Se José soubesse tinha dado a Ventura um amuleto-corno contra o mau-olhado

16 mai, 10:00
Reportagem com o Chega em Odemira e Pegões

REPORTAGEM || O que José não sabe é que André Ventura has a cold — mais ou menos como Frank Sinatra. O que Ventura não sabe é que José não apoia o Chega

Nada corria bem. 

Estavam todos na campanha do Chega à espera de ver um regresso apoteótico e glorificador de Ventura, que tinha acabado de recuperar da indisposição que se dá pelo palavroso diagnóstico “espasmo esofágico”. À hora de começar mais uma arruada, pelas 11:00 de quinta-feira, numa praça bem central de Odemira, nem sinal de Ventura — ou mesmo da cúpula do partido. Ainda só estão por cá as figuras menores. 

Aos jornalistas é-lhes apenas dito que Ventura entrará mais adiante: quando?, ninguém sabe, onde?, ninguém sabe, Ventura fará parte daquela arruada e é só isso que é anunciado, cabendo ao deputado Pedro Pinto o arranque e as primeiras declarações. Aos apoiantes nada se lhes comunica, eram poucos, duas dezenas — o que faz desta arruada a arruada mais pequena entre várias pequenas que houve no Chega, sobretudo as que “madrugam”, pois à tarde a coisa até se faz melhor. 

Pedro Pinto começou por falar aos jornalistas e não foi de novo particularmente bem-sucedido (na quarta-feira dissera que Ventura era “VIP” no Hospital de Faro porque não podia partilhar quarto com ciganos): desta feita afirma que houve uma tentativa de invasão (novamente pela comunidade cigana) ao já referido hospital. A frase é esta: “André Ventura estava num quarto sozinho porque houve pessoas a tentar entrar no Hospital de Faro — podem confirmar isso — e a tentar invadir o hospital”. Durou pouco a narrativa do parlamentar e secretário-geral do Chega: o hospital e a própria PSP trataram de desmentir a existência de qualquer tentativa de invasão

Mas eis porque nada corria bem, além da declaração de Pinto, além da ausência de Ventura e da ausência de multidão. O homem do bombo, que vem já a ribombar para nós desde os idos de Portimão e que se pode considerar um voluntarioso — mas também um profanador de tímpanos sem ouvido absoluto e que não acerta um ritmo —, estava atrasado (e o bombo, até um mais sofrível, concentra — “concentra” de concentrar gente num sítio, embora por vezes até desconcentre o pensamento — e cativa de cativar, de atrair) e quando chega chega trazendo na cabeça um chapéu de mariachi, pedindo mil desculpas. Também não funcionavam bem o microfone e a aparelhagem (que outros vão carregando à vez) da deputada Madalena Cordeiro, animadora de serviço nas cançonetas que versam todas, ou quase, sobre Ventura — o exaustivo "Portugal é nosso", nem que seja dito à capela, sai quase espontâneo. 

Ou seja, foi mais procissão das velas do que arruada com chama. E o trajeto pensado — pensado? —, uma rua sem comércio de maior, sem movimento de maior,  não augurava nada de bom. Faz-se o que se pode, Pedro Pinto fez o que pôde: foi dar o seu olá às Finanças, brevíssimo, cumprimentou quem estava pela entrada, não foi à Segurança Social pejada no momento de imigrantes do Indostão, ignorou também uma loja de vimes, mas como em momentos de privação nada se pode desperdiçar, a arruada volta atrás e entra na loja. Avança mais uns metros, não vai nem a meio agora, mas é já o tempo de baixar que Ventura nos espera algures em Odemira, também ali pelo centro. 

Eram 11:48. Multidão, a possível, e jornalistas ensaiam uma corrida quando ao longe se vislumbra o recuperado Ventura. Aparenta estar recuperado, apesar de frouxa a voz, por enrouquecida ou arrastada, mas está no discurso vívido. Garantia-se recuperado. E garantia que até Marcelo, o Presidente, conhecido hipocondríaco ou apreciador de farmácias, lhe concedeu conselhos, incluindo "tenha juízo". "Disse-me para não vir", revelou Ventura. Mas Ventura veio à mesma. 

