REPORTAGEM || André Ventura ouviu buzinadelas em Aveiro mas uma delas não era para mandar-vir, era para dar um chega-cá: o casal Joaquim e Aurora não conseguiu ir à arruada mas vai estar "para sempre com Ventura" — e Aurora diz que é já tempo de se perder a vergonha de se dizer que se é do Chega. E apitaram em nome disso. Eneida não apitou mas apareceu com a neta de 17 meses porque diz que Ventura é quem defende a neta dela — e Eneida não se importa de ser chamada “racista, fascista, essas coisas todas” porque, diz, está agora demasiado revoltada para se importar com isso. No fim houve um protesto da comunidade cigana — a polícia acabou a identificar gente
Só é uma arruada porque se desceu uma rua — e desceu-se só parte, um quilómetro, em meia hora, em passo largo.
Se no Porto, na terça-feira, houve talvez uma centena de militantes, ou perto disso, a descer a rua de Santa Catarina à tarde, seguidos até por uma fanfarra, ruidosa, a ribombar, esta quarta-feira, em Aveiro, o cenário foi humilde, talvez duas dúzias de apoiantes de Ventura. Concentraram-se junto ao largo da estação de comboios e não é por acaso que ali estão. É que há greve — de comboios, entenda-se — e a circulação está parada pelo país todo. Ora, isso faz com que não haja uma roda-vida de gente, mas os que lá estão rodeiam Ventura e Ventura falará de comboios. Está contra tudo e também contra ninguém — e tem uma ideia para salvar a ferrovia.
Vejamos: a greve é “inaceitável”, só que os trabalhadores, os grevistas, portanto, “têm exigências legítimas”. O Governo, noutros setores, “optou até por fazer uma negociação mais atempada e aqui só deixou as coisas correr”, pelo que este Governo podia ter evitado esta greve e não o fez porque este setor não dá “assim tantos votos”. Mas vai ter, o Governo, de reembolsar os cidadãos no valor dos passes ou no que se investiu em deslocação — é o que diz Ventura.
Para que não torne a acontecer uma paralisação, uma greve como tantas, a solução de Ventura é simples: privatize-se a CP. Não interessa se é uma empresa pública, privada ou público-privada, “importa é o serviço ser garantido”. “Se a CP não conseguir transmitir ao país uma solidez financeira, dizer às pessoas que lhes consegue prestar um serviço sem lhes gerar prejuízos gigantescos, isso pode ser uma solução.”
E sem mais que dizer, avança pela avenida Lourenço Peixinho abaixo, a direito, que Aveiro é a direito, e vem o habitual cumprimento, o necessário beijinho, o aparelho vai-lhe atirando quem o quer ver, bons dias num café e no outro, Ventura gosta de rua, também de câmaras, saúda a sorrir a alguém que lhe acena de um andar de um prédio do outro lado da rua, ninguém está no prédio, ninguém acenará de volta ao líder do Chega, mas na TV vai parecer que sim, a rua está até vazia, mas com o ângulo certo nem tanto e segue a arruada embalada pelo hino, orelhudo, à programa das tardes de domingo.
O problema é que nem todos sabiam da arruada e não estão para cantigas: os carros acumulam-se na cauda e há já algum descontentamento, quase angústia. Às vezes há buzinadelas, não tão sonantes e sonoras quanto a do camião do Chega, que buzina um “Eye of the Tiger” — e o jornalista gostava de ter no seu Nissan uma buzina como aquela, não nega que gostava. Um segurança de Ventura pede que se encostem ao passeio: “Deixem lá os carros passar, pronto, está tudo com pressa, é só pressa”. Resolvido.
