Henrique foi agredido enquanto Ventura chorava

16 mai, 20:00
Reportagem com o Chega em Lisboa

REPORTAGEM | A agressão deu-se na derradeira arruada, no derradeiro comício. Este arquiteto e ativista segurava uma cartolina onde se lia: "Mas, se fazeis acepção de pessoas, cometeis pecado". Antes disso aconteceu muita coisa

O posicionamento era estratégico. Também a demora. 

A derradeira arruada do Chega parte do Camões, no Chiado, e posiciona-se na zona mais abaixo daquele largo, quase na estrada, junto aos degraus, e vistos de frente, e à frente das câmaras da televisão, pareciam uma multidão a perder de vista, porém, vistos por outro ângulo, recuando para o cimo do largo, são talvez uma centena, pouco mais, não indo além da primeira fileira de árvores. 

Num recanto vão-se retirando de caixas, várias caixas, as bandeiras, as camisolas do partido, também — e isso é novidade — máscaras que têm o rosto de André Ventura, que se vão distribuindo. A maioria utiliza-as, às máscaras, colocadas na nuca, e não no rosto, pois a furação que há, nos olhos de “André”, e de tão pequena, impossibilita ver bem. 

Do Chiado, pela Rua Garrett, e já após as 16:00, hora em que já deveria o partido descer por essa mesma rua em direção à Praça do Município, para um comício de encerramento, ainda vem gente a subir à pressa. Muita gente. O partido faz portanto um compasso de espera, de quase 30 minutos, e assim seriam mais a descer, mas também faz porque estava atrasada a arruada (ali bem perto) do PS e terá sido a própria polícia, para assim evitar que houvesse cruzamento entre ambas, que impediu a partida às quatro em ponto. 

Eram muitos pelas quatro. E hão-de ser mais. Acima de 500 quando partem, partindo em cânticos de “JÁ VENCEMOS, JÁ VENCEMOS”, além do hino, o nacional, “A Portuguesa”, que de tanto no Chega se entoar, se o compositor Alfredo Keil recebesse royalties, estaria rico — ainda que morto. Felizmente os mortos não podem sentir-se lesados. “Felizmente” porque não há hino em que se não entoe “igrejos avós” ao invés de “egrégios avós”. Adiante.

Antes de partir já havia na arruada uma indisposição. Dos apoiantes. Vem já de dias passados, pois sempre que Pedro Pinto desafia os jornalistas, lhes critica o trabalho, os jornalistas são instantaneamente provocados, ameaçados — em palavras — e ofendidos, como hoje se voltou a ouvir, desde “porcos de merda” a “os filhos da puta só ouvem quem lhes interessa”, desde “manipuladores do caralho” a “vai-se acabar a mama e vão ficar sem trabalho”. Os jornalistas prosseguem na arruada do partido, a mostrá-la em direto — na televisão ou liveblogs. Como em direto estão ali diversos tiktokers afetos ao Chega, que ao contrário do jornalista desta reportagem contam na descida do Chiado “milhares e milhares de pessoas, pessoal”. Não são. 

A embelezar, a aumentar, há sobretudo bandeiras nacionais, do partido, muitas do rosto de Ventura e ainda uma de cariz nacionalista, sobre um fundo, em cruz, branco e azul, que alguns grupos nacionalistas ou identitários na Europa utilizam como símbolo de defesa da civilização europeia e até da identidade cristã europeia. 

O passo na frente, e à frente vão com destaque, na ausência de Ventura, Pedro Pinto e Rita Matias, é apressado. Há paragens por vontade, outras por algum condicionamento. Parar junto da Brasileira, parar junto do histórico Tribunal da Boa-Hora, são opções. Parar a meio da Rua Garrett, por haver ali um estreitamento da estrada — resultado de obras em prédios — e inúmeros tuk-tuk estacionados, é condicionamento. A PSP no local pede aos condutores que “circulem e voltem depois”. Assim fazem. Outra paragem que foi por condicionamento dá-se quando um grupo de três jovens, três mulheres, resolve fazer peito ao Chega, gritando-lhes que são todos “fascistas” e que no que depender das três não “passarão” — não é literal, é antifascista.

