Os cantores acusam a humorista de “adulterar, truncar e manipular” um vídeo (de 2022) que os “envergonha”. E exigem em tribunal uma avultada indemnização: um milhão e 118 mil euros. Porquê? “Pela dimensão do que isto nos está a causar, pessoalmente e profissionalmente.” Os processos contra humoristas não são uma novidade na justiça em Portugal, mas acabam quase sempre antes de começar. A razão é simples de explicar no Direito: “O humor, a sátira, acabam por exigir alguma margem de liberdade de expressão, porque é muito difícil fazer humor se não existir essa tal margem. E, desse ponto de vista, é praticamente uma liberdade ilimitada"
Escusa de vasculhar na internet por esse vídeo do “Extremamente Desagradável” em que a Joana Marques “goza com os Anjos”. Não, não existe.
A humorista foi processada em 2024 por Sérgio e Nelson Rosado (bem como pelas duas empresas que são responsáveis pela gestão dos direitos da marca “Anjos” e agenciam os músicos, mas das quais estes não são proprietários) devido ao vídeo que publicou, em 2022, no Instagram e onde, sob a legenda “Será que foi para isto que se fez o 25 de Abril?”, Joana partilha a actuação dos Anjos no MotoGP, no Autódromo Internacional do Algarve, prova na qual interpretaram o hino nacional.
A atuação foi criticada, escarnecida, ridicularizada um pouco por toda a internet e demais redes sociais por ter sido menos conseguida - e onde os Anjos, erradamente, cantam "igrejos avós" em vez de "egrégios avós". A humorista optou por então intercalar a atuação no Algarve com imagens do júri do programa “Ídolos”, onde Joana era precisamente um dos jurados, sugerindo que a interpretação do hino não correu bem - e "assassinaram" a música. A piada é esta.
Sérgio e Nelson não gostaram. Não aceitaram “um conjunto de ações perpetradas” pela humorista, “que nada têm a ver com humor” - segundo declarações recentes da agente da banda, Timi Montalvão, ao Blitz. E depois de terem contactado, sem sucesso, por telefone numa primeira vez e por carta registada noutras duas vezes, Joana Marques - a fim de esta retirar o vídeo do Instagram -, resolveram processá-la, exigindo uma indemnização (por danos patrimoniais e não patrimoniais) de mais de um milhão de euros: um milhão e 118 mil.
A justificação é que esse vídeo os prejudicou gravemente, profissional e pessoalmente - nomeadamente através da quebra ou perda de contratos, seja de publicidade, seja de actuações -, mas também por “ter sido destruidor para as famílias”. Novamente, no entendimento de Timi Montalvão.
O agente de Joana (Miguel Isaac, que agencia também a fadista Carminho e o maestro Martim Sousa Tavares, entre outros) fez saber que, agente e agenciada: “Não temos nada a dizer nesta fase” - disse-o ao jornal Expresso. E Joana tem evitado, ou simplesmente não pretendido, pronunciar-se sobre o processo. Já este ano, em janeiro, e no seu “Extremamente Desagradável”, a humorista revelaria "um desejo”. Que chegada à audiência “o juiz fosse o doutor Hélder Fráguas”. “No fundo, eu queria é que a minha sentença fosse lida pelo meritíssimo da ‘Sentença’”, gracejou, em referência ao programa da TVI.
Na ausência da humorista, outros seus pares têm comentado este processo. Como o fez há poucos dias Ricardo Araújo Pereira, no podcast da SIC (que partilha com José Diogo Quintela e Miguel Góis) “Assim Vamos Ter de Falar de Outra Maneira”.
“É um vídeo que a Joana fez no Instagram, um vídeo que tem um minuto. Esse vídeo de um minuto que produziu um ‘estrago’ no valor de 1,1 milhões de euros. O que os Anjos alegam é que o vídeo lhes causou um dano de quebras de contratos, produtores que deixaram de os convidar para trabalhar, dar concertos. Ora, a própria agência revela que eles nos últimos, sei lá, 12 anos, faturaram anualmente um pouco acima de 200 mil euros. Portanto, o vídeo de um minuto da Joana fez com que eles tivessem um prejuízo equivalente a sete anos de trabalho. Eles entretanto voltaram a trabalhar e bem - não se têm queixado”, resumiria o comediante.
