REPORTAGEM || A terça-feira de manhã não começou em apoteose: André Ventura teve até de se livrar do casaco, puxou as mangas e falou como o vencedor das eleições — e ainda distribuiu cravos brancos. À tarde, terminou levado em ombros enquanto Soraia (mulher, cigana, contribuinte) foi absolutamente engolida por uma jogada à Bobby Fischer da comunicação do Chega. À noite, o país inteiro já sabe o que é que aconteceu
Não foi uma manhã (como outras não foram) particularmente concorrida.
Nem com particular pontualidade — como André Ventura nunca tem; mas à frente se vai explicar o motivo, que esta terça foi evidente da parte da tarde. Mas para já ainda é manhã, em Tavira, na Rua da Liberdade e esperam Ventura um grupo de cerca de 30 apoiantes, além do que é “aparelho”, claro, e além do que é fanfarra — que é bem mais ruidosa que todos os demais, rufa e bomba e bomba e rufa como se nenhum tímpano importasse. Desceriam rumo ao rio Gilao, para que André discursasse na rua do Cais, num pequeno palanque já montado à beira da ponte das Forças Armadas. E discursará não tanto para os que com ele arruaram — e não se juntará assim tanta gente mais, que Tavira àquela hora é turística e fala-se mais inglês e alemão do que em português —, mas sobretudo para nossa casa, às televisões.
No fim distribuiu cravos brancos e não os vermelhos de Celeste Caeiro, a mulher-florista dos cravos nas espingardas, porque Ventura não é um homem de Abril (até é mais de novembro).
Depois pouco há para contar que não se tenha já contado: quando não tem adesão, Ventura — por timidez ou surpresa ou até as duas — procura-a, vai porta a porta, acena, sorri, avançará se vê que tem consentimento, ele conversa pouco mas não poupa em empatia. Empatiza sobretudo com os mais velhos, ou melhor, com as mais velhas, mulheres, pensionistas, que têm ali um neto para se lambuzarem como só aos netos lambuzam.
O que é que há de novidade face a dias passados? Ventura pode até não dizer, mas sabe tudo o que dele se diz — e escreve. Se se escreveu que aparentava cansaço, ou que tinha até a indumentária demasiado engravatada, terça-feira tirou a gravata e até o casaco, arregaçou com uma dobra a manga e pulava, pulava, pulava, dava corpo, fazia corpo, aos textos que não lhe viam boa forma. Também já não é de acenar tanto para ninguém ou nenhures — e quando o faz, e quando o fez terça-feira, procurou um repórter, o que assina este texto, e fixou-o, logo de arranque de arruada, como quem diz “eu li”.
Mas falamos de quem foi ali para o ver. Um algarvio, um tavirense, porque como cantam os “ultras” do megafone (que é muito a deputada Madalena Cordeiro, quando é), “o Algarve é todo nosso, allez-allez-allez”. “Está aí o homem”, apreciou Zé Eduardo. Tem 54 anos, veste à Sporting de baixo a cima e não se importa que Ventura seja “rabolho”, que é uma gíria, um calão (bastante ofensivo mas que saiu da boca do homem) para adepto do Benfica. Então vamos lá para um “preferes”, já de chofre: prefere o Sporting campeão no sábado ou Ventura primeiro-ministro domingo?
“Epá! Epá, epá. Pergunta difícil. Se ganha o Sporting, isso deixa-me feliz. Mas se ganha o André, vem aí uma limpeza. Porque isto precisa de limpeza. Que limpeza? Na imigração. Para mim isto é culpa do Costa, porque ele deixou entrar demasiada gente. E não há emprego para esta gente toda aqui. Se nem há para os portuguesas, muito menos para os de fora.” Zé Eduardo está desempregado, “há já alguma tempo”, mas sem direito a qualquer apoio — diz que por causa dos tais que "vêm de fora”. “Eu trabalhava na construção. Só que aqui parou. E no turismo, até na agricultura, antes havia portugueses, queriam portugueses, mas hoje já não. Só querem os imigrantes. E quando não têm trabalho, as instituições apoiam-nos. E a mim? E a mim, merda. É só uma questão de justiça: têm de olhar primeiro para os nossos.”
— Eu tenho 54 anos. E voltei a viver em casa da minha mãe.
— Não é fácil…
— Não é fácil.
— Sentes revolta? Vergonha?
— Tristeza. É tristeza.
Voltemos ao tema do princípio, para fechar isto: o futebol. Um avançado, quando aparece, mais a mais um ponta-de-lança, promete golos aos adeptos. “O Ventura é político. Prometer é uma coisa, cumprir já é outra. Mas para fazer algo precisa de ter poderio. Sem poder não dá”, diz Zé Eduardo. E se o Ventura vestisse a listada verde-e-branca, a que tem o leão rampante? “Para mim só pode ser o Gyökeres. Porque é o melhor.”
Ventura já discursa no palanque. Zé Eduardo assiste sem prestar grande atenção, quer é saber quando sai a reportagem — esta. Mas quem escreve esta reportagem ouviu o que o líder do Chega disse.
Disse (ou repetiu, que é nisso que se aposta para o fim da campanha) que vai ser primeiro-ministro. Ou ministro — lê-se isso nas entrelinhas —, apesar de Montenegro, do "não é não" de Montenegro. Porque um triunfo da AD é para o Chega “uma possibilidade em cima da mesa”. Mas sem uma maioria, porque maioria só mesmo a “absolutíssima” da direita face à esquerda, com o partido de Ventura à espreita e a somar.
