REPORTAGEM || O Chega foi recebido em Braga pela comunidade cigana da cidade e o ambiente foi acalorado, com provocações de parte a parte. E muito se cuspiu, não rimas — porque no rap rimar é “cuspir”, ou também é —, mas cuspo-cuspo de verdade nas costas de Ventura. O líder do Chega teve uma rua cheia, mais que no dia anterior. E gritou: “Não temos medo!” (mas não quer que isto se repita)
Não era longa esta arruada, começava no Arco da Porta Nova e terminava um pouco mais à frente, na Praça Conde de Agrolongo, ou Campo da Vinha — que em Braga não se conhece “agrolongo” nenhuma.
Devia arrancar pelas 11:00, mas Ventura não é de chegar a horas, chega às meias horas tarde, tem sido assim na campanha e desta vez mais se atrasaria. Ou atrasaram-no. O ambiente ficou rapidamente tenso. Contestatário. Provocatório. Uma dezena de homens de etnia cigana, de Braga, esperava a chegada do líder do Chega. Estava com eles uma criança, que como eles se mostrava acesa tanto nos insultos — “racistas, fascistas” — como nos gestos que fazia, sobretudo com as mãos, piretes e punhos, e agitando ou desfilando um par de bandeiras: uma que representa a comunidade, outra referente a movimentos antifascistas. O grupo haveria de chegar às 20 pessoas, com mulheres e até um bebé ainda em idade de colo. Não desarmam.
A polícia está próxima, numa curva logo acima, há também um número de polícias municipais talvez insignificante, quatro, não impedindo que este grupo que espera por André Ventura corte, volta e meia, a circulação de automóveis, parando sobre a passadeira. Os apoiantes do Chega, na casa da meia centena àquela hora — haverão de se lhes juntar mais durante a arruada —, mantém-se num pequeno largo, mas não sem reagir. Reagem ao som da fanfarra, bombos e gaita de foles — que já vem de outras arruadas e que nunca por nunca param de tocar. E reagem às ofensas com ofensas: “ide trabalhar, sua cambada de parasitas”, “PORTUGAL É NOSSO, PORTUGAL É NOSSO”, “que gentalha do caralho esta”, “vão mas é para a vossa terra”, “o Ventura trata de vocês”. Os ciganos respondem com “viva o 25 de Abril, viva a Liberdade”, gritam até pelo PS, embora alguns referiam que votam em Montenegro, “que é um grande homem” — porque sempre rejeitou alianças com Ventura e o Chega.
Há cada vez mais picardias (mas nunca um confronto, ou rumor de confronto) entre os lados, um homem que se identifica como rapper, é “Beto Bethoven”, cospe na direção de uma mulher já idosa, de bandeira do Chega em punho, e roga-lhe: “Baia, me renego nos teus mortos, fascista, sua fascista!” E a mulher responde-lhe somente: “Respeita-me, que tenho idade para ser tua mãe”. Beto recolhe ao outro lado da passadeira.
Vendo que esta escalada de provocações e ofensas não parece cessar por agora, o deputado Filipe Melo, cabeça de lista do Chega aqui por Braga, parte em direção a Beto, rodeado por alguma segurança do partido. E a Célio Maia, outro dos líderes da etnia. Pretende conversar, Melo. Rapidamente percebe que não estão ali para conversas. “Eu conheço-te. E até me admira que um homem como tu, sério, esteja num partido que é mentiroso e sem educação”, diz Célio. Beto é mais agressivo: “Vai-te embora, fascista!”. Melo vai sair da passadeira onde se encontraram. Não sem antes dizer que o grupo se pode manifestar, “não tem é o direito de ofender”. Quando já não há deputado, Célio diz que estão a manifestar-se porque o partido “utiliza os ciganos como uma arma de arremesso”. De novo, Beto é menos moderado no discurso. Ventura pode até estar “a incentivar o ódio”, mas isso só trará “uma guerra civil para Portugal”, porque se todos os ciganos se unirem “não é uma coisa boa para ele”. Ainda assim, garante: “Somos da paz”.
A fanfarra desloca-se. Os apoiantes seguem-na.
Ventura terá chegado, talvez por outra rua. Os jornalistas, alguns, vão atrás dela, da fanfarra. Mas era só para distração. Ventura chegará por onde se esperava, pela estrada principal — que graças ao momento de distração ficou bem mais desimpedida —, de carro. O grupo de etnia cigana avança em direção ao automóvel, esmurra-o, cospe-o, muito, repetidamente, Ventura sai, olha para eles, breve, desafiador ou confiante, volta-se e segue, cospem-no — e a quem mais estiver na direção —, já vai o deputado de costas para os homens e mulheres de etnia cigana. Rebentam-se ali duas tochas, uma de fumo branco, outra que é de azul-Chega, o aparelho do partido e os seguranças chutam-nas para longe — ouve-se que “o segurança do gajo é preto!” —, Ventura já fala aos jornalistas.