Ainda para RAP, para haver uma condenação neste processo, “é preciso demonstrar claramente uma relação causal entre o vídeo que supostamente causou os danos e os danos propriamente ditos”. “O que é um bocado difícil. Porque o vídeo [dos Anjos a cantar] não é da autoria da Joana, começou a circular muito antes do da Joana. E, portanto, vai ser muito difícil provar que foi o vídeo da Joana que causou este estrago”, antecipa.
E elogia também a decisão de Joana Marques (uma das argumentistas do programa de Ricardo na SIC, “Isto é Gozar Com Quem Trabalha”) por não ter retirado o conteúdo do Instagram. “Não retirou - e não retirou bem. Porque se ela o tivesse retirado, abriria o seguinte precedente: alguém é alvo de crítica, telefona para quem criticou e diz ‘olhe que essa sua crítica está a causar-me danos patrimoniais’ - e a pessoa cala-se imediatamente, nem é preciso provar esses danos patrimoniais.”
De Herman a Batáguas, é longa a história de processos (ou cancelamentos, ou ameaças)
As primeiras audiências já têm data: 17 e 18 de junho. Mas não falemos já do processo de que se fala, do que pode ou não acontecer - embora o antecipemos à frente, juridicamente. Falemos primeiro de processos anteriores, passados. Recuemos ao ano de 1996.
Marcelo Rebelo de Sousa era presidente. Não da República, mas do partido. Indignara-se o líder social-democrata com um sketch de humor: “Vejo com preocupação que, num canal com serviço público, se encontrem mensagens que podem ser consideradas ofensivas de valores partilhados pela maioria dos portugueses e também ofensivas de instituições particularmente relevantes como é a Igreja Católica”. O canal é, claro, a RTP 1. E o programa que transmitiu tal mensagem "ofensiva" é o “Parabéns”, de Herman José.
Herman, que fora já censurado (ou que viu um programa, o “Hermanias”, no ano de 1988, cancelado) devido à entrevista humorística à rainha Santa Isabel, na década de 1990 conseguiu sobressaltar os sectores conversadores de Portugal com uma recriação bem-humorada da Última Ceia. Herman não teve mais um programa cancelado.
E responderia no Telejornal à crítica de Marcelo Rebelo de Sousa: “Se o professor Marcelo for primeiro-ministro vamos ter uma RTP bastante mais contida, bastante mais refreada, e enquanto a RTP for do Estado há-de sempre vagar aos sabores de quem estiver no poder na altura”.
Em 2023, o Presidente da República condecorou o humorista com o grau de grande-oficial da Ordem do Infante D. Henrique, elogiando a “respiração nova” que representou na comédia em Portugal, “levando a liberdade mais longe do que tinha ido até então”.
Outros episódios houve em que os humoristas se viram a braços com processos. Rui Sinel de Cordes apresentou na SIC Radical um episódio “Especial de Natal”. Foi no dia 24 de dezembro de 2010. Em março de 2011, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) instaurava um processo de contra-ordenação àquele programa, e à estação, considerando que infringiu a Lei da Televisão, pois continha conteúdos que são “susceptíveis de influírem negativamente na formação da personalidade de crianças e de adolescentes”.
O regulador enumerou algumas das situações que considerou “limite”: recriação das figuras do presépio “com recurso a associações simbólicas desprimorosas”, “sequestro e tortura de um pai natal”, referências às vítimas de pedofilia da Casa Pia e “referência a crianças com síndrome de Down”. Ainda segundo o regulador, não estava em causa “a legitimidade do humorista para expressar a sua visão do Natal”, mas este não pode desrespeitar a “dignidade das pessoas” ao fazê-lo.
“O exercício da liberdade de expressão, ainda que no campo do humor, não pode ser utilizado como estandarte à sombra do qual se perpetrem ofensas que visem enxovalhar, desprestigiar, rebaixar ou humilhar determinado grupo de cidadãos ou indivíduos”, criticava duramente a ERC. Em 2012, o Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa revogou a decisão e absolveu a estação e o humorista.
Outro episódio de processo (ou ameaças de processos) contra humoristas ocorreria em 2019 com Diogo Batáguas. No programa “Relatório DB”, no YouTube, Batáguas abordou uma decisão, polémica, do juiz Neto de Moura, que minimizou um episódio de violência doméstica (citando até no acórdão a Bíblia para enquadrar este crime) por considerar que a mulher vítima de agressão era adultera.