Até porque se Montenegro for vencedor, sozinho, sem uma aliança, “nós não teremos estabilidade nos próximos meses em Portugal”. Portanto, o melhor é mesmo “o Chega a vencer as eleições”. Porque Montenegro não tem condições “para vir a ser primeiro-ministro”, por falta de “maioria de integridade” e de “maioria de transparência” — algo que só o Chega lhe pode trazer, ou como diz o líder: “estabilidade”.
Agora é já tarde, 16:00, em Vila Real de Santo António, junto da Câmara. Ventura chegará em breve, em meia hora ou menos, para uma breve arruada, de um quarteirão. Só que a rua está deserta, apesar de alguém ter escrito o nome de André em toda a parte, não nas casas, não nos carros, não nas pontes — mas só mesmo em cartazes.
E até um camião já lhe traz a voz e a cantiga de campanha que um jornalista (não direi qual, mas é dos bons) diz que não lhe sai da cabeça, até na banheira, e isso não é elogioso. Adiante. O que se quer dizer é só isto: ainda não apareceu ali gente, pelos menos em número suficiente para não se pensar que, afinal, não estará o Algarve com Ventura, “allez-allez-allez”. Truque de campanha número um: o carro de Ventura já andava a rondar, mas deu mais uma volta, ou duas, ou três, ou quatro e aguardou que se aglomerasse a multidão, alguns que vinham só à caça das canetas mas acabaram de t-shirt a marchar por Vila Real de Santo António. Chegariam à casa da meia centena. Para o que era só zero, não está mau.
Cantou-se o habitual “já passámos”, em resposta a um tradicional (da esquerda e de Gandalf) “não passarão”. Também se cantaria “vitória, vitória, vitória”, mas ainda não se acabou esta história que até começou em protesto. Ventura não se terá apercebido da presença de Soraia — Soraia Rato —, 19 anos, mulher e cigana, que logo que Ventura chegou lhe chamou racista. Truque de campanha número dois: Soraia foi engolida, absolutamente engolida, por uma jogada à Bobby Fischer da comunicação do Chega. Meteram-lhe os bombos a rufar em cima, atacaram primeiro, "cheque-mate".
Só que às mulheres dá-se voz e Soraia fala aqui. “Porque vim? Vim porque quis manifestar-me. Não devemos ter medo. Nem dele nem de ninguém. E vim aqui dizer que nem tudo é como ele fala, não é tudo é como ele diz. Ele tem de ter cuidado com as palavras. Porque eu sou cigana, agora tenho 19 anos, trabalho desde os meus 16, e desconto. Trabalho num restaurante, de sushi, e vim aqui com a minha patroa e com os meus colegas, do Bangladesh e do Paquistão — porque não andam, não andamos, a chular o Estado, como diz esse senhor André Ventura.”
Entra em cena o movimento que atravessou séculos e moldou campeões — 3.Bb5 —, o bispo crava-se na diagonal, mirando o cavalo que protege ao centro, sussurrando a ameaça latente de desequilíbrio. Esta é a chamada abertura “Ruy López” — a escolha de Fischer. Mas chega de nerdices. Falemos com Soraia, que jogou bom xadrez.
Considera que por consequência de Ventura, de atentar (e “atentar” tem várias leituras) à comunidade cigana de Soraia, sofre hoje ainda mais hostilidade. “As pessoas olham para mim de lado. Porque nós, ciganas, às vezes — não é uma obrigação, mas às vezes — usamos uma saia comprida. E isso dá mais ‘ar de cigana’. E olham de lado. Já olham de lado só porque tenho o cabelo muito comprido — e de saia ainda mais. Mas a verdade é que nunca se deve julgar um livro pela sua capa, certo ou errado? Julgam-nos por sermos ciganos e dizem-me que só vivemos de rendimentos mínimos - e isso é só uma mentira. Já estive desempregada por duas vezes e não tive um euro.”
Tudo quanto teve conquistou. “Estou à procura de casa, para comprar mesmo. E não, não estou à espera da Câmara, senhor Ventura. Nem que ninguém me dê nada, senhor Ventura. Se Deus quiser, este ano irei conseguir isso sozinha — tal como já consegui a minha carta de condução sozinha - e o carro. E vou conquistar mais. Mais e mais.”
Soraia espera que Ventura não triunfe no dia 18. Mas, sobretudo, tem para Ventura um conselho: que fale de menos onde fala de mais — e que fale mais onde nada fala. “O que ele está hoje a fazer é baixar o debate ao nível do mais rasteiro. Ele, na campanha, pelo menos aos apoiantes, quase não fala em baixar o IVA, quase não fala da saúde, não apresenta propostas nenhumas. A única ‘proposta’ são os imigrantes e são os ciganos. É a isso que se agarra. E isso só causa mais ódio. E é disso de que este país não precisa.”
Entretanto, quarteirão percorrido, triunfal — no discurso triunfal, no semblante triunfal —, Ventura é erguido, erguido em ombros, junto do carro. Ergue o punho. Ao fundo, uma montra proclama a diversidade: “United Colors Of Benetton”.