REPORTAGEM || Terceiro dia em que o Chega é confrontado nesta campanha por elementos da comunidade cigana, terceiro dia em que afronta também: “Vagabundos”. Ventura fartou-se - e ouviu uma frase nova: "Ó Ventura, mato-te o gato!". O cão da foto que abre este artigo não tem nada que ver com essa ameaça
Esteve vai-não-vai.
A arruda do Chega em Viana do Castelo devia arrancar pelas 11:00 do Largo de São Domingos, que é também o largo da igreja, e rumar à feira, no Campo da Agonia, poucos metros adiante. Mas à hora de começar cairia uma carga de água tal, e ventania, e trovoada até, que o partido esteve para cancelar o contacto de Ventura com os vianenses — que pelo mau tempo não estavam para ir à rua, quanto mais para arruadas. Meia hora volvida o tempo lá abriria, chovia molha-parvos, raiava um sol tímido e não se cancelou a vinda de Ventura — que aparece só por volta do meio-dia, ou pouco antes disso.
Enquanto vinha e não vinha, era preciso entreter os apoiantes, fazer com que não desmobilizassem, eles que eram na casa de 30. E o largo virou depressa romaria, à minhota, com um grupo de concertinas a atuar numa tenda improvisada — que até tinha voado na altura de maior ventania. Também haveria de se lhes juntar um grupo de bombos, acompanhados de cabeçudos (sem ofensa, é só tradição minhota) e a multidão aderiria. Mas ninguém aderiria tão efusivamente quanto Natércia, Natércia Mouteira, 55 anos, nada e criada em Viana, que mesmo com bandeiras em ambas as mãos, a do Chega e uma nacional, bailava com quem viesse. Vira, virou. Porque dança Natércia quando outros se abrigam nos toldos de café? “Porque sou minhota, minhota de gema. E porque estou animada porque vou conhecer o senhor doutor André Ventura.”
Acredita em Ventura como há muito não acreditava em políticos. “Acredito sim. Nas bandeiras dele, na pessoa dele. Acredito plenamente. E já não votava há anos, há tantos que já nem me lembro, e nas últimas eleições votei no Chega — por causa dele. Voto porque isto está de mais.” Antes de dizer do que fala ao certo, garante que fala como avó. “Não é por mim que falo. Nem pelos meus filhos, que já são crescidos. É pelos meus netos. Estamos a perder os nossos valores, o patriotismo, a bandeira. Eu quero um futuro melhor para os meus netos.” O problema é, diz, a imigração.
“E não me venham cá com a conversa do racista e do xenófoba. Para mim, não há brancos nem há pretos. Há pessoas. O que peço é que se respeite o país que as recebe. E que não me passem à frente.” Lembra dois casos em que isso aconteceu. “Eu tenho um neto autista, que tem seis anos. E não tem direito a nenhum apoio, nenhum subsídio. Nada de nada. As terapias são todas pagas por mim como avó e pagas pelos pais dele. Mas se fosse um imigrante já tinha por certo. Outra: e a minha filha teve uma bebé há cinco meses, precisava de fazer a ecografia das 12 semanas e não conseguiu, mesmo sendo obrigatória, porque deram a vaga a uma imigrante. Isso não está certo. E até agora nas creches a prioridade é para as crianças imigrantes. Olhe, é com todo o respeito — repito: é com todo o respeito — que lhe digo isto: antes de darmos aos outros, temos de cuidar dos nossos.”
Natércia insiste que nada disto que relata é um relato racista ou xenófobo, “até porque o meu marido é emigrante há 30 anos e o meu filho é há 15, os dois na Holanda”. “Mas não é como é aqui. Foram trabalhar. A esforçarem-se para ter um ordenado. A descontarem, com respeito pelas regras. Abdicaram de tanta coisa. E aqui é só chegar e já têm logo acesso ao estudo, aos subsídios, às ajudas. Isto revolta-me. Eu sou católica, eu sou portuguesa, acredito no país, acredito nas pessoas, mas é preciso controlar a imigração descontrolada. Não temos como receber tanta gente e nem sabemos que pessoas são estas, o Governo quer expulsar algumas mas nem sabe onde estarão.”
