Anjos vs. Joana Marques. "Parem já", antes que "o ridículo gere mais ridículo"

6 jul, 08:00
Anjos vs. Joana Marques 1280x720

Os cantores sentiram-se lesados (e, portanto, decidiram ir para tribunal) por causa de um vídeo. A comediante defende que é só isto: comédia — e liberdade de expressão. Mas quando estão as marcas e o marketing em jogo, já não se discute somente a liberdade de expressão: discute-se perda de contratos, imagem pública e reputações — que se tentam salvar como podem. Um especialista assegura: "Este caso já ultrapassou o razoável. E nenhuma marca quer estar associada a isso"

Começou como um episódio de escárnio passageiro, um vídeo. 

Desses que não deixam (aparentemente) grande lastro. Mas escalou para um tribunal. De um lado, os irmãos Rosado, os rostos e vozes dos Anjos. Do outro, Joana Marques, humorista. Dois nomes, duas marcas — fortes, embora de naturezas diferentes — confrontam-se em nome do que cada um entende ser justiça: em causa, dizem uns, está a liberdade de expressão; e ao que dizem outros, está a honra ferida. 

No entanto, nem tudo se joga ali. Porque há um outro “julgamento", mais difuso e menos codificado, a decorrer em paralelo: o da opinião pública e das marcas. Se os tribunais decidem com base em factos e códigos, os mercados decidem com base em perceções. 

É isso que está em jogo também, como explicam dois dos nomes mais relevantes do marketing em Portugal. Carlos Coelho, presidente da Ivity, e Daniel Sá, diretor-executivo do IPAM, analisam este caso como quem observa dois ativos simbólicos a desvalorizarem-se em direto — mais eles, Anjos, do que ela, Joana. E o diagnóstico dos especialistas, ainda que com nuances diferentes, converge neste ponto essencial: é tempo de parar. 

Antes que haja mais ruído que conteúdo. Antes que a notoriedade gaste a respeitabilidade.

"Provavelmente, a atuação já teria sido esquecida"

Por vezes, a pior nota não vem da atuação — vem do eco que ela deixa no tempo. 

E é nesse prolongamento do barulho que uma marca pode perder o tom. No caso que opõe os irmãos Rosado à humorista Joana Marques, o palco deixou de ser o Autódromo e passou a ser o tribunal. O que está em julgamento? A fronteira entre liberdade de expressão e difamação, sim. 

Mas também — e não menos relevante — o valor de uma marca em tempo de escárnio. E se há alguém em Portugal que pensa as marcas é Daniel Sá. Observa este embate com o olhar clínico de quem despersonaliza primeiro para posteriormente analisar. “Olho para a Joana Marques como uma marca, e para Os Anjos como outra marca. Distingo as pessoas das marcas”, afirma. E, como qualquer marca, diz, também estas podem enfrentar crises.

E há crises que se escrevem em silêncio, mas esta não é uma delas. Tudo começou com um hino — o de Portugal — cantado no Autódromo do Algarve numa versão que muitos julgaram, no mínimo, deslocada. Depois vieram os memes, os comentários, o vídeo de Joana Marques. E, por fim, o tribunal. Mas e o marketing, no meio disto tudo?

“Existe mau marketing, sim”, diz Daniel Sá, sem hesitação. “Já vimos marcas automóveis a terem de recolher carros por problemas mecânicos. A Tesla está hoje afetada pelo desempenho individual de Elon Musk. Também já vimos ‘marcas-pessoa’, como o golfista Tiger Woods, envolvido em escândalos sexuais que levaram patrocinadores a afastarem-se.” O paralelismo não é gratuito – é um aviso. 

Porque a marca Anjos, explica, também pode ser afetada. “Aparentemente, houve um desempenho abaixo do habitual, uma atuação talvez aquém das expectativas – talvez mais americanizada, mais vulgar. Tivemos, ao que tudo indica, problemas técnicos. Mas estamos a falar de uma banda com uma carreira sólida, com uma marca a proteger. Pode ter sido um momento infeliz, mas isso não destrói a marca Anjos.”

O que poderá desgastar, verdadeiramente, é o tempo. E o ruído. “Provavelmente, a atuação já teria sido esquecida. Teria sido só um momento menos feliz. Mas todo este processo, todo este julgamento, acabou por amplificar o tema, mesmo junto de quem nem tinha reparado inicialmente na atuação.”

