Ter pouco dinheiro também faz mal à saúde. 2023 promete trazer mais ansiedade financeira. Saiba como se proteger

3 jan 2023, 18:00
Ansiedade financeira (Pexels)

Não escolhe idades nem géneros e vive a reboque de salários baixos, inflação e um custo de vida cada vez mais difícil de comportar. 2023 vai ser financeiramente desafiante, mas é possível proteger-se e três psicólogos dizem como

Bens alimentares, gás e eletricidade que ficarão mais caros, taxas de juro prontas a continuar a escalada de subida, rendas cada vez mais acima do rendimento mensal e salários que vão continuar a mirrar à boleia da inflação. O ano de 2023 será financeiramente desafiante para uma grande parte das famílias portuguesas, mas também para aqueles que estão sozinhos, começam a vida adulta e procuram a sua independência e emancipação.

“Esta é uma fase bastante crítica. Há certezas e dados concretos de uma crise financeira, mas também a incerteza de que não sabemos quando a crise vai chegar nem quando se prevê uma resolução. Não se sabe o tempo de esforço das famílias portuguesas”. Sofia Ramalho, vice-presidente da Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP), olha com preocupação para o que aí vem e não hesita em dizer que 2023 será um ano de maior ansiedade financeira, “um sentimento de preocupação, medo ou desconforto com as finanças pessoais”, como descreve o organismo, que surge pelo facto de as pessoas perderem “a capacidade de interna para responder à subida dos preços”, diz a especialista.

A saúde financeira pode mexer connosco a todos os níveis, a partir do momento em que não estamos bem financeiramente, mentalmente também podemos não estar”, diz-nos Marta Martins Leite, psicóloga na Clínica da Mente.

Para Sofia Ramalho, há “uma relação muito significativa entre o aumento das carências socioeconómica das famílias e as consequências na saúde mental”, mas estas situações de “ansiedade face aos factos reais e ao que é imprevisível” a nível financeiro não são uma novidade, embora agora assumam outro peso, não estivéssemos ainda em rescaldo da pandemia e com uma guerra a acontecer em território europeu e com consequências diretas no bolso de cada um. “Depois de uma crise pandémica, em que a saúde mental dos portugueses está por si só afetada e o sofrimento psicológico é superior, vamos aumentar os fatores de stress e os problemas de saúde mental”, lamenta.

A linha que separa a saúde financeira da saúde mental é tão ténue que muitas vezes os sinais passam despercebidos. “Não creio que haja uma consciência muito objetiva que este problema de saúde mental muitas vezes é gerado pelo facto de as famílias se concentrarem nas suas necessidades básicas, na alimentação, na habitação, na deslocação, na educação e na saúde”, reconhece Sofia Ramalho.

Apesar de “vários estudos recentes realizados na população americana” demonstrarem que a ansiedade financeira “é significativamente mais comum em mulheres do que nos homens”, o psicólogo Pedro Coutinho, que se dedica à ansiedade e à depressão, que faz uso do Instagram para falar de ansiedade e depressão, salvaguarda que há sempre “múltiplos fatores” em jogo e que, por isso, “devemos ter sempre em consideração que a ansiedade financeira pode surgir independentemente do género, rendimentos, profissão ou estatuto social”. Mas o certo é que “pessoas com rendimentos mais baixos, dívidas, empréstimos, contratos de trabalho precários, em situação de desemprego ou com despesas mensais avultadas têm maior risco de vir a sofrer de ansiedade financeira”, afirma. 

Perante a ansiedade financeira, sobretudo quando os recursos económicos são escassos ou ficam severamente penalizados com a subida do custo de vida, “as pessoas ficam mais limitadas na sua visão, nas alternativas e formas de resolução das suas situações particulares”, explica Sofia Ramalho. E como consequência, as pessoas “muitas vezes isolam-se, têm receio de recorrer à ajuda”.

Há muitas famílias que mudando o estatuto socioeconómico ficam com preconceito de pedir ajuda, inibem-se de o fazer. Há muito estigma associado. E isto também aumenta os fatores de stress e a probabilidade de vir a ter uma doença mental e de se instalarem problemas de sofrimento e saúde psicológica”, adianta.

Fazer contas, planear, definir metas e ser rigoroso são formas de evitar surpresas financeiras numa altura de crise. (Pexels)

Como proteger-se da ansiedade financeira

1 - Estar atento aos sinais 

“É natural sentirmo-nos mais preocupados sobre como é que vamos pagar as contas ou as obrigações ao banco, termos receio de perder alguns rendimentos, dificuldades em gerir o dinheiro até ao final do mês ou até de contrair alguma dívida. Até nos podemos sentir mais desanimados em relação ao futuro e sobrecarregados, ao vermos que é cada vez mais difícil comprar uma casa, poupar, ter acesso a pequenos luxos ou ter dinheiro para a reforma”, diz o psicólogo Pedro Coutinho. Mas o cenário muda de figura e “deve deixar-nos alerta e motivar a procura de ajuda” quando, diz, “estas preocupações não desaparecem, nos impedem de dormir e descansar, consomem grande parte do nosso dia, geram ataques de pânico, crises de ansiedade, sofrimento e têm um impacto cada vez maior no nosso dia-a-dia”.