Em Viana diz que não nota para já grande aumento de imigrantes, ou sequer um perigo associado ao aumento, “mas eu também não costumo sair muito”. “Se estão a trabalhar, tudo muito bem. Senão, é rua. Porque não pode ser chegar e tirar, só tirar. Contribuam.” Mas apesar de tudo, das queixas, nem tudo está mal em Viana.
“A saúde está melhor, muito. Em dezembro eu fui ao hospital com o meu marido e notei logo isso. As urgências estão como em todo o lado, sobrecarregadas, mas vê-se que há um esforço. Algo mudou aqui.” O quê? “Talvez estar o Chega na Câmara.” Mas a Câmara de Viana é socialista. “Pois. Mas tem uma representação lá. Já varia — ou não é? O que eu sei é que algo mudou.”
Ventura está iminente. Percebe-se pela movimentação dos seguranças. Tempo de fazer uma derradeira pergunta a Natércia: porque gosta de André Ventura? “Porque ele é do povo. Fala como nós, do povo. Nós queremos alguém que fale claro. Que diga as coisas como elas são. Os outros escondem-se nos fatos e nos chavões. Ele não.” Bom, Ventura aparece sempre com um fato — e tem os seus chavões próprios. “Pois. Mas ele diz o que a gente sente. O povo. Não é só populismo — é a verdade. E a verdade dói. Ele não usa filtros. Eu também não. E ama o país.” Natércia também. “Amo. O país, o hino. Qualquer dia já nem podemos cantá-lo porque os imigrantes não deixarão. Se vierem para trabalhar, e respeitar as nossas ideias, a gente recebe bem, porque somos pessoas de bem.”
“VENTURA CHEGOU E O SISTEMA ABALOU.” Ventura chegou e agora a cantiga é a adaptação, ou provocação, do hino da AD. “LUÍS, VAI LÁ TRABALHAR PARA O VENTURA PODER GOVERNAR.” Antes de falar aos apoiantes, Ventura fala primeiro aos jornalistas — é o habitual, que um minuto em direto vale mais do que um “olá, ‘tá boa”. Questionado sobre o que virá a seguir, o contacto, e questionado sobre a razão de nunca por nunca se alongar nas conversas, partilhar medidas, ideias, Ventura responde: “São contactos segundo a segundo e num segundo não se explica uma proposta. Só que as pessoas sabem quais é que são as nossas propostas”.
Sabendo, o líder do Chega, “a alternativa que faz falta”, espera nas próximas eleições “subir o resultado”. Para isso diz contar com “um grande apoio popular”, a começar já em Viana, “um distrito difícil” — onde o partido só teve um deputado eleito, Eduardo Teixeira, que é de novo cabeça de lista e desfila com Ventura pela rua fora, o mesmo (ou parte) percurso que se faz na procissão em honra de Nossa Senhora da Agonia. “Espero que não seja o nosso [um percurso agonizante] no dia 18 de maio”, gracejou o candidato a primeiro-ministro.
Ventura teve pouca recetividade (até por comparação com Braga ou Porto, esta semana), apesar do ruído que causa à passagem — não Ventura; as concertinas e os quatro bombos, sempre com duas crianças vestidas à cabeçudo na frente e, atrás, mais atrás, também uma grande bandeira com uma imagem de D. Afonso Henriques sobre um fundo, em cruz, branco e azul, que alguns grupos nacionalistas ou identitários na Europa já utilizam (embora sem a cara do fundador da nacionalidade) há muito como símbolo de defesa da civilização europeia e até da identidade cristã europeia.