Caminho de estalos

Carlos Coelho, um especialista em marcas e um dos nomes mais respeitados do branding em Portugal, não hesita em separar águas: notoriedade e respeitabilidade não são sinónimos. “Qualquer situação polémica contribui sempre para um dos pilares do marketing, que é a notoriedade”, começa por dizer. “Durante esta semana, este mês, ou o tempo que durar, há um foco de atenção mediática em torno destas duas marcas pessoais — e há, nesse sentido, um benefício evidente ao nível da visibilidade.”

Mas atenção: “A notoriedade é apenas um dos aspetos. Uma marca precisa de dois pilares fundamentais. Notoriedade e respeitabilidade. Ou seja, eu tenho de conhecer a marca, mas também tenho de querer relacionar-me com ela.” O exemplo que dá é direto e eficaz: “Imaginemos que eu quero conhecer alguém e, em vez de me apresentar, dou-lhe dois estalos. É certo que ganho notoriedade — a pessoa nunca mais se esquece de mim. Mas não criei uma relação, antes pelo contrário.”

O caso entre os irmãos Rosado — os Anjos — e Joana Marques, humorista e autora do podcast Extremamente Desagradável, está a fazer esse caminho de estalos. 

A polémica, ressuscitada dois anos depois de um vídeo viral, instalou-se agora na esfera judicial, onde o tom já não é de riso, mas de gravidade. E isso, para uma marca pessoal — seja ela um duo musical ou uma comediante — tem implicações de fundo. “Se pensarmos numa marca como uma árvore, há a parte visível — tronco, folhas — e há as raízes. Este tipo de situações mexe nas raízes”, diz Carlos Coelho. “E embora o tema seja leve — não estamos a falar de um crime grave — a opinião pública interessou-se. E as marcas escutam o que a opinião pública sente.”

"Uma marca quer ser notícia — mas pelas razões certas"

A dado momento do julgamento, os músicos alegaram ter perdido patrocínios, campanhas, oportunidades comerciais. 

Carlos Coelho acredita. “Acredito que sim, que tenha havido esse afastamento. As marcas que gerem bem a sua reputação tendem a distanciar-se rapidamente de polémicas — mesmo que não haja nenhum crime.” E há um padrão: “As marcas fortes tendem a sair imediatamente de cena. As fracas, às vezes, tentam aproveitar o furor mediático para ganhar algum tempo de antena.”

O caso Kanye West é citado como exemplo extremo: a Adidas rompeu laços apesar dos milhões em jogo. “O princípio é o mesmo. Uma marca quer ser notícia — mas pelas razões certas. Estar associada a um escândalo, mesmo que pequeno, compromete a relação com os consumidores.”

No caso dos Anjos, tudo começou com um vídeo humorístico que ironizava uma atuação menos feliz. O vídeo teve de princípio alguns milhares de visualizações — hoje tem bem mais. A sátira gerou debate. Mas a resposta foi formal: uma queixa em tribunal. “Vamos imaginar o seguinte: tu és uma marca, e procuras uma relação duradoura com o teu público. Quando te associas a uma figura pública — um cantor, um influencer — procuras aquilo que ele ou ela representa. Se, de repente, essa pessoa passa a significar algo diferente, é natural que a marca deixe de estar interessada.”

E mais: “O que pode acontecer é que a imagem que era doce — simbólica, positiva — passe a ser amarga, ou até ridícula. E aí, naturalmente, o valor dessa marca pessoal desce. No fundo, elas são media. Se perdem tração, deixam de ser relevantes.”

Carlos Coelho defende, por isso, que o caso já se prolongou para lá do razoável. “Já chegou. A notoriedade foi atingida. As pessoas já têm opinião. E quanto mais se prolonga, mais se entra no ridículo. E isso não ajuda ninguém. Só prejudica. O ridículo gere mais ridículo.”

Caso Dennis Rodman

Já a marca Joana Marques, e quem diz é Daniel Sá, “sofre menos risco”. Não por estar imune, mas por se alimentar precisamente da provocação. “A sua marca assenta precisamente num humor que, muitas vezes, provoca e ridiculariza – é uma técnica comum no humor. Esta ação, a meu ver, reforça a sua marca, mesmo que existam pessoas que não gostem ou critiquem. Isso é normal. Nada disto é unânime.”