Diz ele que os ciganos que ali vieram “têm é de trabalhar”, que não podem andar pelo país “a impedir o Chega de fazer a sua campanha”, sempre a tentar “calar, atacar e ofender”. Suspeita ainda Ventura, embora diga que não sabe, que não tem certeza, que aqueles ciganos de Braga “foram plantados, estão organizados, talvez por algum partido de esquerda”. Termina, até para que possa começar a arruada, desejando “que isto não aconteça novamente”. “Para bem de todos, da segurança de todos. Nós estamos a fazer a nossa parte aqui também. Agora, como devem imaginar, não posso dizer a toda a comunidade cigana para que me deixe em paz.”
O Chega parte rumo ao Campo da Vinha. Os ciganos separam-se, cada um para seu lado, e não os seguem.
Ventura parece vitorioso. Dá sinal disso na entrada de uma loja de gomas, onde há uma estátua do Super-Homem. Pára lá, posa como culturista, a mostrar os bíceps. A multidão ri-se. Há quem o apupe, à passagem, da janela, mas há também muito quem vá a ele para incentivar, tirar a foto da praxe, o aperto de mão, o beijinho, tudo cronometrado, tudo preparado mas não coreografado — a segurança e a assessoria, e às vezes Rita Matias ou algum outro deputado, é que dão a ordem para que se chegue quem vem de fora. Um homem vem de longe, a tentar furar de algum jeito, é cego, traz bengala extensível e é amparado por uma mulher, que lhe dá um braço. Já quase na reta da meta, quase na praça, consegue alcançar Ventura, cumprimentam-se, trocam breves palavras, e recebe um chapéu e t-shirt, que logo trata de colocar. O homem que furou é Manuel, “Manuel António Gonçalves Batista”, é de Braga mas longe desta Braga-centro, tem 59 anos e para ali estar apanhou vários autocarros. Quem o amparou na arruada foi Natália Veloso, que se nos apresenta como “a assistente pessoal do senhor Manuel”. A pergunta é já habitual nesta campanha: o que disse ele a Ventura?
“Pedi-lhe que me ajudasse, que ajudasse as pessoas cegas — e as pessoas que precisam.” A Manuel falta ajuda, diz que tem uma pequena pensão, “de 100 contos”, que feitas as contas são 500 euros, e que isso é “muito pouco”. “Eu trabalhei em várias empresas, algumas nem sequer descontavam quando via. Mas tenho pouco de descontos porque nem todas descontavam. Tenho 29 anos de descontos. Mas se fosse tudo direitinho tinha mais de 40. As empresas não queriam saber, eu também não percebia. E agora há estrangeiros que nunca aqui fizeram desconto nenhum e recebem mais do que eu. Não pode ser. É por isso que preciso do Ventura.”
Questiono António sobre o que a um cego é mais urgente mudar. “Não é só para mim. É para os cegos, para os idosos, para os vulneráveis. Há gente a viver nas ruas. Há gente que tem uma casa, mas não tem água, não tem luz, não tem nada. Já nem ao café vão porque não têm como pagar café. Mas falando por mim, que sou cego: há muito pouca acessibilidade, há muito pouca sinalização — táctil, sonora —, os passeios são tortos, não são rebaixados onde deviam ser, já caí muita vez e nem à placa para o carro — que é do meu filho, é um carro velho — tenho direito na rua de São Pedro. Estou à espera da placa há já um ano. Um ano e seis meses.”
Acredita que Ventura “vai mudar as leis, não sei”. Acredita que Ventura vai resolver. “Acredito porque ele diz que vai mudar o país todo. E eu quero muito. Há tanta coisa que está mal. Ele também fala muito das pessoas com deficiência. Eu acredito nele.” Manuel pode estar aqui equivocado. Não por acreditar — isso é algo de pessoal. Mas sim quanto ao que o Chega diz — e isso é factual.
Vejamos: no programa eleitoral do Chega, para as legislativas de 2025, há referências à deficiência, sim. Há quando se refere a “manutenção deficiente” das infraestruturas, falando de mobilidade e de transportes. Há quando se refere a “deficiências nas instalações e nos automóveis” dos bombeiros em Portugal. Há quando se refere a “deficiência estrutural” na Saúde. No programa há uma e uma só nota à existência de cidadãos portadores de deficiência. Quando se diz que o Chega fez uma proposta, rejeitada, de alteração ao Orçamento do Estado, proposta onde se propunha introduzir “um 5º escalão do abono de família quando estejam em causa as crianças portadoras de deficiência”.
