exatamente o que tem. A preciosa natureza dos ingredientes frescos requer adaptabilidade e criatividade.
"Cozinho por sensações - dependendo do número de pessoas que lá temos, ou a comida que se vai estragar em breve. Tudo depende do que temos", diz Duconseille.
Como existem várias paisagens polares a serem estudadas na Antártida Oriental, os cientistas da Princess Elisabeth partem regularmente em viagens de campo. O chef de cozinha desempenha um papel fundamental no sucesso destas expedições.
"Estas excursões podem durar duas a três semanas e envolver quatro a seis pessoas. Para isso, preciso calcular as refeições necessárias. Sempre que preparo uma grande refeição, congelo as porções que os investigadores irão levar, descongelar e desfrutar, sem que tenham de perder tempo valioso no terreno", indica Duconseille.
"Sempre me senti atraído por paisagens atípicas”
Na última década, Duconseille tem gerido várias cabanas de montanha nos Alpes franceses, incluindo a Goûter Hut no Mont Blanc, a montanha mais alta de França.
"Fui sempre atraído por paisagens atípicas, zonas bonitas, locais em altitude. É um mundo pequeno - o mundo das pessoas que realizam este tipo de trabalho nestas regiões - por esta razão, outro cozinheiro falou de mim ao diretor da estação. Trabalhar num lugar pode abrir novas portas e foi assim que vim dos Alpes para a Antártida", conta Duconseille.
Fora do verão antártico, continua o seu trabalho nos Alpes franceses, fornecendo alimentação, alojamento e assistência às pessoas que fazem escalada numa das cinco rotas até ao Mont Blanc, que se eleva a 4.807 metros.
O pessoal da Princess Elisabeth trabalha seis dias por semana. Dependendo das condições, o domingo é, por norma, um dia divertido. A equipa fica livre para acompanhar os guias em trabalho de campo e visitar os nunataks vizinhos, os cumes da montanha que emergem do gelo como placas ósseas nas costas de um estegossauro.
"Gosto de caminhar nas montanhas com o resto do grupo e, como também sou corredor, gosto de correr na pista de 2 kms de comprimento. Mas, normalmente, ao domingo leio, durmo uma sesta e preparo-me para a semana seguinte", diz Duconseille.
Alguns membros da equipa gostam de fazer esqui de fundo. Alguns sobem um pouco e vão para a grande encosta, para o esqui alpino. Claro que não há teleféricos, pelo que aquilo que descem têm de subir - isto se quiserem fazer uma segunda volta. Robert, um biólogo e observador de aves, aproveita a oportunidade de ter um acesso tão raro ao Continente Branco.
"Temos 200 kms de gelo antes de chegarmos à costa. Ao longo desta área, encontramos belas espécies da vida selvagem e colónias de aves que se reproduzem - por isso não estamos totalmente sós. É sempre impressionante vir aqui porque sou apaixonado por aves. Ao domingo, quando tenho oportunidade, vou ao Nunatak e observo as aves que ali se reproduzem ou então aproveito para descansar. Tudo depende do tempo", conta Robert.
Comida e ânimo interligados
A experiência de Duconseille na gestão de refúgios de montanha isolados preparou-o para a parte do trabalho que vai além de fornecer sustento: criar uma casa longe de casa.
Com lagos subglaciais, ventos catabáticos e uma cratera de 483 kms de largura que se diz estar escondida sob o manto de gelo oriental, a Antártida é mais do que apenas o continente mais isolado do mundo: pode parecer outro planeta. Embora a estação seja confortável e esteja bem equipada (Robert descreveu-a como sendo "muito agradável, como um chalé na Suíça"), o isolamento extremo, o clima polar imprevisível e os meses longe de casa e da família podem desgastar mesmo os mais destemidos.
"Na Antártida, a comida é fundamental para o moral da equipa - é importante garantir que as pessoas estão felizes à volta da mesa e se reúnem depois de um longo dia. Gosto de cozinhar sobremesas e bolos para que as pessoas se sintam felizes no final do dia", sublinha Duconseille.
Se o chef passa o tempo a trazer alegria para a equipa na forma de brioche dourado e queijo derretido, o que o alegra a ele?
"É difícil nos primeiros dias, quando deixo a minha família. Mas quando cá chegas, estás focado no trabalho e fascinado pelo bom ambiente que te rodeia. É impressionante, há sempre algo a acontecer. Cuidamos de muitas pessoas e realizamos atividades científicas."
Deixar a Antártida é agridoce.
"No final do verão, ficamos felizes por regressar a casa, mas é um sentimento misto: ficamos tristes por deixar a Antártida", assume Duconseille. "É um ambiente incrível e uma experiência única que temos aqui."