Falar sobre o excesso de jogos, antes que haja «jogadores a sucumbir»

4 jun 2022, 12:18
Jordan Henderson e Karim Benzema no Liverpool-Real Madrid

A Fifpro lançou novos dados sobre a sobrecarga a que os jogadores estão sujeitos. O diagnóstico e muitas questões, do futebol de topo à abordagem portuguesa na gestão do bem-estar dos jogadores.

Diogo Jota cumpriu na final da Liga dos Campeões o 60º jogo da época e está concentrado com a Seleção Nacional. O jogador do Liverpool foi poupado frente à Espanha, mas tanto ele como Portugal têm ainda em perspetiva mais três jogos até 12 de junho, antes de finalmente fechar a temporada. «Quatro jogos em dez dias. Não me lembro de ver isto», desabafava Fernando Santos antes desta maratona, a constatar uma tendência que se agrava: o calendário de jogos a engordar e os jogadores cada vez mais desgastados.

O exemplo português é mais um a reforçar o fenómeno que a Fifpro voltou a pôr na ordem do dia, num relatório divulgado a coincidir com a final da Liga dos Campeões e que lança muitos dados para a discussão sobre o excesso de jogos e os riscos que traz. Para a saúde e bem-estar dos jogadores e, no limite, para o jogo. O Maisfutebol olha para o problema, com o ponto de vista do presidente do Sindicato dos jogadores e com a perspetiva de quem tem uma visão de ambos os lados, como jogador e fisiologista. Um olhar que vai do futebol de topo à abordagem portuguesa na gestão do bem-estar dos jogadores.

O estudo da Fifpro tem várias vertentes, partindo de uma sondagem junto de mais de mil jogadores, bem como dos dados anuais de monitorização de uma amostra de 256 jogadores de elite e ainda da análise de uma centena de «treinadores de alta performance».

Entre os jogadores inquiridos, 55 por cento disseram que contraíram pelo menos uma lesão resultante de sobrecarga competitiva, enquanto 82 por cento dos treinadores revelaram ter detetado problemas de saúde mental nos jogadores associados ao excesso de jogos. Apenas um terço dos jogadores diz ter beneficiado do período recomendado de quatro semanas de descanso no final da época 2020/21 e 76 por cento defende que são necessárias medidas adicionais para garantir períodos de descanso.

Enquanto 88 por cento dos treinadores considera que os jogadores não deviam exceder os 55 jogos por temporada, a Fifpro nota que em 2020/21, 72 dos 256 futebolistas da amostra superaram esse limite. Muitos sem o tempo recomendado de descanso, naquilo a que o relatório chama jogos back-to-back, com intervalo inferior a cinco dias. Rúben Dias é um exemplo extremo, com o relatório a apontar que entre 18/19 e 20/21 o internacional português fez 198 jogos e teve quatro períodos diferentes de pelo menos dez jogos consecutivos sem paragem.

«Estas matérias têm de ser suportadas em dados concretos. A Fifpro fez o que lhe competia. Foi analisar os dados do ponto de vista do conhecimento científico», diz Joaquim Evangelista, presidente do Sindicato dos jogadores e membro da Fifpro: «Os sindicatos têm aqui uma responsabilidade acrescida porque muitos jogadores, muitas vezes também na dependência dos seus contratos, acabam por não se manifestar. Mas começa a haver jogadores com essa capacidade.»

«A principal conclusão é que existe uma sobrecarga competitiva, que é evidente mas continua a ser tabu, porque há depois os interesses comerciais do futebol que anulam essa discussão. Por isso é que a Fifpro e os sindicatos nacionais procuram colocar este tema na agenda», insiste: «As viagens, os fusos horários, os estágios, os jogos dos clubes, das seleções, os quilómetros que os jogadores percorrem, são manifestamente excessivos. Admito que haja pessoas que achem que o dinheiro compra tudo, mas não pode. É unânime entre os protagonistas, jogadores e treinadores, que tem de ser encontrada uma solução para evitar que os jogadores sejam submetidos a estes excessos e que sejam postos em causa direitos humanos e laborais, a saúde e o bem-estar dos atletas.»