Um militante que é uma presença assídua ao longo da campanha eleitoral, idoso mas de cabelo pintado de laranja-fogo, aproveita um instante em que se tenta ocultar as três jovens com bandeiras para delas se chegar perto e ofender logo uma com um “sua puta do caralho” — e encosta-lhe a mão ao peito. Não há polícia no instante de intimidação. É o pai de Rita Matias, Manuel, quem trata logo de afastar o militante: “Vá, anda, anda, já foi, já foi.” As mulheres “antifas” partem entre piretes, delas, e contínuos gritos, delas também, contra o fascismo (e "vão p'ró caralho") e são ao longo da partida, na descida da Rua Nova do Almada, seguidas por um outro simpatizante, que as vai ofendendo — “putas, putas, putas” — e provocando com este “vão trabalhar mas’é”. Respondem: “És ridículo, fascista e ridículo.” 

A polícia não quer que haja mais paragem e insiste: “Têm de acelerar, têm de acelerar.” Está-se quase na Praça do Município, onde foi instalado um palco, haverá discurso mas antes há música: “Para bailar la bamba, para bailar la bamba se necesita una poca de gracia”. É a única canção inicial que não será em inglês, o que num convívio de patriotas é estanho. Vem de seguida um “doctor, doctor give me the news”, que já antecipa o que estaria para vir logo depois, e um cover de “Hallelujah”, de Leonard Cohen, que sofreu do intérprete no palco a seguinte heresia musical: “Eu quero ver essas mãos lá em cima, quero ouvir essas palminhas!” Cohen não quer, não pede, "palminhas". 

Quando já todos chegaram, ocupando um quarto da praça, é o cantor que podia ser residente num bar de karaoke na Fonte da Telha — sem ofensa à Fonte da Telha ou ao cantor — que anuncia uma vinda por que todos, todos, todos, mesmo dizendo o partido que não, esperavam: “É ele, é ele, é André… VEN-TURAAA”. A fila para a imperial no quiosque da praça desfaz-se, todos se juntam em redor do palco e Ventura entrará triunfal, desengravatado, de polo branco como branca é a gaze (da cateterização de ontem) que traz na mão. Traz outras gazes, traz pensos ainda, visíveis — o polo a isso ajuda —, talvez demais para quem sofreu de refluxo e de azia: que é isso que é "espasmo esofágico", o diagnóstico de Ventura, que nada é de cardíaco. 

Eram 17:25. 

Ventura falará longamente. “Sei que não devia estar aqui hoje, mas eu não conseguia, em consciência, em alma, não conseguia não estar aqui hoje, por vocês, e não conseguia não estar aqui hoje para conseguirmos cumprir a missão que temos de transformar Portugal.” Um homem grita “VAI DESCANSAR, VENTURA, VAI DESCANSAR”. Não é injurioso, é preocupação. Prossegue o regressado, para regozijo da multidão, embora com uma voz embargada — e a deixar ao animador de serviço os gritos que antes se lhe ouviam de viva voz. “A nossa luta tem de ser essa, convencer todos, todos, todos, que o país chegou a uma imundice tal, chegou a uma destruição tal, chegou a uma bandalheira tal, que nós precisamos da oportunidade para governar. É isso que eu vos peço no próximo dia 18 de maio, no próximo domingo.” Outro homem chora. E diz para o lado, não ouvindo, pois, Ventura: “Acaba com esses pides, André, acaba com esses pides.” 

Ventura também choraria, ao sair do palco, depois da mulher e de membros da direção do Chega se terem juntado a ele para todos reunidos cantarem o hino de Portugal. Antes, André atacou: disse que por estes dias houve “muitos” que lhe quiseram “o mal”, referindo-se, sem precisar de referir, pelo menos hoje, à comunidade que lhe preencheu horas e horas de campanha: os ciganos. “Mas também houve muitos que quiseram bem.” Novamente um homem grita da multidão: “DEUS NÃO DORME!” — e é “Nessun Dorma”, de Puccini, que se ouve quando todos do Chega abandonam e dão a vez ao cantor Melão, ex-Excesso. 

