Merkel tem uma regra: "Nunca explicar, nunca reclamar". É por isso que construiu uma reputação - e é por isso que também a arruinou aqui e ali

26 nov, 22:41
Passos Coelho e Merkel

Angela Merkel: nome intimidatório a sul e pronunciado com reverência no centro da Europa, reformou-se da vida política ativa mas iniciou uma carreira na vida literária — escreveu “Liberdade”, uma autobiografia acabada de sair. E fala sobre nós, portugueses, e sobre a crise do euro que doeu tanto cá dentro e por aí fora. Doeu por causa dela - ela sabe disso, assume-o, ela que às vezes é odiada e respeitada pelas mesmas pessoas: odiada pela austeridade, respeitada pela maneira como lidou com os refugiados. Ou respeitada e odiada ao mesmo tempo por pessoas que respeitam a austeridade que Merkel impôs e odeiam a maneira como Merkel acolheu os refugiados. Ela que faz revelações sobre Trump ("parecia fascinado por Putin", detestava carros alemães nas ruas de Nova Iorque), sobre Putin ("tem medo de ser maltratado", quis assustar Merkel com um cão) e sobre a Ucrânia. Terá ela culpa da invasão? Não assume

Nasceu Angela Kasner. O apelido Merkel resulta do primeiro casamento, breve, entre 1977 e 1982, com Ulrich Merkel, um físico. Angela Merkel também estudou física. Estudou na Alemanha Oriental. Nasceu do lado do Ocidente, em Hamburgo, mas foi com o pai, um clérigo luterano, para Perleberg, crescendo num jugo de comunismo — e é, também por isso, fluente na língua russa. 

Angela Merkel, na política, esteve sempre do lado do centro-direita. Após décadas no Bundestag e em ministérios — era “a menina”, a protegida de Helmut Kohl —, assumiu a liderança da União Democrata-Cristã (CDU) em 2000. Foi chanceler da Alemanha de 2005 a 2021. Não foram anos fáceis. Merkel atravessou e liderou inúmeras crises: a crise do euro, a crise dos refugiados, a crise da covid, o Brexit também. Nalgumas crises consideram-na conciliadora, quase redentora — a líder do Mundo Livre, assim mesmo, capitulares; a mais poderosa entre mulheres, segundo a revista Forbes. Crises houve em que a rotularam "insensível", "diabo". 

A outrora chanceler, 70 anos feitos em julho, afastou-se da política. Uma sondagem feita pela altura do aniversário atribuía-lhe uma popularidade alta, com 74% dos inquiridos a considerarem os anos de Merkel “anos bastante bons”. Importa referir que são inquiridos da Alemanha. Merkel sabe que a veem de maneira diferente noutros lugares, nomeadamente em Portugal — embora Marcelo Rebelo de Sousa lhe tenha concedido o grau de Grande-Colar da Ordem do Infante D. Henrique “por desbravar novos caminhos de construção de solidariedade, bem-estar e diálogo para o bem dos povos da Europa” —, bem como em Espanha, em Itália ou na Grécia. 

Essa maneira diferente como é vista no sul da Europa é assumida na autobiografia (escrita a quatro mãos com Beate Baumann, assessora política de sempre de Merkel) que agora vê publicada, “Liberdade”. 

Liberdade, “o que é?”, é uma pergunta que, refere Merkel, a “perseguiu durante toda a vida”. “Liberdade significa não parar de aprender, não ter de ficar parada mesmo depois de deixar a política”, respondeu certo dia numa entrevista ao "Deutche Welle". Não parou. E resolveu escrever. Em 688 paginas de política e políticas em retrospetiva, Merkel admite que haverá sempre uma questão: “Saber se deveria simplesmente ter cedido e ter desistido de todas as exigências de duras medidas de austeridade e reformas económicas”. Não desistiu. E a “reputação” de Merkel, em concreto nos países do sul, está “completamente arruinada”, admite a própria na autobiografia. 

Durante os dias da crise do euro, entre 2008 e 2016, a chanceler da Alemanha apertou, por exemplo, as condições de acesso ao Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE) e ao Fundo Europeu de Estabilidade Financeira (FEEF). Fê-lo para “não minar” a confiança na moeda única. Arrependeu-se?

