CRÓNICA || Não é líder, é ídolo. Não é eleito, é erguido. Os seus fiéis — sim, fiéis — não o seguem por um programa, seguem-no por crença. Numa liturgia feita de raiva e igualmente de redenção, o partido transforma-se como que numa seita. E a política, essa, ajoelha-se
O partido de André — o partido é ele e na primeira pessoa — é, para muitos, mais do que um partido político: é um exercício de fé com fé. Fé que não hesita, que não treme, que não pensa. Uma fé que encontra consolo no verbo-forte que é só verbo-de-encher, no murro na mesa, na raiva canalizada ao outro — tanta vez sem rosto.
É aqui que este partido se revela seita; não temamos as palavras: seita, uma espécie de seita. Não tanto pela ideologia, mas até mais pela liturgia. A forma como André é seguido, ouvido, reproduzido cegamente e quase rezado de olhos fechados aparece-nos como se cada frase fosse dogma, cada aparição, um sermão.
Há uma estética ali da devoção, um fervor de comício que ecoa como uma missa, onde o púlpito se confunde com o palanque e o povo com a congregação. André não lidera apenas uma multidão — pastoreia. E faz isso com um domínio instintivo do medo e também da revolta. Sabe onde tocar, onde acender, onde incendiar mais do que acender. E faz isso com eficácia.
Porque o partido não pede uma análise, pede entrega. Não quer nuances, quer certezas. Não discute, sentencia.
É, por isso, um espaço onde a dúvida é pecado e o dissenso, heresia. Quem se afasta do partido, trai. Quem questiona, é rotulado “sistema”. A coerência ideológica pouco importa aqui — importa o efeito, o ruído, o aplauso. Importa incendiar hoje e logo desdizer amanhã, desde que haja um fogo e o fogo continue a arder.
André é, ao mesmo tempo, profeta e produto, o senhor de um culto que se alimenta do ressentimento e que oferece, em troca, pertença. É esta a "seita" de André: um lugar onde a política é reduzida a espetáculo, a democracia a trincheira e o país a mero território de batalha onde só há nós e eles e nunca todos. André não — nunca — nos convida à reflexão; convida a guerrear. E fá-lo com um sorriso, como quem nos vende salvação enlatada.
A multidão precisa dos instantes de autoridade de André. Legitima-se nele. Sempre houve multidões guiadas como rebanhos, manejadas como cordéis. Sempre houve um povo e o povo vai aos seus templos: escolhe-os.
Recordo-me, ao escrever esta crónica pós-eleitoral, de uma seita de outra era — e não pretendendo aqui a comparação, porque seria indevida, populista, extrema; mas serve esta memória como exercício do extremismo no seguidismo, dos limites da devoção.
Nos anos 50 do outro século de tanta insânia, de homens insanos — homens-homens, nunca por nunca mulheres —, o "Templo do Povo" não era um templo. Nem o sol ali entrava com a liberdade que se espera da luz. Havia cortinas pesadas, pesadelos repetidos e uma liturgia do silêncio que doía mais do que os gritos. Lá dentro, o tempo obedecia a outra gravidade — a que é das vontades de um homem, ungido pela própria certeza de ser o escolhido.
Falava-se de energia cósmica, de reencarnação, de purificação. Mas o que se praticava era o culto do controlo: sobre os corpos, sobre os medos, sobre as memórias que com o tempo iam deixando de ser de quem as viveu.
O Templo prometia salvação. Mas era cobrada em prestações de obediência. Homens e mulheres renunciavam à família, ao passado, ao mundo lá fora. Entregavam-se de corpo inteiro a um líder que se dizia canal de sabedoria ancestral mas que vivia das mesadas dos discípulos.
Os relatos dos que voltaram eram vagos, hesitantes, como se quem os contasse ainda de certa forma se sentisse culpado por ter acreditado. São relatos que, lidos agora, hoje, tanto tempo após, convergem: isolamento, manipulação emocional, privação forçada, castigos simbólicos, excitação mascarada de transcendência espiritual e o inimigo, nomeado mas invisível.
Não era uma seita como as que há nos filmes. Era pior — porque era banal, doméstica, feita de pequenos gestos que, dia após dia, minavam, lhes minavam o pensamento crítico. A lavagem cerebral não acontecia com rituais de fogo mas com olhares e esgares e silêncios.
E quem tentava sair levava consigo um vazio difícil de nomear. Um luto. O luto por uma vida que nunca chega verdadeiramente a ser: assim é em seitas.
Hoje, esse "Templo do Povo" está já dissolvido — ao menos na forma visível. Mas, como todas as seitas, talvez só tenha mudado de pele. O verdadeiro templo, afinal, nunca foi o espaço desse templo. Foi, sim, a fé cega num homem que prometia luz mas vendia uma sombra.
Do Templo, um nome volta sempre, como um eco que não aceita morrer: Jim Jones. O reverendo da mortandade. O profeta da paranoia. O arquiteto de Jonestown. É ele para nós o espelho mais temido — porque lembra que basta um homem eloquente, uma comunidade ferida, e logo pronta a ferir, e um discurso de salvação para se reconstituir o inferno em nome do paraíso.
Bem-vindos ao "Templo do Povo": façam o favor de sair.
Tiago Palma, repórter da CNN, acompanhou diariamente a campanha eleitoral do Chega