REPORTAGEM || André Ventura, o homem que aparece nos cartazes todos, nas televisões, nos telemóveis, faltou às arruadas do Chega durante um dia inteiro — aconteceu esta quarta-feira. Consequência: o partido de um homem só transformou-se no partido de um homem ausente
Foi um dia estranho.
Mesmo quando Ventura está presente, o Chega é tendencialmente repetitivo, tendencialmente previsível e sem a máquina partidária de outros para tentar criar a ilusão de que há algo novo todos os dias. Mas sem ele o assunto fica reduzido à ausência do one man show, do one party man.
Por falar de partido: o Chega fez saber pelo meio-dia de quarta-feira que Ventura não marcaria presença na arruada da tarde em Vila Nova de Milfontes, distrito de Beja — embora uma Beja do litoral —, “estando em processo de recuperação e de repouso por indicação médica”. E que a arruada das 11:00 (também por Milfontes) estava pois sem efeito. Nem todos sabiam do cancelamento.
No centro de Milfontes, já perto da praia, há jovens apoiantes de Ventura que aguardam pelo líder — eles não são do Chega, são sim de André. Ainda não é meio-dia, o que pelos atrasos repetidos de Ventura seria mais ou menos a hora de aparecer numa arruada. Um deles aproxima-se da carrinha que tem um “CNN” colado: “Senhor, o senhor desculpe: ele está onde? Vem hoje aqui, não?!”. Não vem, não. “Por causa de terça-feira, é? Lá em Tavira.” É. Da indisposição, um palavroso “refluxo gastroesofágico” de Ventura. Hoje só vem o partido, não vem “ele”. “Epá, que azar isso. Nós vínhamos ver, vê-lo. E amanhã ‘tá onde ele?” Quinta-feira está por Odemira, por esta mesma hora. “Odemira?! Eu estudo em Odemira! Então vamos amanhã — prontos.”
Foi Viegas, ou Filipe, à esquerda na fotografia, quem primeiro se aproximou da carrinha da CNN. Tem 20 anos e vem à boleia com Perdigão, ou Pedro, ou ainda “Piti” — de 21 anos —, que se aproxima posteriormente e falará até primeiro — porque, segundo Viegas, “ele sabe mais disso, da política e assim”. Fala pois “Piti”: “Acordei eu de propósito por causa dele, do Ventura, nós somos daqui da zona, vínhamos para encontrá-lo”. Não vão. “Porque gosto dele? Do Ventura? Porque acho que hoje em dia os outros partidos gostam muito de distorcer a mensagem do Ventura. E a mensagem não tem nada para distorcer, ele aponta para o problema principal de Vila Nova, que é o excesso de imigrantes. É ridículo, só ridículo. A nossa taxa de criminalidade até aumentou por causa deles. Há homicídios, e outros crimes, que antes não aconteciam. Basta andar na rua principal pela noite — é tudo deles aí e o que não é vai ser. Já ninguém se sente seguro aqui. Especialmente as mulheres.”
Piti não está inseguro. “Eu não. Agora tenho carro e carta, por isso nem ando muito a pé. Mas quem não tem o seu transporte é complicado.” O que Piti diz não ter, também, é uma casa sua — e, novamente, culpa a imigração em Milfontes. “Eu já trabalho. Na parte comercial dos campos de padel, no que é gestão. Já devia pensar em ter casa. Mas não dá aqui porque eles vêm para cá e inflacionam as casas todas.”
“Piti" fala simples e direto. Como diz falar Ventura, aliás. É isso que os parece aproximar. “Porque fala simples e direto, sim, sim. Numa linguagem que todos vão perceber. Não complica. E fala do que os outros partidos evitam. Eu sempre me senti, quando era mais jovem, mais novo, inseguro com ciganos aqui. Com ciganos, mas os que nunca trabalham, atenção. E ele fala dos ciganos. Diz que vai resolver esse problema.”
— Mas acreditas que resolverá o que quer que seja, ou é só para tu te identificares?
— A política é só falar, falar, falar: sim. Mas, sinceramente, não temos uma alternativa…
— Não tens?
— PSD, PS: é tudo o mesmo. E se o Ventura não cumprir, vai abaixo como foram os outros.
Viegas não vem para repetir, vem para dizer mais. Mora em Milfontes, estuda em Odemira, e o problema maior que vê é o desemprego. “Estudo desporto agora. E sei que vai ser difícil arranjar emprego. Aqui em volta é preciso ter cunhas para tudo; se tens, entras, se não tens não entras — sobretudo nas fábricas. Isso foi sempre assim. Mas isto por aqui mudou muito.” O discurso vira-se para os imigrantes.
“Antes havia mais gente na rua, mais segurança. Agora há é medo. Esta vila mudou. Sobretudo para as mulheres. Eu tenho uma irmã, com 13 anos. A casa da minha avó fica nem a cinco minutos da minha. De dia ela vai para lá sozinha, de noite tem medo. Por causa dos imigrantes, que abordam, que perseguem as mulheres, as nossas mulheres. Eu só quero uma coisa do Ventura: que tire daqui os indianos. Isto já é tudo dos indianos. Milfontes é indianos.” E para isso é que vai votar. Viegas sempre votou. E sempre o fez no homem que vinha ver mas não viu. “Porque voto nele? Porque me diz o que quero ouvir. Eu acredito porque eu preciso de acreditar. Porque eu preciso que alguém faça alguma coisa. Porque eu tenho saudades do passado, do que a vila era. Sinto-me estranho em casa.”