O humorista considerou que tal decisão se deveria ao facto do juiz ser, ele mesmo, alvo de traição - e popularizou uma hashtag: #netodemouraécorno. O juiz pretendia processar Batáguas por ofensa à honra - e ainda outros humoristas, como Ricardo Araújo Pereira e Bruno Nogueira -, mas não efectivou o processo.
“Ameaçou meio país e acabou por não avançar. Para mim isso foi ótimo, a notícia. ‘Processar-me? Que divertido!’ É complicado processares, ou atacares publicamente, um comediante; é dar-lhe ainda mais força. O simples ato de avançar com um processo judicial com base nas piadas que eu fiz ridiculariza mais os queixosos do que o comediante”, explicaria Batáguas, em entrevista ao Público.
Guilherme Duarte, também comediante, foi um dos poucos que foi mesmo a tribunal - mas o desfecho é idêntico; lá chegaremos.
O processo é colocado em 2023 pelo deputado Pedro dos Santos Frazão, do Chega, mas o que incomoda Frazão remonta ao ano de 2020: “Foi um vídeo que umas famílias numerosas beatas fizeram na altura do primeiro confinamento da pandemia a pedir o regresso das missas. Achei este vídeo ridículo e, portanto, com potencial humorístico”, explicaria o humorista, justificando assim o vídeo que fez a troçar aquele.
A paródia consistia também em substituir a frase “para que possamos voltar a ir à missa” por “para que possamos voltar a ir às putas”. Pedro dos Santos Frazão, e outras cinco pessoas que como ele participavam nesse vídeo original, consideraram a adaptação do humorista ofensiva e injuriosa.
Guilherme Duarte seria constituo arguido e ficou até com termo de identidade e residência. A primeira decisão do tribunal era favorável a Guilherme, os queixosos recorreram e o tribunal acabou por considerar “nulas” todas as acusações. “Eles já sabiam que eu nunca iria pagar nada, foi apenas uma tentativa de me silenciar. Mas gostava de saber se o Pedro dos Santos Frazão moveu processos contra a Igreja Católica devido aos milhares de abusos sexuais de menores que têm vindo a lume”, ouviu-se então do humorista, num vídeo que publicou no Youtube, aquando do fim do processo.
Não, nenhuma queixa avançou além do que aqui se leu. Nenhum processo resultou numa condenação de um humorista. A advogada Iolanda Rodrigues de Brito, autora do livro “Liberdade de Expressão e Honra das Figuras Públicas”, encontra duas explicações. A primeira: “Por que caem as queixas e os processos? É possível que tenha que ver com o facto de, sendo figuras públicas muitos deles [queixosos], também acabam por preferir não avançar até ao final com o processo, não continuar a exposição.”
E a segunda explicação: a liberdade de expressão. “A liberdade de expressão, no âmbito, na dimensão específica da liberdade de criação artística, é quase ilimitada. Porque, no fundo, o recurso ao humor, o recurso à sátira, acaba por exigir, também, alguma margem de liberdade, porque é muito difícil fazer humor se não existir essa margem de liberdade. E, desse ponto de vista, é praticamente uma liberdade ilimitada”, garante Iolanda Rodrigues de Brito.
Diz ainda esta advogada o porquê da ilimitação: “Porque o humor, a arte, todas as formas de arte, no fundo, visam incitar, instigar as pessoas a refletir de uma forma aparentemente descontraída, mas, no fundo, a refletir sobre questões mais sérias - no caso da política, por exemplo. E o humor, para conseguir fazer isso, para conseguir fazer a graça, necessita de não ser escrutinável, no sentido de estar limitado.”
E por o humor carecer dessa “natureza livre, ampla e robusta”, não pode ser “equiparável a nada”. “Nem à liberdade de imprensa; a liberdade da criação artística atinge outro patamar.”
"Estamos à espera que aconteça o quê? Uma tragédia?! Que alguém se suicide?"
Já retornaremos à interpretação da advogada Iolanda Rodrigues de Brito ao caso do processo dos Anjos contra Joana Marques, ainda que não concretamente, “mas generalizando”, porque a matéria (e os fundamentos) da acusação são desconhecidos. Ainda assim, esta semana os irmãos Sérgio e Nelson falaram mais do que alguma vez haviam falado do caso. Foi na TVI, no programa “Dois às 10”.
Nelson Rosado começou, na conversa, “por justificar o porquê de falarmos nisto agora”. “Desde o início que dissemos que respeitamos aquilo que significa a justiça. Somos completamente contra aquilo que são os julgamentos na praça pública. E prometemos a nós, e às nossas famílias, às famílias da nossa equipa, a toda a gente que foi afectada, que era importante sermos os adultos na casa.”