Sofia Ramalho acrescenta que “quando se está perante situações de stress e de stress prolongado no tempo, as pessoas ficam mais irritadas, podem ter mais conflitos do ponto de vista familiar e pode acontecer um maior isolamento”. Além disso, continua, o “aumento da angústia” que a falta de dinheiro gera faz “as pessoas ficarem menos capazes de procurar o apoio social necessário e este isolamento gera menos soluções e menos alternativas”, aumentando, por consequência, a própria ansiedade financeira, qual bola de neve gelada que não para de crescer.

2 - Não ter vergonha e partilhar as preocupações 

Esta é uma das sugestões de Pedro Coutinho. O especialista aconselha as pessoas a falarem “com alguém próximo” sobre o que se está a sentir, o que preocupa e as dificuldades que se está a enfrentar no momento. Uma simples conversa, afirma, “pode ajudar a diminuir o stress e a ansiedade”. 

“Muitas vezes, as pessoas sentem vergonha ou consideram que as finanças são um tema demasiado privado para partilhar com amigos ou familiares, mas a verdade é que o outro pode ajudar-nos a solucionar o problema e ser um apoio importante nesta fase mais desafiante”, adianta o psicólogo.

Mas além da conversa com outros, Pedro Coutinho sugere também uma conversa interna, uma ‘auto chamada’ de atenção para algo que, em situações de crise ou dificuldade, as pessoas tendem a esquecer: “há acontecimentos que estarão fora do nosso controlo”. 

Nessas alturas é importante pensar que fizemos o que estava ao nosso alcance, procurar possíveis soluções ao invés de nos culpabilizarmos ou pensarmos que podíamos ter agido de outra forma”, afirma o especialista.

3 - Estudar bem as finanças pessoais e/ou familiares

Sobre este ponto, Sofia Marinho aconselha cada pessoa ou família “a olhar para a situação socioeconómica e procurar estratégias para melhorar a poupança”, apesar de reconhecer que este “é um exercício que implica perdas para a família, perdas de bem-estar e qualidade de vida”, mas que é fundamental e que as pessoas devem estar conscientes disso. “É um exercício que deve ser feito de maneira a não pôr em causa o bem-estar mínimo e a segurança mínima das famílias”, adverte.

“É muito importante que as famílias comecem a criar tabelas e cadernos onde anotam as despesas. Assim conseguem perceber se dá para fazer uma almofada financeira para gastos extra. Devem fazer um planeamento financeiro do seu agregado familiar, isso ajuda a não criar picos de stress nesta altura”, sugere Marta Martins Leite.

Fazer uma folha de cálculo onde se escreve as despesas imprescindíveis (como água, luz, gás e alimentação), as despesas que podem ser alteradas (como combustíveis e transportes, por exemplo) e as despesas que podem ficar em stand-by por uns tempos (idas a restaurantes, gastos com roupa, entre outros) ajuda a que a pessoa consiga calcular aquilo que tem mesmo de gastar e qual o valor que poderá conseguir poupar, sugerem os especialistas.

4 - Aumentar a literacia financeira

Pedro Coutinho considera que “é útil termos conhecimento de informação sobre finanças, pois desta forma poderemos poupar mais, escolher opções mais ajustadas à nossa realidade, evitar dívidas e investir mais eficazmente as nossas economias”. 

Para isso, o especialista recomenda que se faça uso de “recursos disponíveis em locais fidedignos ou recorrer a um especialista na área”, sendo as redes sociais uma boa aposta, pois há cada vez mais profissionais e entidades, como o Doutor Finanças e o Contas Em Dia, a apostar na literacia financeira através deste tipo de plataformas e sem que tal seja um encargo para quem procura mais informação.

5 - Traçar objetivos realistas

Depois de se passar a pente fino o orçamento familiar e as despesas que devem ser mantidas, há que traçar objetivos realistas, seja de gastos ou de poupanças. E sobre isto, Pedro Coutinho aconselha as pessoas a “refletir ainda mais antes de fazer grandes investimentos”. “É fundamental”, garante.

Uma das principais consequências de não se traçar objetivos realistas - e que, por seu turno, contribui ainda mais para as dificuldades financeiras - é o recurso a créditos, situação que tende a ser recorrente em tempos de crise. “As pessoas tomam más decisões porque estão em sofrimento psicológico, envolvem-se em empréstimos bancários”, adianta Sofia Ramalho.