A seguir Ventura falou sobre a já desmentida (e inexistente) tentativa de invasão hospitalar cigana. “Puseram-me no hospital numa sala com segurança à porta. Queriam o quê, que os ciganos me matassem, num corredor? O hospital só tinha duas hipóteses: ou ficava com segurança, que foi o que ali aconteceu, ou deixavam matarem-me. Acho que não querem que eu morra à mão de nenhum cigano." Depois percorreu uma avenida de Odemira e a atitude da gente à volta da arruda mudou, agitou-se, animou-se - goste-se ou não se goste do estilo, da ideologia, do método, Ventura é carismático. Um grupo de jovens atravessa a estrada à pressa, fora da passadeira, para conseguir uma selfie e uma das raparigas do grupo quase sofreria um atropelo, valeu que aqui por Odemira, mais a mais à porta da GNR, anda-se a menos velocidade. Ventura apercebe-se, puxa-a para si — nem houve uma triagem habitual dos assessores de comunicação —, riem-se e está emoldurado o momento, que se até tivesse corrido menos bem [bata-se na madeira] podia agora o jornalista puxar da belíssima expressão de Alexandre O’Neill: 

“Emoldorido”. 

Ventura segue pela rua, todos parecem querer vê-lo. Mas não necessariamente falar com ele. Às vezes o homem acena e não há aceno de volta — ato desta arruada como foi de outras. Uma mulher não parecia disposta a responder ao gesticular do líder do Chega. Não era uma recusa pura e dura, parecia antes estranheza. Uma mulher que estava particularmente avermelhada na tez do rosto. Que era particularmente alourada no que do grisalho ainda era louro. E que não se parecia nas roupas a alguém que estava em maio em Odemira, mas antes em dias veraneantes. A mulher lá acaba por aceder, e acena. Ouve-se dela: 

“Who is he?” 

Já em Português com trago (ou travo, ou ambos) de Alentejo, uma outra mulher no café, na esplanada do café, insurge-se com um elemento da comitiva do partido, aquele que da bagageira do automóvel ia distribuindo bandeiras, sacos, canetas, recuerdos de campanha.

— Eu de canetas não preciso. Eu quero é sacos! Que isso dá-me jeito no supermercado…

— Ó senhora, agora não posso, não vê que o homem está a passar mal?!

Ventura era levado já em braços para o interior do seu automóvel. 

A arruada estava já quase finda, às portas da Repsol — que depois da Repsol mais nada havia para ver. Instantes antes um assessor de Ventura dissera “termina aqui, termina aqui”, instantes antecedidos por Ventura a curvar-se, a levar a mão ao diafragma, a empalidecer subitamente, parecia faltar-lhe o ar ou querer tossir, tentou desapertar a gravata, o assessor intervém para tentar terminar a arruada mas Ventura diz “vamos, vamos, vamos continuar, vamos continuar”. Desaperta o nó à gravada, a voz torna-se mais titubeante, mais estridente, “tenho de tirar”, tirar a gravata, “tenho de tirar”, repete várias vezes. Quase tomba. Tiram-no dali.

Alheio do corre-corre de jornalistas em diretos e das especulações do que acontecera a Ventura, alheio dos guardas da GNR em cordões de segurança e das ambulâncias e viaturas médicas estava José, sereno, sentado a poucos metros do espétaculo mediático, sentado a afiar pedaços de corno. “José de Oliveira Paulino: digo o nome completo porque a ninguém nada devo.” 

Montou uma pequena banca — vendendo o que se pode afiar com um tradicional canivete alentejano, nomeadamente amuletos, porque os cornos são mesmo isso —, monta também um chapéu de sol embora lhe dê sombra da árvore, e conta porque o faz: “Da próxima vez que os for eu contar, terei 90 anos. Hoje tenho ainda 89, faço daqui por alguns dias 90 — se lá chegar, é claro. Sou reformado há 23, trabalhei a vida toda a fazer distribuição aqui por Odemira — que sou daqui, sempre fui eu daqui — e fiz tudo o que havia de trabalhos pesados, nem lhe conto nem lhe digo. E cansado de trabalhar já estou eu. Portanto, faço isto para me entreter, da cabecinha. Não é por dinheiro — nem sei quando vendi alguma coisa. A reforma é pequena, mas não tenho do que me queixar. Não tenho, não.” 

Feita a apresentação cantarolada, falamos sobre Ventura. “Eu vi-o por ali descendo, isso vi eu. Só que não me apercebi logo de quem era. Sentiu-se mal, é? Para vir essa ambulância é porque se sentiu. Já se tinha anteontem sentido mal, lá para baixo ou onde foi.”  Foi em Tavira. “Pois foi, pois foi. O homem não está bem. Falta-lhe sabe que mais? Descanso. E está sempre por aí. Tem de parar, pois com certeza que sim, que tem.” 