Mas se as reações do público podem dividir-se entre risos, indignações ou desinteresse, as marcas – as que patrocinam – raramente hesitam. Algumas das que apoiavam os Anjos afastaram-se — isso alegam os músicos —, como se a polémica fosse contagiosa. Porquê?

“As marcas procuram autenticidade. Quando se associam a um atleta, uma banda ou um humorista, querem saber com quem estão a associar-se.” Daniel Sá lembra o caso de Dennis Rodman, o “bad boy” da NBA. “Era um excelente jogador de basquetebol, mas também era mal-educado, fumava, bebia, ia a festas. Esses traços podiam ser interessantes para marcas irreverentes. Mas nunca para marcas que vendem serviços financeiros, ou hotéis de luxo.” A lógica é simples: “Nenhuma marca quer estar associada a problemas, mentiras, rumores, boatos, tricas... ou a um julgamento”.

Os exemplos sucedem-se, quase como estudo de caso: “Veja-se o Benfica, que alegou que o processo dos e-mails afetou a sua marca. O FC Porto teve um processo relacionado com uma Assembleia Geral que também afetou a marca. Não devemos achar que os Anjos estão a exagerar ou a fazer uma tempestade num copo de água. Outras marcas, noutros contextos, já viveram isto.”

Mas haverá, em tudo isto, um lado solar? A visibilidade, mesmo conflituosa, pode ser trunfo?

“Sim, também pode fazer sentido. Este é um jogo difícil. A marca Joana Marques e a marca Anjos ganharam, nas últimas semanas, um nível de visibilidade tremendo – e muitas vezes custa muito dinheiro conseguir isto.” A exposição mediática é um recurso valioso, mas não basta aparecer – é preciso saber o que se está a dizer quando se aparece.

E nesse território nebuloso entre o que se comunica e o que se interpreta, ganha quem for coerente. “Não há unanimidade. Haverá fãs da Joana Marques que estão a gostar, e outros que não. O mesmo nos Anjos. Cada um faz o seu julgamento individual. O meu conselho: mantenham-se autênticos.”

No fim do dia, a lição é mais humana do que técnica, “Toda a gente pode errar. Mas o mais importante é que, independentemente do resultado legal, se mantenham fiéis àquilo que são. Essa autenticidade é a melhor garantia para o futuro.”

"Este caso já ultrapassou o razoável"

E mesmo que o desfecho seja favorável a uma das partes — “seja com vitória da Joana Marques, como parece mais provável, ou com recurso de uma das partes” — o conselho de Carlos Coelho, do ponto de vista comunicacional, é claro: parar. “Sem dúvida. Este caso já ultrapassou o razoável.” E insiste: “Estamos a pegar num episódio ridículo — e como já disse, ridículo gera ainda mais ridículo —  e a transformá-lo num julgamento sobre a liberdade de expressão, o que é um pouco absurdo. E nenhuma marca séria quer estar associada a isso.”

As marcas mais pequenas podem tentar “surfar a onda”, como já aqui se explicou, “entrar nessa janela de visibilidade”. Mas as que jogam “na primeira divisão”, não. “Não vão investir dinheiro num tema sem densidade, ou com uma densidade duvidosa. E, neste caso, nem sequer está em causa uma subida de notoriedade. Ambas as partes já são conhecidas — não há sequer esse ganho. Portanto, sim, o mais sensato do ponto de vista do marketing é parar. Antes que o ridículo gere ainda mais ridículo.”

E a quem aproveita então esta novela? “Aos humoristas dá-lhes mais material”, conclui Carlos Coelho. “Aos queixosos, não. E às marcas a sério, muito menos.”

Ninguém quer estar no meio disto

— E houve um receio das pessoas em contratarem-nos. Porque estavam à espera que acontecesse alguma coisa nos concertos.

A frase é de Sérgio Rosado, mas podia ser de qualquer artista a tentar digerir o que acontece quando se passa, de um dia para o outro, da playlist das rádios para a chacota das redes sociais. “Ficámos completamente chocados, porque nos estavam a cancelar trabalho, precisamente por causa disso.”

