“Começas já esta segunda-feira, podes trazer mais quatro ciganos”: acabou desta maneira Serafim vs. o Chega

10 mai, 22:00
Reportagem com o Chega em Vila Real

REPORTAGEM || Um homem cigano irrompeu pelo mercado adentro em dia de arruada do Chega em Vila Real. Serafim esteve preso por tráfico, está hoje em precária e concluiu que "é injusto vender droga". A campanha para umas legislativas é um lugar de histórias (às vezes) imprevisíveis — esta envolve até ofertas de emprego. Mas a campanha para as legislativas também é (às vezes) um lugar de aborrecimentos

Já começa a ficar monótona a campanha. 

Pelo menos algo repetitiva e sensaborona. As arruadas, como a deste sábado, em Vila Real — que começou numa visita a  um mercado às moscas —, por norma não ultrapassam as poucas dezenas de pessoas e o aparelho logo desata a preenchê-las de bandeiras e camisolas — e quando Ventura se desfila pela rua em percursos de poucos metros, poucos minutos, este sábado foram só 20, do mercado até à Sé, atrai curiosos, procura alguns, mas está longe da unanimidade, é também vaiado à passagem e continua a trabalhar para as TV, com acenos para locais onde ninguém está ou lhe acena de volta. 

Outra constante são os seus atrasos, que podiam até servir para causar na multidão uma ansiedade, que viraria euforia, mas a verdade é que, ao chegar, vai falar primeiro aos jornalistas — e já não é caso único ouvir dos apoiantes, exasperados, como este sábado, manhã de chuva: “Mas ele vem ou não vem? Saí de casa por causa dele”. 

Normalmente, e como este sábado, vem para dizer pouco — politicamente, de relevante, de propostas, de notícia até — ou apostar numa espécie de vitimização mascarada de coragem, de desafio. Assim foi em Trás-os-Montes. Quando chegou, voltou à carga no tema que tem abraçado na campanha, os ciganos. Diz que tem recebido “inqualificáveis” ameaças de morte, que pretendem “eliminar fisicamente” Ventura, “perseguir” e eliminar, mas que nem por isso deve reforçar a segurança, não vai “mudar um só milímetro” esta campanha, pois não tem “medo”, nem tão pouco pretende “apresentar queixa”, pois isso só irá “entupir a justiça” e os tribunais não devem ser usados “para ação política”. 

Ventura deixou também um apelo à etnia cigana, como um todo, apesar de ter sido só interpelado em poucas ocasiões por poucas dezenas: “Apelo a todos que parem com este espetáculo degradante”. O que têm é de “trabalhar” e “cumprir regras”. Recordando a reportagem da CNN em Viana, disse também que “até nos iam matar o gato que tínhamos na sede” — o que não é verdade, pois não se tratou de alguma ameaça velada, mas sim de um gracejo, uma ironia. Como não é verdade que o candidato a primeiro-ministro tenha sido em Braga “atacado com material pirotécnico” — caíram duas tochas, de fumo, uma branca, outra azul, sem que se tenha em Braga percebido quem terá atirado ou deflagrado. Mas foi cuspido pelas costas. 

Discurso feito, nada mais relevante de Ventura se ouviria este sábado. 

Mas antes de chegar, houve de novo um homem, só um, cigano que se fez ouvir e provocou — sendo ele provocado de volta — os apoiantes. Chama-se Serafim, Serafim Anjos, vinha munido de megafone, mas até pelo aparatoso dispositivo policial no mercado (de início chegaram a ser quase tantos quanto os apoiantes) nada de maior se registou. Parecia até uma partida de ténis a certo momento. 

Do lado do Chega, e logo à primeira batida de “racistas” e “xenófobos”, respondia-se de direita com “chibo”, “mafarrico”, convidando — por assim dizer, pois estavam inflamados — Serafim a “ir trabalhar”, “ir cultivar”, “ir mamar na quinta pata do cavalo”, pois se não o fizer “a mama vai acabar”, “o Ventura tira-te o subsídio”. Um apoiante mais sereno diz “tem calma, amigo”. E agora é a vez de Serafim servir: “Eu tenho muitos amigos, racistas é que eu não tenho nenhum amigo”. 