Voltando à arruada de Ventura assim não muito concorrida: na feira terá sorte idêntica. A maioria dos feirantes já arrumou as bancas e os toldos, a chuvada e o vendaval afastou a clientela. À chegada, um pequeno grupo de etnia cigana, na casa das duas dezenas, insulta a arruada, mas é ao longe — e “longe” é do outro lado da rotunda. Gritam sobretudo “racistas, fascistas” — depois de Aveiro e de Braga, é o terceiro dia seguido em que o presidente do partido é esperado e criticado pela comunidade cigana das terras que visita. A arruada segue feira adentro.
O passo é acelerado porque ninguém (ou quase) pretende por ali fotografias ou breves cumprimentos de ocasião, a feira é pelo meio-dia uma feira vazia. Uma feirante vai discreta à procura de Ventura. Desiste porque vai veloz esta arruada, ou feirada, e a banca de “Maria” não se arruma sozinha. Não quer ser identificada na entrevista, sugere que se lhe chame “simplesmente Maria”.
— Como é que foi o seu dia hoje aqui?
— Péssimo. Péssimo…
— Então?
— Muito mau tempo. E poucos clientes. Está muito fraco.
— Vendeu alguma coisa ou foi quase nada?
— Quase nada. Vendi duas peças: 15 euros. Só para vir de Braga gastei 30. E paguei o terrado: suba para 60.
— Portanto deu prejuízo.
— Tudo dá. Já nada funciona.
“Maria” diz-nos já que não votará em Ventura, “provavelmente nem em ninguém”. Mas têm uma queixa comum, ou um alvo: os ciganos. “Eu não vendo nada mas eles agora vendem bem. Online, nos diretos do Facebook. Nem coletados estão. Nós fazemos tudo direitinho. Vendo na feira há 40 anos e nunca vi isto tão ruim. As feiras agora também é só ‘marroquinos’ e as câmaras não fazem nada. Está tudo abortado. Está tudo parado.”
De imigrantes não falará mais, mas dos ciganos irá sim. “Eles nas feiras são os doutores e nós os escravos. Não respeitam ninguém. Eles é que mandam em nós. Pensam que estão acima de tudo. Vêm para aqui, não pagam nada — e quem manda tem medo deles.” Medo? “De lhes vir cobrar o valor do terrado. Às vezes vêm vender e nem o lugar é deles. Ninguém quer saber dos feirantes para nada. Os políticos não querem saber das feiras.” Mas Ventura está aqui, nesta feira. Outros virão também. “Pois, mas é só agora. É como o outro, o Paulinho das Feiras. Já ninguém acredita. Nos políticos. Já são 50 anos disto, vem um, vem outro, mudam mas nada mudou. O Ventura? Claro que não vai fazer nada do que promete. Mas se ao menos tirasse daqui os imigrantes e acabasse com os rendimentos. Os dos ciganos. Olhe: já fazia uma coisa boa. Mas eu não acredito.”
Ventura está de saída da feira.
Resolve a arruada sair precisamente pelo local onde estão, já desde o início, os homens ciganos que antes lhes chamaram racistas e fascistas. Ao contrário do que se vira em Braga, o dispositivo policial é próximo, numeroso — fardados e à “paisana”. Talvez por isso se tenha registado uma escalada da troca de farpas: é o chamado “agarrem-me que eu vou-me a ele”, mas sabendo de antemão que a estrada (e polícia) os separava.
Aos gritos de “fascista” e “racista” — e uma novidade aqui em Viana: “Ó Ventura, mato-te o gato!” —, os do Chega respondiam com atoardas como “vagabundos”, “vão é para a vossa terra” — e um clássico que nunca pode faltar, “vão mas é trabalhar, pá”. A comitiva do partido haveria de recolher logo à beira da estrada, Ventura em carro próprio, a maioria (os deputados sobretudo, como Rita Matias ou Pedro Pinto) de carrinha, mas não sem antes o líder se indignar com o que considera “perseguição”.
“Vêm para aqui a toda a hora. Vão-se embora, vão é trabalhar. Não andem só atrás de mim por todo o país. Já chega. Vão trabalhar.” E partiu.
Os homens ciganos voltam a seguir à feira. Para arrumar.