Segundo Nelson Rosado, “passou-se para a opinião pública uma ideia que é completamente errada do que está em causa”. Segundo o músico, os Anjos não processam Joana Marques “por uma piada”. Processam, os irmãos Rosado e as empresas que trabalham para si, “porque a Joana Marques adulterou, ela truncou, ela manipulou, uma informação digital”. E isso terá gerado prejuízos avultados: “Há pessoas que ficaram sem ganhar o seu rendimento”.
O outro membro do grupo, Sérgio Rosado, prontamente referiria que em 26 anos, numa referência à carreira dos Anjos, “nunca metemos ninguém em tribunal, nunca estivemos ligados a polémicas”. Agora, sim, estão. E tudo por causa de “ciberbullying” - palavras do próprio, que explica que a atuação no Algarve deixou ambos “surpreendidos e envergonhados”, tudo por causa do “som”. Não era como tinham antes ensaiado. Não correu bem. "Fizemos 700 quilómetros na véspera para ir fazer o [teste de] som, o que estamos habituados a fazer. Quando chegámos a casa, já depois de ter passado a transmissão, é que percebemos o som. Pedimos satisfações à organização do MotoGP e obtivemos um pedido de desculpa e assumir das culpas.”
O assunto parecia ter ficado ali resolvido. Mas não. Tudo porque, diz Nelson, a publicação já referida da humorista veio trazer-lhes “uma onda de ódio, um discurso de ciberbullying que nós só ouvimos [contar] dos outros”. “Parecia um filme! Desde ameaças de morte, a nós e à nossa família.” Sérgio, e não Nelson, prossegue: “Quando nós chegámos aqui, a este ponto, uma onda de ódio, de violência na internet, nós estávamos a regressar da pandemia. E houve um receio das pessoas em contratarem-nos. Porque estavam à espera que acontecesse alguma coisa [negativa] nos concertos. E nós ficámos completamente chocados, porque nos estavam a cancelar trabalho - precisamente por causa disso [vídeo]”.
Por ter uma dimensão “brutal” digitalmente, era preciso retirar o post de Joana. Primeiro, garante Nelson, tentaram telefonar. “Se tentámos falar com ela? Nós fizemos de tudo para evitar isto [ir a tribunal]. Ninguém acorda num dia e por causa de uma piada vai processar uma pessoa. Eu tentei-lhe ligar. E a chamada deu sempre impedida, durante quatro horas. O objetivo era explicar-lhe o que nos tinha acontecido [no Algarve] e dizer-lhe que o vídeo dela nos estava a causar danos patrimoniais. Grande parte daqueles concertos cancelados iam ser feitos nas comunidades portuguesas - lá fora, portanto: Suíça, Alemanha, França, Luxemburgo - e os empresários não quiseram arriscar [contratar-nos], abrir uma bilheteria quando andava toda a gente a gozar connosco na internet. Se não tivesse acontecido aquilo [vídeo], nunca na vida tinham desmarcado os concertos”, garante. E lembraria ainda os apoios que perderam: “Nós tínhamos dois patrocínios grandes, que iam fazer campanhas digitais”.
Quarto dias após telefonarem, escreveram. Prossegue Nelson Rosado: “Enviámos-lhe uma carta registada onde explicámos exatamente aquilo que nos tinha acontecido [no MotoGP], mesmo em termos técnicos, e pedimos: ’Por favor, retira o vídeo’. Porque nós estávamos a receber ódio e estava-nos a ir ao património”. Segundo o músico, Joana Marques terá respondido.
“Algo do género ’não tenho nada a ver com os vossos problemas técnicos’ - e é verdade -, ‘isso é um problema vosso, vocês são duas figuras públicas e é a minha liberdade de expressão’. Enviámos outra carta registada, agora pelas nossas advogadas, onde voltavam a explicar o que é que tinha sucedido [no Algarve]. E que o vídeo dela estava adulterado para nos ridicularizar. E ela ignorou, já não respondeu. Portanto, nós fomos obrigados a ir para o tribunal”, garante. E justifica ter a seu encargo “uma equipa de mais de 28 pessoas à espera de serem ressarcidas”.