José é de outra ideologia. Confessa-a sem confessar. “Eu sou do Alentejo, não é? Aí tem. Portanto, não acho nada do Ventura. Acho que ser como é é a missão do homem. É a dele. Minha não.”

— O que é que está a afiar agora? 

— Agora é de bolota. A seguir é de corno. Há corno de vaca, há corno de boi.

— E mais?

— Só de homem é que eu não tenho.

— [Risos] O corno é adereço ou serve para outro fim? 

— É contra o mau-olhado.

— E resulta?

— Resulta. Só na chave tenho uns dois.  E tenho 90 anos. Se soubesse tinha-lhe dado um.

— A mim?!

— Não, a si não. Ao Ventura. Que ele precisa mais que você. 

André Ventura has a cold

Frank Sinatra Has a Cold” não é uma entrevista. É, antes, o retrato de um fantasma que paira sobre todo o século XX. E Gay Talese, que é autor, dá-nos Sinatra apenas como quem tenta segurar fumo com as mãos — e esse fumo tem certa voz, tem poder por certo, tem um terno azul impecável e olhos que ainda sabem como ferir.

Estamos em 1965. Sinatra tem 50 anos, mas carrega em cada silhueta das rugas um peso de império. A imprensa diz que está doente, Sinatra. Não é grave — é uma constipação, apenas. Mas o título do texto é tudo menos algo de inocente: quando Sinatra está somente constipado, a América espirra com ele. Porque ele não é apenas um cantor: é o símbolo, o arquétipo, o totem de uma era que ainda não percebeu que está já a mudar.

Talese, impedido de entrevistar Sinatra, decide fazer exatamente o contrário: encosta-se às paredes da vida de Sinatra e escuta-as. Conversa com os seus guarda-costas, com os amigos de infância, com as mulheres que lhe passaram pelos amores e pelas mágoas. Observa, caminha, espera, muito espera — e escreve como quem filmará, mas com palavras precisas.

É esta uma peça sobre o vazio do poder e a solidão do ídolo. 

Sinatra aparece mais no texto em ausências do que em presenças: está num bar mas não fala; está ainda num estúdio mas recusa-se a cantar; está numa festa, a festa é dele e ainda assim parece a de outro. E é precisamente num jogo de sombras que Talese encontra luz. A constipação de Sinatra torna-se metáfora — da fragilidade do mito, da efemeridade do carisma, da condição humana enredada em lendas.

Não há julgamentos nem hagiografias. Só há precisão clínica do olhar de jornalista, o detalhe quase literário da descrição e uma espécie de silêncio ruidoso que atravessa a entrevista — que não é, que nem é. Como se nós estivéssemos a assistir à lenta exalação de um tempo que se vai. No fim, não se sabe muito mais sobre Sinatra. Mas sabemos quase tudo sobre o que significa ser “Sinatra”.

Ventura não é como um Sinatra. Mas tem uma horda de gente que lhe ouve uma voz quase no espectro da divindade. E como em Sinatra, em Sinatra por Talese, Ventura está não estando. Como na reta de Pegões, na tarde desta quinta-feira. Procurámos na arruada a presença do idolatrado. Arruada que não foi desmarcada porque Ventura nunca pretendeu que assim fosse. 

E momentos antes de a arruada arrancar até surge no Instagram o beneplácito à realização. “É um contratempo e uma dificuldade. Não nos vai mandar abaixo. Continuem...continuem!!! Portugal é muito mais importante, é este país que nos move”, escreveu Ventura.

Entretanto: a arruada devia arrancar da funerária “A Flor do Campo”. Estava para ser dali, às 16:30, para às 17:00 seguir viagem pela reta, era onde se concentrava um grupo de 30 a 40 apoiantes, ainda deserdados de bandeiras e camisolas e de Ventura e do aparelho, mas ao vir o aparelho a arruada mudou de berma na rua. Terá sido casualidade — embora na comunicação política as casualidades sejam cruéis. 