Mas falemos de discurso e não só dos programas políticos. Em fevereiro, o deputado João Tilly, professor de profissão antes de ser eleito deputado à Assembleia, defendeu no Parlamento isto: que nas escolas a educação especial não devia ser “mais importante” do que o ensino para os alunos que Tilly diz serem “os normais”. As palavras foram as seguintes: “Centenas de professores de todas as áreas foram a correr tirar a especialização [em ensino especial] – acho que era nove meses na altura – para arranjar emprego nas escolas, porque havia sempre emprego garantido nas escolas para educação especial. Sempre. O ensino especial é importante, mas o ensino geral é muito mais importante. E esse está esquecido e ignorado. Afinal, somos um país de alunos com deficiência ou somos um país de alunos normais?”
Também é recente a polémica com Ana Sofia Antunes. A bancada do Chega no Parlamento foi acusada de insultar a deputada socialista, com deficiência visual. De viva voz, a deputada Diva Ribeiro, do Chega, acusou Ana Sofia Antunes de apenas intervir nos debates “em assuntos que envolvem deficiência” — frase que foi vista como discriminatória por outros parlamentares.
Voltemos a Manuel. Não foi sempre cego, cegou aos 43 anos, em 2009. Trabalhava como metalúrgico e teve um acidente de trabalho. “Um acidente com material metálico. Aquilo fechou-se, queimou-me tudo. A cara, tudo. Fiquei mesmo mal. A cara ficou toda afetada, fiz cirurgias e tratamentos — e ainda os faço, dia 28 de maio vou ao Porto fazer um —, recebi uma pequena indemnização. Foi complicado. Ninguém me apoiou.”
— Não se ofende se lhe perguntar como é que acha que o André Ventura parece?
— Não me ofendo, não. [Risos] Eu, enquanto vi, nunca o tinha conhecido. Portanto…
— Mas talvez pela voz. Como imagina que pode ser?
— Forte? Forte. Forte e assim meio para o gordo. Alto. É alto.
Natália, a assistente de Manuel, intervém: “E bonito. É bonito”.
Ventura entretanto chegara ao Campo da Vinha. São 12:12. Discursa num palanque. Como no começo da arruada, parece vitorioso. A declaração é brevíssima, dirigida aos apoiantes, mas com um destinatário concreto: a comunidade cigana. Pede aos apoiantes que nunca se “deixem intimidar”, mesmo quando ele, Ventura, é “perseguido”. Só assim pode vir a “mudar este país”. E gritou, gritou extasiado: “Não temos medo! Nós não temos medo!”.
De saída da praça, Ana Vieira vem acompanhada da filha Isabel e neta Tânia — que não larga uma das bandeiras que lhes deram, no caso é a portuguesa; a mãe e a avó carregam a que é do Chega. Porque o fazem? Responderá sempre a avó Ana, 75 anos, “76 no dia 4 de julho”.
“Nós somos de Braga e viemos porque ele tem de mudar isto de vez. Está muito mal, muito mal isto. Eu tenho uma reformazita que não dá para nada, são 400 euros, e dura o que dura, tenho marido — que já nem de casa quer sair, tem 80 anos, tem os seus problemas —, três filhas, duas netas, e ajudo como posso.” Diz não ter ajuda do Estado. “Nada. Nada, nada. Não sei como é que há alguns a conseguir ir buscar ajudas e eu não. Alguns, estrangeiros. Vou-me governando.” Emociona-se. “O que me vale é que a renda da casa são 1.100 escudos.” 1.100 escudos? “É pouco, é o que me vale. Estou lá há 50 anos. Criei lá três filhas, sozinha, trabalhava o meu marido para eu criar as filhas. Mas se um dia sobe, eu vou para a rua.”
— Preocupa-a o futuro?
— [Lacrimeja.] A vida é difícil.
— Então…
— Não tenho grandes luxos. Mas ainda dou a quem vejo na rua a pedir.
— Preocupa-a o futuro.
— Muito. Penso muito nisso. Tenho medo do que vier. Quero que o Chega mude. Que mude isto.
Diz que hoje é do Chega, mas não foi sempre, foi toda a vida socialista. “Do PSD é que não. Do PSD nunca. O Passos cortou-me tudo. Cortou tudo a toda a gente. Eu não me esqueço. Só Deus sabe o que eu passei. Só Deus. Ele foi o causador de muita coisa. Mas agora temos de andar é para a frente. E confiar no Ventura.” Recordamos a Ana que Ventura acredita (e disse há dias) que o seu “amigo” — palavras deste — Pedro Passos Coelho, se votar nas legislativas, certamente votará no partido em que Ana vota, o Chega. “Eu ouvi, eu ouvi. Mas não achei graça nenhuma.”