Para Sérgio Rodado tudo o que se passou “custa muito”. “Só que os estragos já estão feitos. A família sofre muito com isto. Não podíamos deixar passar, foi demasiado grave.” Mas pode uma piada ser assim tão grave? - perguntam repetidamente à dupla. “Nós não temos [sentido de] humor? Acusam-nos de não ter sentido de humor? O humor serve para quê?! Para nos fazer rir. Para divertir. Eu, se mando uma piada, e se vejo que do outro lado causa injurias ou outro tipo de problemas, tenho de reconhecer que estive menos bem”, lamenta Sérgio. E Nelson defende os Rosado: “A nós, até pelo que é a nossa educação, não nos falem de liberdade - porque nós sabemos o que é liberdade”.
Mas e se o processo não resultar em nada, em qualquer condenação? Nelson diz que se assim for “ao menos as pessoas ficarão a saber todos os detalhes”. “E aí vai ser muito complexa a discussão na sociedade. ‘Será que vale tudo?' Para mim, a liberdade de expressão tem um limite: é a partir do momento em que tu causas danos. Aí é o limite”, defende, garantindo que nunca se tentou “chegar a um acordo” financeiro, que não houve da parte da visada essa vontade, e que para os músicos “bastava ter retirado o vídeo na altura”. Por não ter retirado a publicação, Joana Marques causou um problema familiar a Sérgio Rosado, acusa este: “A minha filha de nove anos - na altura - sofreu bullying na escola, dos colegas”.
Nelson diz que ambos acabariam também por sofrer bullying - e não só as suas famílias. “O vídeo da Joana Marques é o único [na internet] em que não aparecemos a cantar o hino na sua totalidade. Houve erros técnicos [da parte da organização] e quem tinha de pedir desculpa, reconheceu-os. Há partes da nossa interpretação que não existem no vídeo da Joana Marques. E nós fomos acusados [de desrespeitar o hino] por grupos provavelmente ligados à extrema-direita, nomeadamente grupos nacionalistas, que levam aquilo a sério - e acho muito bem. Quem é que fez o vídeo? Quem é que fez a manipulação? Fui eu?!”
Para Sérgio, "ela agiu de má-fé, nós tentámos dialogar e ela agiu de má-fé”. Daí o alto valor da indemnização. “É claro que o valor [da indemnização] é muito grande. Mas são quatro os autores [da queixa], eu e o Nélson, e outras duas empresas.”
À espera da indemnização, “de poderem ser ressarcidas”, garante Nelson, estão inúmeras pessoas, afetadas por uma situação “absolutamente lamentável”. Enumera-as. E descreve-as, descreve-lhes o estado de espírito: “Roadies, músicos, técnicos, staff de produção, runners, stage hands, pessoas importantíssimas [nos concertos]; esta gente foi verdadeiramente prejudicada. E atenção que não foi fácil conseguir gerir os ânimos de toda a nossa equipa. Porque são pessoas - algumas delas - bastante humildes e… rudes. Estamos à espera que aconteça o quê? Uma tragédia?! Que alguém se suicide por ser vítima de bullying? [Exagero?] Não é um exagero”.
O que é que mais pesa na Constituição: liberdade de expressão ou direito ao bom nome?
Iolanda Rodrigues de Brito reconhece a importância da liberdade de expressão concedida aos humoristas. Em concreto na política, ou contra a política. “Quando nos referimos, concretamente, às figuras públicas e, muito especificamente, aos titulares de cargos públicos, é muitas vezes através do humor que se discutem até questões de interesse público.”
A advogada, autora de “Liberdade de Expressão e Honra das Figuras Públicas”, considera igualmente, "e seguramente que haverá pessoas que pensam de forma diferente”, que não pode haver “liberdades absolutas e, logo, liberdade de expressão absoluta”. “Isto também serve para o humorismo. Se a piada vai ao encontro de fazer a humilhação pública, se faz a degradação da dignidade da pessoa humana, mesmo sendo uma figura pública, há ali um limite que, se for ultrapassado, transposto, e mesmo sendo muito alargada [liberdade de expressão[, nega à própria figura pública um direito: o direto à dignidade.” Em conclusão, encontra um limite no humor: “O limite do rebaixamento absolutamente intolerável”.
Esse não é o caso dos Anjos. “Não comentando este caso concretamente, mas abstratamente - porque ainda não se sabe o que diz a acusação -, eu diria que está, parece-me, completamente a coberto da liberdade de expressão. Ou seja, quando eu penso num caso em que há limite à liberdade de expressão, à liberdade artística - em matéria de sátira ou de humor -, não parece ser este o caso.”