Aguarda-se pela chegada de Pedro Pinto, que será agora, só, o cabeça de cartaz. Ou talvez não. Rita Matias vem primeiro, em carro seu. Ao contrário de outras arruadas, não se lhe entrega o microfone, as cantorias de empolgação, antes o rosto. É o rosto mais comum aos olhos dos apoiantes a seguir a Ventura e isso é perceptível mal atravessa a multidão que crescera entretanto — porque, como aconteceu sempre nesta campanha, nenhuma arruada do Chega se inicia a horas certas — e já vai na casa dos 100. Rita é travada, abraçada, fotografada e a nada se roga. 

Enquanto isso aparecem bombos, novos bombos, tocadores ritmados, nem sinal do mariachi matinal. Enquanto isso o microfone e a aparelhagem de Madalena estão em ponto de começar a cantarolar. Canta-se, grita-se, essencialmente por André Ventura: há um “FORÇA, VENTURA” — que substitui o essencial “SALTA, VENTURA” —, há também um “VENTURA, AMIGO, O CHEGA ESTÁ CONTIGO” — cuja variação é na verdade de índole socialista chilena, do Chile de Allende, “O CHEGA, UNIDO, JAMAIS SERÁ VENCIDO”. A esta hora, toda a presença em Pegões é de gente de todos os cantos, Indostão, asiáticos, latinos da América, que àquela hora saídos do trabalho seguem para casa carregados de sacos dos supermercados. Não há dos apoiantes do Chega qualquer animosidade. Os imigrantes ora ignoram, ora estranham, alguns até filmam o tremendo aparato montado. 

Na primeira intervenção aos jornalistas ali presentes, Pedro Pinto promete “tolerância zero” para com toda e qualquer “imigração ilegal”. Pedro Pinto vai ter mais declarações de intolerância. Antes, fala, claro, sobre Ventura. “Está consciente”, assegura, embora ainda não tenham os dois falado, pelo que todo o Chega — fala plural — está “preocupado”. E irritado. “Com comentadores de futebol que fizeram insinuações” sobre o estado de saúde daquele que está consciente. O Chega revoltado com comentadores de futebol que se metem na política - irónico.

Mas: voltará Ventura?, pergunta-se. “Voltar? Ele quer governar Portugal. Ele será primeiro-ministro — já no domingo. E quer estar no terreno. Ninguém o prende num quarto de hotel”, assegura o número 2. Que também diz: “Somos André Ventura, mas não somos só André Ventura”.

Falando sobre Ventura ainda: e a declaração, já desmentida, sobre a - inexistente - tentativa de invasão do Hospital de Faro para fazer mal ao presidente do partido? Primeiro leva Rui Tavares, “um hipócrita”, segundo Pedro Pinto. “O pequenino Rui Tavares tem ciganos nas turmas dos filhos dele?” De seguida levam os jornalistas: “Toda a gente as viu, há imagens da invasão — mostrem-nas!” Mas se já foi desmentido pelo hospital, pelas autoridades, como se pode “mostrar” algo que nunca existiu? “As administrações são nomeadas por políticos. Eu tenho informação da polícia, não é da cúpula, é de agentes que lá estavam, de que queriam apanhar o André Ventura.” Pedro Pinto insurge-se agora contra todos, jornalistas, comentadores, todos: “Não vos interessa se ele está a morrer. Tenham vergonha na cara”. 

A declaração incendiou um grupo de apoiantes do Chega, que escuta de trás. Ouve-se: “Jornalistas de merda, sanguessugas, víboras!”. A arruada prossegue.

Não há ali em Pegões muito o que se ver. De comércio, sobretudo, que é uma paragem onde os políticos apreciam levar consigo os jornalistas-de-merda-sanguessugas-víboras, sobretudo das televisões, em direto se possível. Portanto a primeira paragem é na oficina. Nada de relevante há, além de cheiro a óleo de motor, para quem gosta, e há peças para venda. Haverá duas paragens mais demoradas, num espaço que promete as melhores bifanas de Pegões inteira e num café à frente, quase seguidos afinal. O aparelho, nomeadamente distrital, trabalhou convenientemente aquelas breves visitas em que Pinto e Matias se repartem em conversas de circunstância, ouvem queixumes, prometem mudar. Há aquilo a que em cinema se chama “repérage”: uma mulher de vestido, e às vezes vão mais do que só ela, entraram previamente, seguem alguns minutos na dianteira, e preparam o terreno. 