E Serafim continuou — mesmo após Ventura entrar mercado adentro. “O que ele quer é coca… cola”, “o que vocês querem é u-mama-la”, logo preparando o match point (acreditava certamente) com a seguinte tirada: “Ele é que ganha com isto? Comigo? Pode ganhar mas nunca será como eu sou, sério”. O serviço acabaria falhado. 

Serafim fora mentor da Associação Nacional e Social de Etnia Cigana e foi no cargo que seria detido por tráfico de droga, em 2021, sendo condenado logo em 2022, tendo mesmo em tribunal admitido o crime e pedido desculpa “à comunidade”. “Eu refleti sobre o assunto na cadeia e é injusto vender droga. Não gostava que mais tarde se vendesse ao meu filho.” Serafim está em precária. Sem trabalho, diz. 

E teve no mercado uma oportunidade de trabalho. Entre quem lhe dissera para ir trabalhar, um homem, natural de Vila Real, Telmo Resende, 60 anos, "lookalike" de Minervino Pietra, empresário da construção civil e militante do partido — por quem faz (e fez ali) campanha no TikTok — ofereceu a Serafim um emprego: “Começas já segunda, podes trazer mais quatro [ciganos]”. E partilhou o contacto, à frente de todos. 

“Ele não vai aparecer”, diz Telmo Resende. Conversámos já sem o homem cigano presente. “Eu conheço-o. Como é que se chama? Isso não te sei dizer. Mas sei que não é exemplo para ninguém. Já esteve preso várias vezes por causa de droga, por essas coisas. Mas atenção que há ciganos porreiros, muitos.” Telmo diz já ter empregado dois. “Sim, tive dois. Um foi-se logo embora porque dizia que não parava em nenhum lado. Depois quis voltar, mas assim é muito complicado confiar-se. A mão de obra é um produto como qualquer outro. Quando compro mão de obra, eu estou a comprar produção. É só pena que muitos não queiram trabalhar. Há ciganos bons rapazes — e era bom que se habituassem a trabalhar, para não serem marginalizados. As pessoas olham para um cigano e veem bandidos. E não é assim. Há muita gente boa, o que têm é maus hábitos.”

Telmo conversa mas continua com a live para as redes sociais a transmitir — mas praticamente sem “audiência”. Diz que por lá às vezes lhe fazem esta pergunta: “Porque é que aturo pessoas de esquerda ou ciganos?”. “E eu digo que estou aqui para falar com todo o tipo de gente. Para entender as pessoas. É preciso ouvir os outros.” Foi o que fez com Serafim no mercado. Mas nem Serafim irá ao seu encontro, para trabalhar — “não, não vai” —, nem ninguém parece ir. “Os governos desde há 50 anos só pensam em cursos superiores, mas é preciso mais formação profissional. São precisos doutores, mas também são precisos canalizadores. Peço funcionários no Facebook, peço funcionários na Segurança Social. Dizem-me que há muitos, mas depois não aparece ninguém. Estão habituados aos subsídios. E não querem fazer mais nada.” 

Acredita que Ventura mudará tal cenário. Nomeadamente quanto ao que diz ser a “subsídio-dependência”, porque é preciso fazer uma “limpeza de subsídios — e não interessa a etnia ou a nacionalidade”. “Eu antes só votava por dever, um dever cívico, mas não me identificava com ninguém. E o Ventura deu-me voz. Os subsídios deviam ser só para os que realmente precisam.” 

Telmo critica este Governo, e todo o PSD, que diz “governar à esquerda”. Mas Ventura não é também um antigo social-democrata, candidato autárquico nos idos de Passos Coelho? Não importa. “Tinha de vir de algum lado. Ou começava do zero ou vinha de algum partido. O que interessa é que quer mudar. Ninguém cumpre tudo. Mas se ele cumprir em parte, já melhora muito.” E continua a live. 