Fast forward. Agora são já 17:00, um pequeno grupo de apoiantes, entre 30 a 40, aguarda pelo começo da arruada sem Ventura, mas enquanto vem e não vem Pedro Pinto — cabe ao líder parlamentar do Chega assumir a dianteira —, grita-se por “Ventura, Ventura, Ventura”, é um clamor espontâneo, “‘tá aqui a tua gente”. Quando Pedro Pinto chega, com atraso mas menor, ainda assim, do que os atrasos habituais do presidente do partido, o pequeno grupo fez-se grande já, são quase uma centena, ocupam um passeio estreito, ainda uma parte da estrada, dão uma motivação ao número 2 — “e salta, Pedro, e salta, Pedro, allez, alezz” — e Pedro Pinto, não sendo tão espontâneo (no trato até, no aproveitamento dos instantes) quanto Ventura, lá responde e saltará. Não muito.
Pedro Pinto faz de tudo para ser Ventura. Cumprimenta e acena e acena e cumprimenta — e sorri, sorri muito. Só que sem o rosto do homem que aparece nos cartazes todos, nas televisões, nos telemóveis, as pessoas não se chegam tão facilmente. Então Pedro Pinto, imbuído, não de um espírito mas de uma indicação comunicacional, irrompe por dois cafés, as televisões vão atrás dele, há um contacto breve, há um contacto nacional, há na mensagem subliminar um Portugal resistente à "invasão" de comércio indostânico em Milfontes.
Pedro Pinto começa a falar. Para dizer pouco como Ventura dissera quase sempre na campanha eleitoral. Que aqui por Vila Nova de Milfontes existe “um problema com imigrantes”, embora não se saiba ao todo “quantos são eles todos”, e que é “preciso combater” isso com política “de tolerância zero”.
O que é que também disse Pedro Pinto? Que André Ventura retoma esta quinta-feira a campanha, que foi uma noite “difícil”. Que André Ventura queria que continuassem a campanha mesmo sem ele. Que André Ventura teve no hospital um tratamento VIP porque alguém tão mediático como Ventura não pode ficar num sítio, numa cama, “onde ao lado está uma pessoa de etnia cigana”. E depois de quase só mencionar Ventura, criticando os “fraquinhos” líderes do PS e do PSD, que parecem estar “completamente fora” da campanha eleitoral, Pedro Pinto diz assim: “O Chega, ao contrário do que muitos querem fazer passar, não é só o rosto do André”.
Pelas 17:50, ao fim de meia hora, a arruada está já para terminar. Rita Matias é uma espécie de animadora sócio-cultural, sempre de microfone empunhado a ecoar na coluna, a incitar e a divertir. Dos outros ouve-se “é deputado — é deputado?!”, de Rita ouve-se “é a Rita”, ou “é a Ritinha”. No fim de ela pedir vivas — a Ventura, a Pedro Pinto, ao Chega —, no final alguém grita do fundo “E VIVA À RITA!”. Rita parece ficar sem jeito. Mas dão-lhe esse viva. E canta-se o hino. À porta da Meo e do BPI. Que sendo duas marcas portuguesas, uma raridade na avenida principal de Milfontes, são até franceses e espanhóis os donos.
Jorge teve fervor quando entoou “A Portuguesa”. Está emocionado, Jorge, ele que é Camacho de apelido, tem 74 anos, um madeirense no Algarve há anos mas que viveu durante quase 50 no Reino Unido, como emigrante. A emoção resulta também da “descarga”. Estava em Tavira no jantar com André Ventura, no jantar da indisposição do presidente. “Seis metros, a seis metros. Eu vi tudo. Vivi momentos dramáticos. Dramáticos! Senti uma tão grande tristeza. E preocupação também grande. A reação a cair deixou-me absolutamente chocado. E ainda não passou.” Mas olhe que não ele não tem nada de grave, Jorge. “Pois. Mas ainda estou preocupado com o que poderá vir a acontecer.”
Jorge idolatra André. “Porque ele tem ideias claras sobre como governar este nosso país. Porque há muita irregularidade e há muita bandidagem metida neste sistema. Porque vim sem ele? Vim por ele. O meu dever moral é aqui apoiar os outros dirigentes dele que são mais desconhecidos. Ajudá-los a fazer ver que há coisas que precisam de ser feitas neste nosso país. E imediatamente.” As “coisas” são, afinal, uma coisa só: imigração.
“Os problemas em Portugal têm tudo, tudo que ver com a imigração. Para mim, o principal problema de Portugal é a imigração. Ponto, ponto final. É a grande bandalheira, a maior bandalheira. Eu vivi em Inglaterra. E a nossa foi uma imigração ordenada. Não fomos para matar ninguém. Nem roubar ninguém. Nem condenar o sistema. Nem mudar o sistema dos britânicos. Fomos — e ainda somos — os imigrantes-modelo na Grã-Bretanha. Isto aqui não pode ser. As pessoas estão a dar-se conta de que o país é nosso. Portugal é dos portugueses. E quem manda aqui, cá dentro, não são os monhés, não são os pretos.” Alto, alto. É preciso alertar: essa linguagem (além das referência que aqui não transcrevemos à morte de Odair Moniz, por serem tão desnecessárias quanto desapropriadas) está a ser racista e xenófoba.
“Racismo e xenofobia são palavras, palavras tontas. Um patriota ou um nacionalista não é um nazi nem é um fascista. Nós estamos aqui para cuidar do que é nosso, do nosso país, do nosso sistema. Isto não é uma questão de racismo. Nós não odiamos ninguém só por ser de uma cor diferente. Mas a verdade é que os nossos antepassados sofreram, morreram, para defender e para constituir esta pátria nossa. Que se chama o quê? Portugal. Não se chama Paquistão.”