O “isso”, neste caso, é um vídeo publicado por Joana Marques a 25 de abril de 2022. Uma montagem com imagens da atuação dos Anjos no Autódromo do Algarve — onde cantaram o hino nacional — intercalada com reações reprovadoras do júri do programa Ídolos, onde a própria humorista participava. “Assassinar uma música destas”, ouve-se Tatanka dizer, no clipe. E a legenda no Instagram de Joana deixava pouco espaço para interpretação: “Será que foi para isto que se fez o 25 de Abril?”

Dois anos depois, os irmãos Rosado exigiram em tribunal mais de um milhão de euros por danos — financeiros e reputacionais. 

E trazem consigo números, nomes e memórias recentes de contratos perdidos. “Grande parte daqueles concertos cancelados iam ser feitos nas comunidades portuguesas, lá fora, portanto, Suíça, Alemanha, França, Luxemburgo, e os empresários não quiseram arriscar [contratar-nos] quando andava toda a gente a gozar connosco na internet”, testemunhou Nelson Rosado. E não foram apenas concertos. “Perdemos dois patrocínios grandes, que iam fazer campanhas digitais.”

Do outro lado da sala de audiências, os empresários confirmaram. Pedro Miguel Ferreira Duque, gestor de empresas, contou que tinha fechado um contrato com os Anjos no valor de cerca de 35 mil euros — fora o material promocional — para ajudar a divulgar uma marca. O contrato foi rescindido a 9 de maio de 2022, poucos dias depois da publicação do vídeo. “Cada um de nós tem o nosso próprio negócio e o que não quer é má publicidade e polémica”, afirmou. “Achámos que não era benéfico.”

Seguiu-se Bruno Carvalho, empresário do setor desportivo. Estava fechado um patrocínio de 75 mil euros, válido por dois anos. Mas a polémica chegou-lhe depressa. “Fui confrontado com isso: ‘Já viste o que se está a passar?’”, recordou em tribunal. “Disse: não posso estar no meio disto.” Ligou diretamente a Nelson Rosado: “Não me leves a mal, mas, com tudo isto que está a acontecer, tenho de olhar para o que pode sobrar para a minha empresa”.

Luís Ramos, sócio-gerente de uma empresa farmacêutica, usou a mesma expressão — “não fazia sentido estar no meio disto” — ao explicar por que motivo também ele recuou num contrato de 85 mil euros. Estava prevista a “exploração de imagem dos Anjos”, incluindo um concerto privado e condições técnicas associadas. A escolha tinha sido motivada pelo perfil solidário da banda, particularmente a ligação a campanhas de prevenção do cancro da mama. Mas, disse, tudo mudou no dia 24 de abril. 

“Parecia uma bola de neve.” Os comentários online sucediam-se. “Ficámos alarmados.” E a decisão foi unânime dentro da empresa: sair da associação com a banda antes que a polémica colasse à imagem da marca.

A música, o vídeo e a sátira podem ter durado apenas alguns minutos. “Só que o vídeo dela estava-nos a causar danos patrimoniais”, afirmou Nelson Rosado. E, nesta equação, já não se trata apenas de liberdade de expressão ou de estilo humorístico. 

Trata-se, como se disse em tribunal, do lado da acusação, daquilo que “pode sobrar” — para os artistas, mas também para quem os acompanha, com orçamentos e campanhas em jogo.

Um problema de eco?

Voltamos a Daniel Sá. E se o futuro passar por um tribunal de recurso? Se o processo se arrastar nos corredores da justiça até já ninguém se lembrar do que o originou?

“Do ponto de vista de marketing, a minha recomendação é que o processo termine o mais rapidamente possível. Parem, parem já. Seja qual for o desfecho.” E justifica: “Quanto mais se prolongar, pior para todos. A partir de certo momento, começa-se a perder valor. As pessoas começam a cansar-se. Há problemas bem mais sérios no mundo que exigem atenção.”

No fundo, o problema já não é o hino, o vídeo ou o escárnio. O problema é o eco. “Este tema teve o seu pico de interesse. Mas rapidamente as pessoas começam a achar ridículo o tempo que se está a gastar com isto. As pessoas... e as marcas.”

E quando o público se afasta, não há palco nem spot que valha. Só resta o silêncio. Ou a memória do que podia ter sido – se tivesse terminado a tempo.

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