6 - Moderar o consumo de informação 

“O consumo moderado de notícias é fundamental”, aconselha Sofia Ramalho. “Como são todas apresentadas de forma negativa, isso gera desânimo e faz com que as pessoas não se mobilizem para procurar respostas mais eficazes para a sua situação em particular”, continua.

Sobre este ponto, Marta Martins Leite dá uma dica: ver, ler ou ouvir apenas notícias da parte da manhã. “O consumo de informação deve ser doseado, sempre que possível até à hora de almoço”. 

“Ver notícias que causam níveis de ansiedade e stress à noite já vai fazer com que a pessoa não tenha uma boa noite de sono e isso vai influenciar o dia seguinte. À noite deve-se fazer coisas que nos façam distrair e que trazem leveza à casa, que é o que todas precisam”, diz.

7- Não sofrer por antecipação e não olhar apenas para o lado negro da questão

À CNN Portugal, a psicóloga e professora do ISLA de Santarém Filipa Martinho aconselha as pessoas a não sofrerem por antecipação, devendo, para isso, estudar as suas finanças, os custos mensais e fazer as contas para saber onde cortar.

Pedro Coutinho sugere ainda que as pessoas não se foquem apenas “no pior cenário”, que é aquele que é, muitas vezes, noticiado. “Numa situação de crise ou de incerteza, a nossa mente pode focar-se exclusivamente no pior cenário possível. Nessas alturas é importante refletir: ‘Estamos perante um cenário de crise hipotético, poderá não acontecer’, ‘Já vivemos outras crises no passado, apesar de todas as dificuldades, a maioria das famílias conseguiu melhorar a sua situação financeira’, ‘há muitos casos de sucesso e prosperidade que surgiram em alturas de crise’”, sugere. 

8 - Evitar ter determinadas conversas sobre finanças junto de crianças (mas não as deixe viver na ignorância)

Marta Martins Leite considera que “as crianças podem também ser arrastadas” para um cenário de ansiedade financeira. “As crianças apercebem-se de tudo o que as rodeiam e as notícias são excelentes para empolgar aquelas cabecitas que não conseguem ainda decifrar”, mas que ficam a matutar no tema porque ouviram os pais falar, notam uma maior preocupação, ouviram um “não temos dinheiro”. E qual a consequência disso? “Não dormem, têm pesadelos, ficam a pensar”, diz a especialista, salvaguardando que isto não acontece “só com temas de finanças”, dando também o exemplo da guerra. 

“As crianças claramente sofrem com estas preocupações que não deveriam chegar a elas, mas que infelizmente chegam. Não conseguimos sempre proteger, mas deveríamos, sim, explicar e tranquilizar que não são coisas para eles se preocuparem”, sugere a psicóloga da Clínica da Mente.

No caso de crianças e jovens, continua Sofia Ramalho, esta ansiedade financeira pode ainda ter “interferência na aprendizagem e no desenvolvimento, pois ficam preocupadas com o que se está passar”. Em situações mais graves, isso “pode levar a mais abandono escolar porque os jovens tendem a querer apoiar as famílias”.

9 - Procurar ajuda

Este não tem necessariamente de ser o último passo, pode até ser o primeiro e numa ótica preventiva. Apesar de o acesso a psicólogos não ser fácil no setor público e de implicar mais um encargo numa altura em que cada cêntimo conta, os especialistas entrevistados pela CNN Portugal defendem que a ajuda especializada é a única forma de evitar uma escalada de sintomas e consequências. 

Marta Martins Leite adverte para o facto de que “ter fracos recursos financeiros para fazer face às despesas pode ser um enorme motivo de preocupação” e, por consequência, “se a pessoa não estiver bem da saúde mental pode fazer uma gestão financeira menos boa”, entrando num “círculo vicioso” que pode ser muito difícil de largar.

Tal como acontece com a informação sobre economia e finanças, também no aumento de conhecimento sobre saúde mental as redes sociais podem ser uma mais-valia, uma vez que se multiplicam os profissionais acreditados que fazem uso destas ferramentas digitais para aumentar a literacia sobre bem-estar psicológico e emocional, aumentando o conhecimento sobre fatores de risco para o sofrimento, sinais físicos e mentais e ferramentas que podem ser úteis para controlar os efeitos colaterais da falta de dinheiro. No entanto, a procura de um profissional nunca deve ser descartada, sobretudo quando os sinais e consequências se intensificam e têm um impacto cada vez maior na qualidade de vida e bem-estar.

Se possível, é sempre bom termos algum acompanhamento psicológico. Não é necessário ser semanal, pode ser de 15 em 15 dias, uma vez por mês, mas importa trabalhar a resiliência. Estamos muito mais bem preparados para tudo se tivermos uma boa saúde mental”, garante Marta Martins Leite.

E Sofia Ramalho conclui: “e isto não é uma situação que se resolve de uma semana para outra” e, por isso, as pessoas devem estar dispostas a procurar ajuda e mantê-la.

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