Duas crias da Idade do Gelo encontradas no norte da Sibéria, em excelente estado de conservação, podem afinal não ser cães, segundo uma nova investigação.
Ainda cobertas de pelo e preservados naturalmente no gelo durante milhares de anos, as chamadas "Crias de Tumat" tinham no estômago vestígios da última refeição: carne de rinoceronte-lanudo e penas de uma pequena ave conhecida como alvéola.
Antes pensava-se que fossem cães domesticados precocemente ou lobos habituados à presença de humanos, já que os restos foram encontrados perto de ossos de mamute-lanoso que mostravam sinais de terem sido queimados e cortados por humanos - o que sugeria que estes canídeos viveriam perto de um local onde os humanos caçavam mamutes.
Mas, ao analisarem dados genéticos do conteúdo do estômago, bem como vestígios químicos nos ossos, dentes e tecidos moles, os investigadores acreditam agora que os animais eram crias de lobo com dois meses de idade, sem qualquer evidência de interação com pessoas, segundo as conclusões publicadas recentemente na revista Quaternary Research.
Nenhuma das crias mumificadas, que se acredita serem irmãs, apresenta sinais de ataque ou ferimentos, o que indica que terão morrido subitamente quando a toca subterrânea onde se encontravam colapsou e as prendeu no interior, há mais de 14 mil anos. Segundo o estudo, o colapso poderá ter sido causado por um deslizamento de terras.
A riqueza de dados extraída dos restos mortais está a lançar uma nova luz sobre a vida quotidiana dos animais da Idade do Gelo, incluindo os seus hábitos alimentares - semelhantes aos dos lobos modernos.
"Foi incrível encontrar duas irmãs desta época tão bem preservadas, mas ainda mais incrível é podermos agora contar tanto da sua história, até à última refeição que fizeram", escreveu a autora principal do estudo, Anne Kathrine Wiborg Runge, antiga doutoranda da Universidade de York e da Universidade de Copenhaga, num comunicado. "Embora muitos fiquem desiludidos por estes animais serem quase de certeza lobos e não cães domesticados, eles ajudaram-nos a compreender melhor o ambiente da época, como estes animais viviam, e como os lobos de há mais de 14 mil anos são notavelmente semelhantes aos lobos dos dias de hoje".
A quantidade de investigação feita em torno destas crias e de outros espécimes mostra também o quão difícil é provar quando é que os cães — amplamente considerados o primeiro animal domesticado — passaram a fazer parte da sociedade humana.
Descobrir os hábitos alimentares das crias
Presos em permafrost em descongelação, as "Crias de Tumat" foram descobertas separadamente no local arqueológico de Syalakh, a cerca de 40 quilómetros da aldeia mais próxima, Tumat — uma em 2011 e a outra em 2015. Têm aproximadamente entre 14.046 e 14.965 anos. O pelo, a pele, as garras e até o conteúdo do estômago podem sobreviver durante milénios se as condições forem adequadas, explicou o coautor do estudo, Nathan Wales, professor de arqueologia na Universidade de York, no Reino Unido.
"O que mais me surpreendeu foi os arqueólogos terem conseguido descobrir a segunda Cria de Tumat vários anos depois do primeiro", apontou Runge à CNN. "É muito raro encontrar dois espécimes tão bem preservados e que ainda por cima são irmãos da mesma ninhada. É extraordinário".
Tal como os lobos modernos, as crias alimentavam-se de carne e plantas. Embora um rinoceronte-lanudo seja uma presa de grandes dimensões para os lobos caçarem, o pedaço de pele de rinoceronte encontrado no estômago de uma das crias é prova do tipo de dieta destes canídeos. A pele, ainda com pelo loiro, estava apenas parcialmente digerida, o que sugere que as crias estavam a descansar na toca e morreram pouco depois da última refeição, explicou Runge.
A cor do pelo do rinoceronte-lanudo é consistente com a de uma cria, segundo investigações anteriores feitas a outros espécimes jovens encontrados no permafrost. Os rinocerontes-lanudos adultos teriam provavelmente pelo mais escuro. O grupo de lobos adultos terá caçado a cria e levado a carne para a toca, para alimentar os filhotes, de acordo com os autores do estudo.
"A caça de um animal tão grande como um rinoceronte-lanudo, mesmo que jovem, sugere que estes lobos eram talvez maiores do que os que vemos hoje em dia", escreveu Wales em comunicado.
Os investigadores analisaram também minúsculos vestígios de plantas fossilizadas nos estômagos das crias, revelando que os lobos viviam num ambiente seco, relativamente ameno, capaz de sustentar vegetação diversificada, incluindo ervas de pradaria, salgueiros e folhas de arbustos.
Para além de já comerem alimentos sólidos, as crias provavelmente ainda mamavam leite materno, segundo os investigadores.