"Se eu tivesse desistido de exigir uma melhor disciplina orçamental e competitividade nos países que necessitam de um resgate, além do facto de nunca ter obtido a aprovação do meu próprio partido [CDU] e da coligação, não teria agido de acordo com as minhas convicções. A alternativa eram garantias sem condições, o que gradualmente nos teria levado todos a assumir a responsabilidade pela dívida da zona euro”, escreve a antiga chanceler.

Daquele período de crise, ao qual dedica um capítulo, orgulha-se da decisão de não ter deixado cair um país, a Grécia, da zona euro — ao contrário do que lhe pedia Wolfgang Schäuble, ministro das Finanças alemão. “Rejeitei. Continuei a trabalhar para a Grécia continuar a ser membro da zona euro. O euro era mais do que apenas uma moeda, simbolizava a irreversibilidade do processo de unificação europeia — e a Grécia fez parte de tudo isto", assegura neste livro. 

O economista Ricardo Paes Mamede, professor do ISCTE, entende que Merkel deixa um legado “que não pode ser visto como positivo”. Isto numa primeira fase. Precisamente a fase que veio a espoletar a crise do euro. “Nessa primeira fase, ela teve um comportamento bastante errático, a par do Presidente francês, François Hollande, uma vez que no início da crise das dívidas soberanas transmitiram mensagens que são equívocas. Isto porque nos dizem que vão ser os privados — que emprestaram aos países do sul — a suportar um eventual incumprimento. Ora, o que aconteceu foi, obviamente, que os privados não suportaram nenhum incumprimento, despesa nenhuma.”

Ricado Paes Mamede diz ainda que Angela Merkel, ao fazer com Hollande tais declarações - “e acusando os privados de serem os corresponsáveis pelos empréstimos” -, iniciou a crise na zona euro. “É ela a criar o pânico.”

Depois, “num segundo momento", Merkel, “acreditando nisso ou sendo-lhe imposto” por Wolfgang Schäuble - “que acreditava no princípio da disciplina como vacina” -, implementaria uma “austeridade brutal”, define Ricardo Paes Mamede, “e simultânea a vários países — trazendo todos para baixo”. “Isso nunca iria acontecer, não existiria, sem Merkel no poder. Foi responsável, fortemente responsável tanto pela crise como pela forma desastrosa como a Europa lidou com essa crise”, acusa o professor do ISCTE. 

No entanto, a chanceler “dos últimos tempos” terá mostrado “um bocadinho de moderação” nas posições que defendia. “Isto em relação a Portugal, por exemplo — com a Grécia foi muito, muito mais implacável. Mas com Portugal, depois de sair a troika, a partir de 2013, 2014 mostrou-se sempre como alguém mais colaborativa”, argumenta Ricardo Paes Mamede. Mas Merkel termina como começou, considera o economista: o balanço da presença de Merkel na Europa e na zona euro “não pode ser nunca positivo”. “Porque não nos podemos esquecer das consequências que deixou, consequências graves, nomeadamente em Portugal.”

De volta à autobiografia. Merkel fala também sobre o Brexit, cujo resultado do referendo a “atormentou” — e diz-nos, sem peias, que é uma “desgraça” para os europeus. Vai além disso: faz mea culpa, escreve que podia “ter feito mais” durante as negociações pré-referendo.

O livro de Merkel não esquece os refugiados, a crise de refugiados de 2015 em diante. Permitir a entrada de mais de um milhão de pessoas pode, por um lado, ter levado à ascensão do partido Alternativa para a Alemanha, de extrema-direita, que usa um discurso populista “sem propor soluções concretas para os problemas existentes”. No entanto, e apesar de crer em “fronteiras externas protegidas”, Merkel sublinha que a imigração é “essencial” à Europa enquanto “mão de obra” e que o continente, e a Alemanha, têm de ser “lugares para onde as pessoas querem ir”.