O aparelho do Chega distribui panfletos, canetas, t-shirts e bandeiras — do partido e de Portugal. Como o trânsito à volta está lento, porque são quase seis e a arruda trava muita da circulação naquela reta, uma mulher vestida à Chega investe sobre viaturas, troca oferendas partidárias por uma buzinadela. Conseguirá algumas vezes, indiscutivelmente sem esforço. Como sem esforço — embora com alguns pedidos, num gesto de apitar o comboio — buzinam os condutores de pesados, muitos mesmo: parece uma espécie de declaração de voto em mobilidade. A multidão exulta. Não há nos rostos semblante de preocupação. Ventura está, ao que se fiz, “rijo, ele é um rijo”. Cantam de novo e sempre por ele. 

Entretanto, o aparelho na estrada sofre um revés. Primeiro, um jovem, muito jovem, de fato — e que pela longa bainha traz as calças do pai —, pretende oferecer canetas do partido aos GNR. Recusam, sem conversa. O trânsito adensa-se. Sem conversa, indicam à mulher da estrada, a que se encarregou da distribuição de material, que saia já. A assessoria do Chega avança rapidamente, pede desculpa e tira-a. Mas ela não desiste já. Oferece uma bandeira a um casal num já velhinho Opel Corsa Branco. Aceitam de bom grado. Querem um chapéu mas chapéus havia muitos mas já não há. Se um voto vale um chapéu, outro homem da distrital predispõe-se a dar o dele, “está é um pouco suado” — não faz mal — e entrega-o. Recebe de gratidão uma buzinadela. 

Pedro Pinto está, com Rita Matias, a dar conta do recado. É talvez a maior arruada — embora não haja aqui rua propriamente dita, trata-se da EN251 — do partido a par da de Portimão. Tal Ventura faz quando Ventura está, Pedro Pinto acena para longe. Acena para o outro lado da estrada — e até fecha o punho em virilidade, em vitória. Não é fácil de dizer se para um grupo de imigrantes indostânicos - pelo menos uma dezena numa casa -, se para uma seguradora que é ao mesmo tempo uma loja de contabilidade. De nenhum lugar recebe particular recetividade, só olhares e só atenção. Já no final desta arruada - que foi mais longa do que as realizadas por Ventura, quase uma hora de caminhada, passo lento -, os olhares e a atenção descambaram em insultos. 

O ponto final é num parque de estacionamento, à frente de um café que vende kebabs. Um homem de etnia cigana irrompe do interior de garrafa de cerveja numa das mãos, a GNR está já atenta, está próxima mas não intervém, até porque do homem só se ouve “RACISTAS, FASCISTAS”, uma ofensa, ou crítica, que muito se ouviu e Ventura explorou mas à qual este ofendedor ou crítico acrescenta: “VAI TUDO PRESO, VÃO TODOS PRESOS!” — ao melhor jeito de Nicolau Breyner no filme “Os Imortais”. 

Ao primeiro “vai mas’é trabalhar”, escalou o discurso do homem cigano — ao qual se juntará nas injúrias a mulher, na presença do filho menor, que nada diz. “Trabalhar? Vou trabalhar? Eu trabalho mais do que tu, eu tenho 10 carros na Uber! Vê lá é se não te dá é uma trombose como deu ao Ventura!” Talvez acredite aquele homem que Ventura está presente. Porque fala para Ventura. Deseja-lhe o seguinte: “Que morras, que tu morras! Com as pragas dos meus ciganos todos vais morrer! ‘Tás envenenado, ‘TÁS ENVENENADO!, vais morrer de febres!”.

O ambiente escalaria. A GNR já intervém para impedir um rumor de agressões entre o homem cigano e um apoiante do Chega, que avança contra ele — e tem do homem cigano contra-cena igual. Serenados os ânimos, Pedro Pinto resolve cruzar aquele parque de estacionamento repleto de automóveis e da centena dos seus apoiantes e, não dizendo uma só palavra, para à frente do homem e cruza um olhar. Ouve dele: “Podre, tu estás todo podre! Por dentro é que estás!”. Continua sem responder. E vai-se embora. 

Atrás de Pedro Pinto, Nuno Gabriel, deputado, incentiva e incendeia: aponta para o relógio dizendo nada discreto a frase de sempre, que está “na hora”, na hora de ir “mas’é trabalhar”.

Poucas horas depois, o partido de Ventura fez saber isto: “Informamos que, atendendo à situação e às últimas informações médicas, o presidente do Chega não estará mais na campanha e regressará a casa logo que receba alta do Hospital de Setúbal. A agenda manter-se-á inalterada”. 

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