Pimenta para sempre
Um carro pára ali, buzina também, mas não é para ir mandar-vir, é para dar um chega-cá. No interior, Aurora e Joaquim, os Pimenta, um casal de reformados que vive logo ali do lado, até queriam ir com a arruada mas não podem, têm “um compromisso em Estarreja” e já vão um “bocado atrasados”. A Ventura disseram palavras rápidas: “Que tenha força. Que tenha muita coragem. Que nós estamos aqui para ele. E que ele pode contar connosco sempre”. Responde Aurora, sentada no pendura.
Joaquim diz porque apoiam os Pimenta o Chega. O Chega não; o homem. “Porque é uma mudança.” Aurora ainda diz mais: “Porque é justo, porque ele é justo”. E volta a Joaquim a palavra: “Porque estamos fartos do mesmo — e disto não passa”.
Ele, Joaquim, está reformado por invalidez — que trazia já dos tempos no Ultramar, em ambas as pernas, sendo ele hoje presidente da associação de quem lá combateu, na Guerra Colonial — e Aurora é reformada do comércio. Tinham um pequeno negócio por Aveiro, são pequenas as reformas, “400 euros cada, da Previdência”. Também isso lhes atrai em Ventura, o discurso para os pensionistas. “Estamos aqui para apoiar quem diz que nos quer apoiar. Os outros prometem, prometem, e nada até agora. Não sentimos que todo o nosso esforço, toda a nossa entrega a Portugal, seja reconhecida ou tenha sido reconhecida. Conseguimos, e graças a Deus, manter ainda estabilidade. Alguma. Porque fizemos o nosso mealheiro. Senão eu não sei como era”, diz Aurora. E Joaquim vê culpados, “os de fora”, ele que esteve fora numa guerra fratricida. Isso também lhe atrai André Ventura: a imigração.
“É que estamos a ser invadidos por gente de fora. Gente que vem como quer, sem critério, sem controlo. Como é aqui em Aveiro? Ui. Muito, muito mesmo. Já nem se pode sair à noite de casa. Não que eu tenha algum problema, que eu não tive, mas tenho medo, vou ver o futebol acolá em baixo e trago sempre uma mão em cada bolso, numa é o telemóvel, na outra é a carteira.” Aurora não vai à bola com o marido, mas também não vai com imigrantes: “Não podem vir simplesmente e invadir assim o nosso território. E depois vemos gente que chega de fora, que nunca contribuiu com nada, a receber o mesmo de apoios que nós — ou por vezes mais.”
Ventura terá do casal a cruzinha no boletim, no dia 18. Anunciam-no já porque não há que sentir vergonha. “Mas ainda há quem continue com receios. De dizer que é Chega. Porque depois chamam-nos fascistas. Eu não sou nada fascista”, sublinha Aurora. Joaquim esfrega as pernas com memórias de ditadura: “Vê? Vê isto? Foi isto que o Salazar me deu, eu sei, que a Guerra me deu. Não era bom aquele tempo. Nem este”.
Eneida, que não teme que lhe chamem “racista, fascista, essas coisas todas”
Ventura é logo, logo à frente parado de novo por um carro. Ou carrinho. Eneida Martins (“Eneida” como o poema de Vergílio, mas não uma troiana; aveirense — e reformada da Vista Alegre) trouxe à arruada do Chega a neta de tão breves 17 meses, Maria.
“Estava ali do outro lado, no café, vi-o a passar e vim aqui de propósito. Nem sabia que estava por Aveiro. O que eu lhe disse? Disse-lhe que lhe dou muita, muito força. Porque eu me identifico com tudo, tudo o que ele nos diz. Sou a favor de tudo o que ele diz que defende.” Maria está num sono imperturbável. Despertou à passagem da caravana — minicaravanismo é caravanismo —, mas logo se recostou e adormeceu. Falamos com a avó Eneida.
Com o que é que se identifica, concretamente? Porque “tudo” não diz nada. “Eu trabalhei 47 anos. Descontei durante 47. E agora andam-me a comer os descontos. Quem? Há por aí muita gente, muita pessoa que veio de fora, gente que veio e agora não quer trabalhar. O que quer é receber. Subsídios e mais subsídios. Aos molhos. Eu, que trabalhei quase meio século, eu, que descontei quase meio século, recebo menos do que esses imigrantes.”