A advogada admite que os dois músicos possam sentir prejuízo. “É possível que os dois artistas tenham perdido - não sei se perderam ou não, mas é possível - contratos por causa desta questão.” Mas quando um juiz analisar se há, ou não há, lugar a uma responsabilidade, civil ou criminal, “dificilmente se chegará à indemnização, vai depressa cair”. Iolanda Rodrigues de Brito vai explicar porquê, passo por passo.
"Suponhamos que foi pedida a responsabilidade civil e responsabilidade criminal ao mesmo tempo. O juiz vai ter de analisar os pressupostos em separado. Mas, em ambos os casos, vai analisar a questão da ilicitude. Antes de analisar os danos [patrimoniais], vai analisar a ilicitude. Para chegarmos à obrigação de indemnizar, primeiro o juiz terá de ver se houve algum facto voluntário humano. E há: é uma publicação [no Instagram].” Portanto, o primeiro requisito está preenchido.
O segundo requisito é se a conduta é ilícita ou está excluída a ilicitude “por causa da liberdade de expressão”. “Na maioria dos casos, e não só neste caso, o exercício do direito à liberdade de expressão pode justificar a ilicitude - e, assim, excluir a ilicitude. Se for o caso, e parece-me que vai ser o caso, o juiz já não vai sequer chegar à apreciação do dano. E a indemnização cai, sim. Porque os pressupostos da responsabilidade civil são a existência de um facto voluntário humano e a existência de ilicitude. Só se indemnizaria se preenchesse ilicitude - por culpa, por dolo, por negligência. E se se provasse a existência do nexo de causalidade entre o facto e o dano. Portanto, o grande factor de desbloqueio é mesmo a questão da liberdade de expressão”, assegura a advogada.
Importa, pois, perguntar: pesa mais - na Constituição - a liberdade de expressão do que o direito ao bom nome? “Ela protege em igual medida. São os dois direitos fundamentais”, começa por esclarecer Iolanda Rodrigues de Brito. E acrescenta: “O que muitas vezes se diz é que, ao abrigo da Convenção Europeia, os direitos não se encontram no mesmo patamar, porque há um direito à liberdade de expressão e o direito ao bom nome é apenas tutelado como um limite, em certas situações excepcionais, ao direito à liberdade de expressão”.
Deixando de lado o juridicês, e ilustrando, a advogada diz o que defende, “e continuarei a defender”, quando há conflitos entre liberdade de expressão e direito ao bom nome: pesar bem. “Porque o direito ao bom nome é um direito que é fundamental numa democracia - uma informação falsa pode destruir relações humanas, pode destruir relações empresariais, pode destruir a confiança.”
E explica como se pesa: “O julgador a primeira coisa que tem de fazer é imaginar que há uma balança e que vai colocar tanto a liberdade de expressão como o bom nome, a honra, em cada um dos pratos. E depois, à medida que vai introduzindo os critérios que são pertinentes para dirimir este conflito, é que vai desequilibrando até decidir qual é que é o prato que vai prevalecer”. E que critérios são esses? Em primeiro lugar, e mais importante, a distinção entre imputação de factos e juízos de valor. “Ou seja, uma coisa é a imputação de um facto, outra coisa é a liberdade de opinião. A liberdade de opinião é muitíssimo mais protegida, porque cada pessoa tem a sua opinião, as opiniões são subjetivas, não há opiniões certas nem erradas, pode haver opiniões justas e injustas - tudo isso está coberto do direito à liberdade de expressão.”
“Dificilmente” Joana Marques poderá ser condenada. Ainda menos nos valores que se pedem à humorista, acima do milhão de euros. Mas e se for?
“Muitas vezes as indemnizações são avultadas. E é por causa disso que há também muitas condenações [da justiça e do Estado portugueses] no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. Mesmo neste caso, e ainda que se diga que a conduta [da humorista] não estava ao obrigo da liberdade de expressão, que era ilícita, a desproporção [entre o crime e o dano] é demasiado grande, demasiado gravosa. Porque, assim, a sanção torna-se, ela própria, uma forma de restringir a liberdade de expressão. Tem de haver ponderação e não desproporção [por parte dos juízes]. Claramente uma indemnização destas violaria o artigo 10º da Convenção Europeia, que é o que protege o direito à liberdade de expressão”, conclui Iolanda Rodrigues de Brito.