Antes, antes ainda, num recanto da multidão, enquanto Ventura discursava, já emocionado, num cartaz pode ler-se uma frase de cariz bíblico:

“Mas, se fazeis acepção de pessoas, cometeis pecado”. 

Segura-a um homem e durante muito tempo ninguém se apercebe do teor, ou não o consideram provocatório. Quando lhe detetam ativismo, protesto, insistem que dali se retire. Não pedem com bons-modos: “Sai daqui, meu filho da puta.” O homem não sai nem reage. A tensão é maior. Dois elementos do partido dirigem-se à polícia e pedem que o tirem eles ou “vai dar merda”. Ouvem em resposta o seguinte: “Já sabemos, já nos informaram, estamos a par. Estamos a aguardar a ordem.”

Enquanto veio e não veio a ordem, Manuel Matias, o homem que antes impedira uma agressão na Garrett, e que é além de pai da deputada Rita Matias um colaborador do partido, assessor político, tendo sido nesta campanha o motorista de serviço de alguns deputados e elementos da Juventude Chega, abandona o quiosque no recanto da praça e dirige-se à zona de confusão latente. Pede logo que se tape o homem. E tapam-no com um par de bandeiras diversas. O homem não reage, não verbalmente, mas reage com provocação (o que num lugar de tensão não se deve fazer), erguendo mais alto o cartaz que é só uma cartolina escrita pelo seu punho. Matias pede que para ali tragam uma tarja. Ao ver que é totalmente tapado o homem, é Matias quem lhe tira da mão (com ajuda de outros) aquele cartaz, há contacto físico, não confronto físico, há intimidação de vários lados — “estás avisado, ficas avisado” — e o homem lá se afasta, não sem antes lhe ser despejada uma garrafa de água em cima. 

Enquanto sai, é insultado. “Andas à procura andas, ó palhaço! Andas à procura, ó palhaço, vai mas’é p’ra casa!” E é nesse instante que irá ser esbofeteado, quando vai de costas, por um outro homem. O agredido ainda se volta, mas vai sendo já tirado da confusão pelos elementos do Chega que antes o denunciaram às autoridades. Pede-se calma. “Calma. Calma, calma!” E ofende-se também: “Ninguém te provocou, ó palhaço! Vai p’ra casa, palhaço!”

Isto é o que se ouve neste vídeo, gravado no local pela CNN Portugal. Antes, e fora do vídeo, os insultos incluíam “esquerdalho da merda”, “paneleiro da merda” e repetidamente “vais levar nos cornos, filho-da-puta, tu levas nos cornos”. 

O homem dirige-se à polícia, logo após, pondera apresentar queixa, embora não saiba dizer quem agrediu. O homem é Henrique Frazão, de 37 anos, arquiteto. “Eu estava a mostrar uma frase que é da bíblia. E comecei a ser ameaçado, começaram-me a empurrar. Bateram-me. Para aquele que diz que veio ao mundo e que foi escolhido por Deus para liderar Portugal, acho que é só estranho agredirem uma pessoa que tem uma frase da bíblia”, começa por contar. 

E, sim, a mensagem bíblica era uma crítica ao Chega. Foi por isso que veio. “Porque vim? Vim porque nestes tempos de mudança radical — infelizmente — para pior, acho que não podemos ficar em casa, sem fazer nada. Sinto que não posso só ficar de braços cruzados a ver um partido que defende a discriminação abertamente, que desvirtua a verdade, ter todo este palco que tem.”

Considera Henrique que Ventura tem “conivência”, tem “colinho”, ao aparecer repetidamente nas televisões. "E assim o Ventura continua a utilizar, de forma muito inteligente, pretextos para continuar a ser notícia. Não podemos cair que nem uns patinhos”, lamenta. 

— Deixe-me perguntar se está nalgum partido, se pertence a partidos?

— Não. Não, não. Não tenho filiação política alguma.

— Não? 

— Eu nem sequer me interesso por política. Interesso-me por democracia. Que está em causa. 

Henrique Frazão é ativista climático, ex-integrante do movimento Climáximo. E parte. Já atua o cantor Melão no palco. A maioria da multidão, à saída de André Ventura, desmobiliza depressa.

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