Partindo destes dados e dos alertas que tanto jogadores como treinadores vêm fazendo, é preciso avançar para alterações concretas, diz: «É importante começar a ter uma atitude consequente. Eventualmente, recusar este tipo de calendário. Quem define o calendário não pode fazê-lo à revelia de jogadores e treinadores. Os jogadores não poderem descansar devidamente vai ter consequências. O que a Fifpro não quer, e o Sindicato português não quer, é que tenha que começar a haver jogadores a sucumbir física ou psicologicamente para que possamos falar abertamente sobre este tema.»

O presidente do Sindicato reconhece que a intensidade competitiva desta época foi agravada pela pandemia, mas nota que esta «é uma tendência que já se vinha verificando». «Cada vez há mais tentativas de criar competições novas, que são fontes de rendimento, são necessárias à indústria. Mas nos últimos anos as próprias competições são mais exigentes. O jogo é mais intenso, exige mais de cada jogador.»

Um problema também para a qualidade do jogo

Não é apenas uma questão de saúde, mas também da qualidade do próprio espetáculo. Com jogadores cansados, o jogo é pior, observa: «O próprio jogo só ganha em potenciar e melhorar a performance dos protagonistas.»

O dirigente acredita que este tema vai acabar por entrar mesmo na agenda das principais organizações. «Tem de haver bom senso e um equilíbrio nesta equação da indústria versus direitos humanos e laborais. É preciso respeitar tempos, de acordo com o conhecimento científico, e sobretudo discutir os calendários e as competições com os protagonistas. Nós temos tido reuniões com as Ligas europeias, recentemente também com as Ligas mundiais, temos discutido com a UEFA e a FIFA no plano internacional. Há muitos interesses em jogo, mas é um tema em que a partir do momento em que ganha esta dimensão científica, vai ter necessariamente que ser objeto de análise.»

Em Portugal, os clubes com presença nas competições europeias também têm calendários acima dos 50 jogos por época. Na última temporada foi o caso de Benfica (55), FC Porto e Sporting (53) ou Sp. Braga (52). Seguem a tendência global, nota Evangelista: «Há uma lógica de mercado que se sobrepõe e que acha que pelo facto de celebrar um contrato de trabalho com um jogador lhes confere todos os direitos. Isso não é aceitável.»

E se alguns desses clubes de topo, também em Portugal, já usam sistemas de monitorização dos jogadores para avaliar a sua condição física, o dirigente não acredita que isso seja feito na defesa dos futebolistas. «É um bocadinho como as petrolíferas, também fazem investimentos verdes. Mas há um problema a montante que é a poluição. Fazer coisas verdes não branqueia os problemas que a indústria petrolífera traz para o planeta. Muitas vezes esses estudos não se fazem para fazer a defesa do atleta. Muita dessa monitorização não é na defesa do atleta, mas para justificar a realização de mais jogos. É errado esse raciocínio», defende.

Capitão do Torreense e fisiologista, uma visão com conhecimento

Para abordar este assunto, o Maisfutebol foi ouvir outra voz, a voz de alguém que tem uma dupla abordagem ao tema: é jogador e também fisiologista. David Rosa foi o capitão do Torreense na época que agora terminou em festa, com a subida do clube à II Liga. E é mestre em treino desportivo com especialização em futebol pela Faculdade de Motricidade Humana. Divide o tempo entre o ginásio onde trabalha com muitos jogadores profissionais e os treinos e os jogos, aplicando também os seus conhecimentos em si próprio. «Sei as exigências que a modalidade necessita e sei também as formas mais rápidas de recuperar», resume. Por saber, também já decidiu que não acompanhará o clube na subida. «Não consigo conciliar as coisas neste nível de exigência, na II Liga. Fico muito triste, mas é por aqui que passa o meu futuro», diz, enquanto aguarda ainda para decidir onde continuará a jogar na próxima época.