Também preocupa a Eneida a habitação. “Nós queremos uma casa. Todos. Uma casa para se viver. Eu tenho um sobrinho que vai ser agora posto fora de casa. Morreu-lhe o pai — era ele quem lá estava na casa — e agora o miúdo não tem para onde ir. Mas para quem veio de fora há tudo. Sempre.” Também preocupa a Eneida o futuro. “Estou aqui pela Maria, sim. Porque acho mesmo que aquilo que o André Ventura promete pode dar-lhe um futuro melhor. A ela, à minha neta — e a todos os netos de todas as avós. E aos filhos de tantos pais e mães que andam a lutar pela a vida, com a vida. E que nem a uma creche têm direito. Esta menina está comigo porque não teve vaga na creche. Mas os que vêm de fora têm lugar. Está guardado para eles esse lugar. Os nossos, os que estão cá, que vivem cá, que descontam como descontei, como desconta o meu filho, como desconta a minha nora, não têm uma vaga. E se eu não pudesse? Andava de mão em mão? A Maria tem 17 meses. E não é para andar para aí de mão em mão.”
O discurso de Eneida pode parecer a alguns leitores talvez preconceituoso, talvez racista ou até xenófobo. “Mas eu não sou nada disso. E só digo o que penso. Já não temo que me chamem racista, fascista, essas coisas todas. Eu tenho o direito a dizer o que eu penso. Se ele diz o mesmo que nós pensamos, o André Ventura, porque não haveríamos de o apoiar? Vergonha? Nenhuma. Vergonha é ver e ficar calado.”
Não lhes dar descanso
Voltamos à pequena arruada de Ventura, já quase no final. Ensaia-se um cântico por Pedro Frazão, cabeça de lista. “FRAZÃO, FRAZÃO, FRA… [interrupção] VITÓRIA, VITÓRIA, VITÓRIA!” O dia é de Ventura. Vê-se uma mensagem no alto do terceiro piso do antigo cineteatro Avenida que parece dirigida a todos e não só para o líder do Chega: trata-se de uma tarja com símbolos nacionalistas que por instantes até pode parecer uma tarja de apoio. Não é. A tarja diz ainda:
OBSCENOS
Subimos ao terceiro piso para tentar esclarecer aquela tarja, ao lugar onde se realizou, no ano de 1973, o III Congresso da Oposição Democrática — e onde havia então um grupo de capitães que depois participou no 25 de Abril. Hoje é só o espaço de um ateliê de arquitetura. Recebe-nos um dos arquitetos, jovem, Francisco. Porque estenderam aquela tarja? “Olha, isto começa no ano de 2022.” Estamos com tempo, ele prossegue.
“Em 2022, durante as eleições, houve uma arruada do Chega aqui na rua. O Louzinha — que é o arquiteto-chefe — teve ali um rasgo [risos] e resolveu fazer um pirete ao Chega. E depois o Nuno Saraiva fez ilustração disso no jornal Público. Esta tarja que viste é a ilustração do Nuno Saraiva. Acabou por se tornar um pequeno gesto de resistência. O pirete.” A história prossegue com uma história desse ano de 2022. “Houve uma coisa que ficou captada nas câmaras e que teve até graça. Um tipo do Chega a dizer: ‘Olha para eles todos, sem fazer nada, em casa, vão trabalhar’ — e nós a trabalhar, porque isto não é uma casa.”