Ucranianos na NATO em 2008: não, porque nem queriam (e não, porque Putin não iria achar muita graça)

No caso da invasão da Ucrânia pela Rússia e por Putin — que acontece já depois de Merkel ter saído da liderança da Alemanha —, há que lembrar que Volodymyr Zelensky denunciou uma “amizade” entre Moscovo e Berlim devido à dependência alemã do gás russo. Merkel foi acusada de ser uma responsável indireta pela invasão, uma vez que travou a adesão da Ucrânia à NATO em 2008, numa cimeira em Bucareste. 

Na autobiografia, Angela Merkel diz, como já antes o fizera sobre outros temas, que não “pediria desculpa” pelo que fez ou não fez em relação à Ucrânia e à Rússia. 

Numa entrevista (rara desde que saiu da política) à BBC, precisamente a propósito do lançamento da autobiografia, esclareceu que os ucranianos, em 2008, “não apoiavam uma adesão” à NATO, nem estariam “tão bem preparados” como estiveram em 2022, na resposta à invasão. Aliás, diz Merkel, se estivessem na NATO mais cedo, “teríamos um conflito militar ainda mais cedo”. “Era claríssimo que o presidente Vladimir Putin não teria ficado de braços cruzados a assistir à adesão da Ucrânia à NATO”, garante Angela Merkel — que não se alonga quanto à invasão da península ucraniana da Crimeia, anexada ilegalmente por Moscovo em 2014. 

O embaixador Francisco Seixas da Costa, especialista em assuntos internacionais, considera a decisão de travar uma adesão à NATO da Ucrânia “extremamente correta”. “Na altura, sim. Porque, ao aderir, rompia-se definitivamente um equilíbrio de forças que existia, um modus vivendi. Na Europa. E com a Rússia. Com todas as consequência que daí resultariam.”

Ainda segundo Francisco Seixas da Costa, a Rússia tinha a ideia, “e tem hoje a certeza”, de que a Europa e a NATO, “nomeadamente através do Reino Unido”, estariam “a armar” a Ucrânia “lentamente”. “Era uma espécie de entrada ‘soft’ na NATO. Um armamento progressivo, ‘through the back door’. E, como diz a senhora Merkel, a Rússia nunca aceitaria isso. Portanto, a Alemanha, na altura, na cimeira, quando trava essa entrada — e não foi o único país, claro —, tomou uma boa decisão. As adesões à NATO não podem ser um ‘teste’, um ‘deixa cá ver se a Rússia não se chateia com isto’. A diplomacia não funciona desta forma. A senhora Merkel foi consciente. E prudente.”

Analisando o interesse - ou o não interesse - dos ucranianos em aderir à NATO em 2008, o embaixador refere “um aspeto de que se fala pouco e que é realmente importante”: a Ucrânia de 2008 não era a Ucrânia de hoje, de Zelensky. “Ainda havia a Crimeia. Ainda havia o Donbas. E Kherson. Zaporizhzhia… Ou seja, 18 a 20 por centro da população Ucrânia, e que à época votava, que se expressava, era pró-russa. Era outro país, um magma político completamente diferente. Hoje é mais pró-ocidental.” 

Merkel tem medo de cães. Putin sabia disso e trouxe um para este encontro

Angela Merkel, de acordo com a sua primeira biógrafa, Ursula Weidenfeld, rege-se por um princípio político: “Atuo quando posso atuar e não quando quero atuar”. Na autobiografia é perceptível que pretendeu atuar. Na diplomacia, na relação com Vladimir Putin. 

Houve sempre rumor de invasão, segundo Angela Merkel, que recorda uma conversa tida com Putin em que este lhe dissera assim: “Não serás chanceler para sempre. E depois eles [Ucrânia e, à época, Geórgia] vão tornar-se membros da NATO. E eu quero evitar isso”. O mesmo Putin — descrito no livro como alguém “sempre pronto a distribuir punições” — que disse a Merkel que o fim da União Soviética terá sido "a maior catástrofe geopolítica do século XX”. 

Nos capítulos dedicados ao Presidente russo, Angela Merkel revela receio pelo “potencial assustador” do poderio nuclear de Moscovo, daí que todos no Ocidente devem “fazer o que for possível para evitar a utilização destas armas”. Receosa mas não paralisada: “Devemos reconhecer que a Rússia é a maior ou, juntamente com os EUA, uma das duas maiores potências nucleares do mundo. Mas não devemos ficar paralisados pelo medo”, escreve a ex-chanceler. 