A esta conversa David traz conhecimento. Sobre o bem-estar e a performance dos jogadores, sobre sobrecarga, monitorização ou prevenção de lesões. A abordagem, começa por explicar, assenta em vários pilares. Hoje podemos falar de quatro, diz: «Os pilares da performance são treino, nutrição e descanso. E agora outro que é muito importante, a saúde mental.» E nenhum deles se substitui aos outros. Mesmo com técnicas sofisticadas de recuperação que existem hoje, como a crioterapia, nada substitui por exemplo o descanso, afirma: «São essenciais e nenhum substitui o outro. Complementam-se, mas são insubstituíveis.»

«Clubes interessados no imediato»

Os riscos, nomeadamente de lesões, aumentam quando há uma sobrecarga de jogos, que afeta o equilíbrio do tempo de recuperação. «Uma coisa é eu fazer 30 jogos a jogar uma vez por semana. Outra coisa é, como acontece com muitos destes profissionais, ter jogos três vezes por semana. Tem muito a ver com o volume de jogos, mas também com o tempo de recuperação entre jogos. Há um risco maior de lesão porque o atleta vai estar exposto durante mais horas a fatores de risco. Se fizer dois jogos por semana aumenta logo para o dobro, com a agravante de ele poder não ter recuperado bem do jogo anterior.»

Ao nível da alta competição, o desgaste torna-se inevitável, como nota David Rosa. «Do ponto de vista desportivo, é o que aprendemos na faculdade, o alto rendimento não dá saúde. Não foi feito para dar saúde. Essa é uma das nossas grandes lutas.» E no topo da pirâmide é muito difícil combater a tendência para o excesso de jogos, acrescenta: «O futebol é um espetáculo é um gerador de receitas enorme. E quanto mais eventos fizer, mais dinheiro vai ter.»

«Os clubes estão interessados na performance no imediato. Sei que muitas vezes acontece, se for preciso fazer alguma coisa invasiva para o jogador, infiltrações ou o que quer que seja para ele jogar mais um jogo, eles fazem-no. Não querem saber se isso vai ter influência ou não no resto da carreira dele. O futebol é para dar rendimento, é para ter lucro», constata. O trabalho que pode fazer quem lida no dia a dia com os jogadores, acrescenta, é tentar minimizar esse impacto: «Como é que vamos combater isso? Não combatemos. Tentamos ajudar o jogador da melhor forma possível. Começam a haver cada vez mais formas de monitorizar as cargas de treino dos jogadores, cada vez mais testes físicos, exames, onde percebemos quais são as fragilidades dos jogadores, e trabalhamos em função disso.»

A monitorização «ao vivo» no Sporting

Isso também já se faz em Portugal. David, que trabalhou com Rúben Amorim no Casa Pia, dá o exemplo do Sporting. «Nós somos seres humanos e não somos programados como os computadores. Mas conseguimos cada vez mais perceber quais são os limites dos jogadores. Conseguimos traçar o que chamamos o perfil do jogador. Através da monitorização GPS ao vivo, que já acontece por exemplo no Sporting, é possível durante o treino perceber qual é o ponto de carga daquele atleta. Eu sei se ele já está a 50, 60 ou 70 por cento daquilo que é o seu máximo em jogo.» A partir daí, o treinador pode ajustar o exercício ao limite de cada atleta, explica: «Se ambos estivermos a fazer um exercício X, com duração de dois minutos, e você deu 80 por cento do seu máximo e eu só dei 60 por cento, se calhar as equipas de topo o que fazem é dizer: ‘Tu descansa, não fazes a próxima série. David, tu fazes mais duas séries.’ O topo é eu estar a fazer o exercício e se for preciso chega ali ao minuto e 45 e dizem para parar, porque atingi os meus 80 por cento. Estamos onde queríamos.»