A arruada já está para terminar, que a chuva volta a ameaçar — e consuma. Tempo para cantar o hino à porta do quartel dos bombeiros e pouco mais que isso. Tempo ainda para Alfredo Reis Pereira, 58 anos, um cidadão com deficiência, amparado por uma espécie de andarilho, cumprimentar o candidato a governante-mor. “Ele conhece-me bem. Sabe que me chamo Alfredo. Ele conhece os militantes todos.  Isso faz toda a diferença. Eu sou o número 48.665. Mas para ele eu sou o Alfredo.”

Alfredo já andou por vários partidos. “Eu vim do CDS, passei pelo Aliança, estive quase com os dois pés na Nova Direita, mas escolhi este partido.” Porquê, Alfredo? “Pela frontalidade do Ventura. Eu sou do Norte. Aqui chamam-se os bois pelos nomes. Vão pegar-se pelos cornos. O Ventura é assim. Diz as coisas na cara. Se há corrupção, ele diz.” E os casos no Chega, Alfredo? “Vamos falar sobre o homem das malas?” Força. “Envergonhou o partido. E o Ventura: rua com ele. Quem prevarica é para a rua. Já tivemos militantes em Vila Real que prevaricaram. E ficaram afastados.”

Diz-se hoje “revoltado”. Cansado de corrupção e politiquice. “Como é que um fulano [Montenegro] nos governa com táticas políticas? O Costa fez a mesma jogada. PS, Aliança Democrática — é tudo igual. Táticas para cá, táticas para lá. Tudo para se manterem à tona.” Está revoltado com a política, sim, mas também com o estado do Estado. 

Considera que foi “abandonado” quando acabou por ficar sem trabalho por ser uma cidadão com deficiência. “Zanguei-me com o país. Ao fim de 50 anos disto, isto tem é de mudar. Eu era um professor de teatro. Lecionei pelo país todinho. Hoje eu não vivo. Eu sobrevivo. Tenho uma pensão pequena: 451 euros. Reformei-me em 2015, depois de 26 anos de descontos. É miserável. Vivo sozinho, sou divorciado, vivo da ajuda da minha antiga esposa [que está logo ao lado do antigo esposo e é candidata, não elegível, às legislativas pelo Chega aqui em Vila Real] e sobrevivo. Agora também trabalho muito para este partido. O Ventura vai apoiar as pessoas deficientes, com necessidades especiais, que ainda são os parentes pobres da sociedade.” 

Terminamos voltando à história de Serafim. Alfredo não considera, “pelo menos aqui, em Vila Real”, que haja na comunidade cigana problemas. “Não me incomoda. Nem a mim, nem a ninguém. Nós temos de desmistificar isso.” Desmistifique. “Há ciganos que aqui votam no Chega. Eu gostava, honestamente, de vir a ter ciganos no partido. Ciganos que trabalhem, claro. Para já não há, mas sei que vai haver.” Alfredo considera-se uma pessoa “pensante” — faz questão de referir. “Não sou manipulável.” Voltamos ao tema dos ciganos. 

— Este Serafim foi infiltrado. Parecia. 

— Infiltrado? Como infiltrado? 

— Não interessa. São jogos de bastidores.

— Agora vai ter de me dizer, Alfredo…

— A minha antiga esposa foi ameaçada na Régua, sabia? 

— Então? 

— Por ciganos. Disseram que nos matavam, com uma pistola. Durante a campanha. Nós não entramos em confrontos. E saímos à francesa.

— Agora estou confuso, confesso: então não era para desmistificar? 

— E o Ventura, se não se meter a pau, ainda o vão “silenciar”…

— Silenciar? Silenciar de calar ou matar? Não percebi.

— Se puderem, concretizam. Ele mexe com interesses.

— Ai sim? Então já não é de ciganos que me fala…

— Se ele não for protegido, ainda temos outro caso grave. Um outro Sá Carneiro.

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