Putin é um homem “permanente à espreita”, alguém que por ter “medo de ser maltratado” está “sempre pronto” para atacar. Palavras saídas do punho de Merkel. Merkel que foi atacada. Ou ameaçada. Ou atemorizada. Vladimir Putin pretendia “enviar sinais” ao mundo, diz ela. 

Conheceram-se em 2006. “Ele sabia [por informações partilhadas entre diplomatas russos e alemães] que eu tinha medo de cães — porque em 1995, em Uckermark, fui mordida por um. Em 2006, em Moscovo, respeitou isso, embora não se privasse de uma pequena maldade: trouxe-me um presente especial, um cão de peluche, grande e quando mo deu garantiu que ‘não mordia’”, conta Angela Merkel. Em 2007, durante uma reunião na residência de Putin em Sochi, o Presidente russo soltou a cadela de estimação Koni, um Labrador Retriever, diante de Merkel. "Enquanto Putin e eu posávamos para fotógrafos, sentados nos sofás antes da reunião, tentei ignorar o animal, apesar de vaguear à minha volta. A expressão de Putin dizia claramente, pelo menos para mim, que ele achava a situação divertida. Só queria ver como reage uma pessoa em apuros? Foi uma pequena demonstração de poder? Só pensei em não perder a calma, focar-me nos fotógrafos, ‘vai passar’", conta Angela Merkel. 

Merkel agiu como aprendera, com diplomacia. Ou aristocracia. “Quando terminei a reunião não discuti o assunto com Putin e limitei-me, como faço frequentemente, à regra da aristocracia inglesa: nunca explicar, nunca reclamar.”

Trump, um “fascinado” por ditadores a quem não se pode revelar medo nem dobrar muito — palavra de Papa

De fora da autobiografia da ex-chanceler não podia ficar Trump — conviveram entre 2017 e 2021. Merkel recorda a primeira reunião entre ambos, em 2017, onde Trump lhe fizera “uma série de perguntas”, em particular sobre as origens de Merkel na Alemanha de leste. E sobre Putin. “Parecia [Putin] fasciná-lo. Era fascinado por líderes com tendências autoritárias e ditatoriais. Tive esse impressão ao longo dos anos seguintes”, pode ler-se na autobiografia. 

Naquele primeiro encontro, o “pressentimento” com que ficara de Trump “não foi bom”, admite Merkel, até porque o Presidente norte-americano terá recusado, antes da entrada na Sala Oval, apertar a mão a Merkel diante de jornalistas e fotógrafos - e Merkel ficou quase de mão estendida. Lá dentro, na reunião, Trump fez o que se tornariam “habituais” críticas à Alemanha na questão do acolhimento de refugiados, por exemplo, mas sobretudo por Trump se “irritar” com a presença de automóveis alemães nas ruas de Nova Iorque. A expressão utilizada pelo Presidente foi são uma “pedra no sapato”.

Se Merkel fazia finca-pé, se discordava, esbarrava num Presidente “que agia de forma emocional” e “sem nenhum objetivo de resolver problemas”. “Parece que o seu principal objetivo era fazer com que a pessoa com quem falava se sentisse culpada”, considera Merkel. E cooperar “não seria uma possibilidade” com Donald Trump na Casa Branca, porque a Trump, para triunfar, só importa “o fracasso de todos os outros”. 

Para Angela Merkel, os europeus, os líderes da Europa, “não devem ter medo” de Trump, agora de volta a Washington. A forma de lidar é “ser franco”. Se assim for, se assim o fizerem, "há um certo respeito mútuo, é essa a minha experiência”. 

A aprendizagem para lidar com Trump pode tê-la recebido do Papa Francisco. É uma das histórias curiosas retiradas da autobiografia: Merkel pediu ao Papa “conselhos”, durante uma audiência privada, sobre como gerir as negociações sobre o acordo climático de Paris com Donald Trump — que ameaçava, já Presidente, retirar os EUA do acordo. 

—  Dobre, dobre, dobre, mas tenha cuidado para não quebrar —  é a resposta que recebeu. 

Merkel gostou de ouvir as palavras papais. Trump rasgou o acordo. 

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