Voltando à tarja de crítica que desenrolaram. Já estava enrolada há pelo menos um ano. “Andámos a ver a agenda deles nas eleições de 2024 — quase à caça — mas não chegaram a passar. Este ano sim, passaram. E usámos. Há quem perceba logo a crítica, mas há também quem fique confuso — e ache que aquilo é de apoio. Ou até quem nem sequer repare. Mas tínhamos de o fazer.” Porquê? “Naturalmente que nós não nos revemos no discurso do Chega, no populismo. E é importante que intervenhamos. De qualquer maneira. Arquitetura pode ser ativismo. Um simples cartaz à janela é um recado que se entrega: não podemos normalizar o discurso do Ventura, não aceitaremos.”
Mas o que mais inquieta os arquitetos no discurso de Ventura? Responde não Francisco, mas Rafael — há cinco arquitetos na sala, um deles uma imigrante da Turquia. “É a questão de imigração. É aí que o discurso dele é mais tóxico — e também mais eficaz. Claro que há aqui imigração ilegal. E isso é um desafio. Mas de uma forma geral a imigração é benéfica. É necessária. E é disso que vivem as sociedades: da mistura, da diversidade, da circulação de pessoas e de ideias. E isso assusta quem quer fechar tudo, proibir tudo. Para eles o problema nunca está dentro, está sempre fora. Escolhe-se uma minoria. E acusa-se a minoria de ter os privilégios todos, de ser a responsável por tudo, ou quase, o que de mau existe. É a marca do fascismo.”
Francisco de novo: entende o porquê do discurso de Ventura resultar em Portugal — como resultam pelo mundo outros como tal. “Acho que muitas pessoas estão fartas. Sentem que as coisas não mudam nada. E acreditam que votar num partido extremista é a forma de abanar o sistema. Não há um milhão de fascistas em Portugal, mas há um milhão de pessoas disponíveis para dar esse voto como protesto. Não creio que se revejam em tudo o que o Chega representa — nem acredito que lhes tenham lido o programa eleitoral. Mas ouvem, sim, aquelas palavras que lhes soam bem — bandalheira, vergonha, corrupção — e são chavões até eficazes. Inquieta-me o fenómeno.”
Rafael sabe que ao abrir aquela tarja crítica vai “dar um palco” aos protagonistas políticos. “E vivem dessa vitimização. Crescem com ela. Nós rimo-nos agora, mas sabemos que isso tem um preço. São ideologias que alimentam o ódio e que se alimentam do ódio. Que rejeitam a diferença. Nós não os podemos deixar à vontade. Ainda assim, prefiro vê-los na rua, em arruadas, do que em caves, do que atrás do ecrã, nas redes sociais; se estivem à vista nós sabemos com o que contar, até podemos escutar, perceber. É isso a democracia.”
É isso. E é confronto, a democracia. No fim da arruada esperavam por Ventura um grupo de pessoas, sobretudo mulheres, ciganas, de Aveiro. Acusavam-nos, sem ensimesmar em Ventura, mas falando no plural, de “racismo” — de ser o Chega um partido “racista”. Ventura não reagiu. Logo, pelo menos.
Antes disso: a polícia identificou os participantes de ambos os lados devido a uma queixa apresentada pela representante da comunidade cigana — que alegou que lhe disseram que tinha o “direito a estar na Roménia e não em Portugal”. A autora da queixa é Belarmina Fernandes. Falando pelo seu grupo, garantiu aos jornalistas que “erros há na comunidade cigana, como há fora da comunidade cigana” — e que é tempo de parar “com este ódio que André Ventura alimenta”. “Nós incentivamos os nossos filhos a estudar, a trabalhar. Eu trabalho. Nós temos tantos direitos quanto vós, fazemos descontos. O Chega não pode apoderar-se do país, se isso acontecer será uma desgraça total”, diz Belarmina.
Ventura respondeu já sem a mulher presente: “Não é nenhum racismo, nem é nenhum fascismo. Não sou eu que sou fascista, são eles que querem regras à parte. Eles têm de trabalhar — e uma grande maioria não trabalha — e cumprir as mesmas regras que todos os outros. Foi a vitimização habitual que a comunidade cigana faz, e procura, para nos atacar sem qualquer razão".