O que os cientistas não encontraram foi qualquer indício de que os mamutes fizessem parte da dieta das crias, o que torna improvável que os humanos no local estivessem a alimentar os canídeos. Mas será possível que os humanos tenham partilhado carne de rinoceronte-lanudo com as crias? Essa foi uma hipótese considerada por Wales, mas acredita agora que as evidências apontam noutra direção.
"Sabemos que os lobos modernos caçam presas grandes como alces, alces-do-Canadá e bois-almiscarados, e qualquer pessoa que veja documentários sobre animais sabe que os lobos tendem a escolher presas jovens ou mais fracas quando caçam", referiu Wales num e-mail. "Inclino-me para a interpretação de que as Crias de Tumat foram alimentadas com parte de um rinoceronte-lanudo jovem (por lobos adultos)".
A origem da carne de rinoceronte-lanudo é impossível de determinar com precisão — a alcateia de lobos pode ter caçado a cria, encontrado o cadáver ou mesmo aproveitado restos de um local de abate — mas, tendo em conta a idade das crias e o facto de a toca ter colapsado sobre elas, parece pouco provável que tenham sido alimentadas diretamente por humanos, explicou Runge.
O facto de os filhotes estarem a ser criados numa toca e alimentados pela alcateia, de forma semelhante à maneira como os lobos ainda hoje criam as suas crias, reforça a ideia de que as Crias de Tumat eram lobos e não cães, afirmou Wales.
Cães vs. lobos
Traçar um retrato mais abrangente dos lobos da Idade do Gelo é difícil, porque não foram encontradas fontes escritas nem arte rupestre que os representem — por isso, continua a ser incerto como é que as alcateias de lobos interagiam com os humanos da época, disse Runge.
"Temos de tentar reconhecer os nossos próprios preconceitos e ideias feitas com base nas interações atuais entre humanos e lobos", escreveu. "E depois temos de aceitar que nunca vamos conseguir responder a algumas das perguntas".
Os investigadores continuam a tentar perceber como é que os cães domesticados se tornaram companheiros dos humanos. Uma das hipóteses é a de que os lobos viviam perto dos humanos e se alimentavam dos seus restos. Mas o processo de domesticação levaria várias gerações e exigiria que os humanos tolerassem esse comportamento. Outra hipótese é a de que os humanos capturaram e criaram lobos, o que teria isolado alguns desses animais das populações selvagens, dando origem aos primeiros cães.
Testes de ADN anteriores realizados nas crias sugerem que poderiam pertencer a uma população de lobos agora extinta — uma população que acabou por desaparecer e que não serviu de ponte genética para os cães modernos.
"Quando falamos da origem dos cães, estamos a falar do primeiro animal domesticado", afirmou Wales. "E por isso, os cientistas têm de ter provas muito sólidas para fazer afirmações sobre os primeiros cães".
Segundo Wales, todas as provas encontradas pelos autores deste novo estudo são compatíveis com a ideia de que os lobos viviam de forma independente.
"Hoje em dia, as ninhadas são muitas vezes maiores do que duas crias, e é possível que as Crias de Tumat tivessem irmãos que escaparam ao mesmo destino", disse. "Também é possível que existam mais crias escondidas no permafrost ou que se tenham perdido devido à erosão".
Determinar com precisão onde e quando os cães foram domesticados continua a ser, de certa forma, o "Santo Graal" da arqueologia, da biologia evolutiva e da investigação em ADN antigo, afirmou Linus Girdland-Flink, professor de arqueologia biomolecular na Universidade de Aberdeen, na Escócia. Embora a investigação de Girdland-Flink se foque em lobos e cães antigos, não esteve envolvido no novo estudo.
No entanto, identificar se restos antigos como as Crias de Tumat pertencem a cães domesticados primitivos, lobos selvagens, animais que viviam de restos ou animais semi-domesticados não é uma tarefa simples, devido ao registo arqueológico fragmentado, explicou. Nenhuma prova isolada permite chegar a uma resposta definitiva. E torna-se ainda mais difícil fazer comparações quando se trata de crias, já que são os traços em idade adulta que ajudam a distinguir entre lobos selvagens e cães domesticados.
"Em vez disso, temos de reunir diferentes linhas de evidência indireta — arqueológica, morfológica, genética, ecológica — e pensar em como todas se articulam", escreveu Girdland-Flink num e-mail. "Por isso, acolho com muito entusiasmo esta nova reanálise multidisciplinar das Crias de Tumat".
Girdland-Flink não ficou surpreendido com o facto de as crias não estarem associadas ao local de abate de mamutes — uma ausência de evidência que considera significativa. E, combinada com a falta de ligações genéticas fortes a cães domesticados, concorda que as crias devem ter pertencido a uma população de lobos que não vivia com humanos.