Essa é a realidade no topo, lá está. Porque na generalidade dos clubes portugueses o trabalho é bem menos sistematizado. Já não estamos a falar dos limites a que são sujeitos os jogadores de topo, mas o bem-estar e a melhoria de performance não deixam de ser importantes e transversais a todos os atletas. «Em Portugal, clubes de topo são quatro da I liga. Todos os outros, ou não têm condições materiais - há clubes que não têm ginásio -, ou não têm profissionais acreditados, ou não têm disponibilidade de tempo», diz David Rosa, acrescentando que muitos jogadores procuram o trabalho de um preparador físico para melhorar o seu rendimento, mas isso ainda não é bem aceite por muitos clubes.

«Ainda há muito atrito entre clubes e PT. Muitos dos clubes não têm condições para trabalhar com os atletas como nós temos. Mas os clubes querem ser donos e senhores do que acontece», afirma, acreditando que o ideal era que ambos planos funcionassem em conjunto: «O meu pensamento utópico é que podemos sempre trabalhar como equipa. Quando o atleta está bem ganhamos os três. Eu, o atleta e o clube. Nós queremos todos o melhor rendimento do atleta. Eu muitas vezes conheço o atleta melhor que qualquer clube.»

O trabalho sistemático na performance dos jogadores tem vantagens óbvias, acrescenta, nomeadamente na prevenção de lesões: «Conseguimos reduzir a probabilidade de ocorrer uma lesão, trabalhando o atleta para aumentar a sua resiliência. Quanto mais o atleta estiver preparado para receber as cargas dos treinos e dos jogos, mais longe vai estar de ter uma lesão. Excluindo, claro, tudo o que seja lesões por impacto, aí não há volta a dar.»

Os passos portugueses pela saúde mental

Mas nem tudo são más notícias no panorama português. Na questão da saúde mental, têm sido dados vários passos. David Rosa dá o seu próprio exemplo. «No Torreense tínhamos uma psicóloga a trabalhar connosco. Ajuda-nos muito no sentido de nos entender enquanto pessoas. E noutros aspetos muito importantes, como a gestão de expectativas. Quando um jogador é contratado são raros os clubes que dizem realmente aquilo que esperam do jogador. Dizem aquilo que o jogador quer ouvir. Depois se acontece ou não, está o contrato assinado. Portanto, a gestão de expectativas, a definição de objetivos quer de longo quer de curto prazo, tal como entendermo-nos enquanto atletas e pessoas, foi um trabalho muito importante da nossa psicóloga.»

«Os clubes da I e II liga têm departamentos médicos com um psicólogo afeto», nota por sua vez Joaquim Evangelista, acrescentando que o Sindicato também oferece esse serviço aos jogadores. «Durante a pandemia fizemos um protocolo com a Ordem dos Psicólogos, que se mantém. Temos o país coberto, são mais de 400 psicólogos disponíveis para os jogadores. O Sindicato oferece as primeiras quatro consultas, gratuitas. Temos vários jogadores e jogadores, da I Liga ao Campeonato de Portugal, que estão a ser seguidos, acompanhados do ponto de vista emocional.»

Essa questão deixou em definitivo de estar escondida, constata Evangelista. «Havia aqui também um tabu acerca deste tema. Jogadores doutras modalidades e do futebol também começaram a manifestar-se e a contar as suas vivências e isso permitiu a outros terem coragem para o fazer. Demonstram o problema, agravado pela pandemia, mas também por esta necessidade de estar sempre apto, sempre preparado para jogar.»

Quanto à questão global da sobrecarga de jogos, Evangelista acredita que é possível também encontrar um equilíbrio num horizonte próximo, se o tema continuar na agenda mediática. «Há questões que ganharam importância. Os direitos humanos, o racismo, a violência no desporto, a igualdade. São fraturantes na sociedade. Esta questão da saúde e bem-estar dos atletas também vem para ficar, do meu ponto de vista. Estas medidas fazem parte das orientações da União Europeia. Estou convencido que estas questões vieram para ser discutidas e para ser derrubadas. Como já aconteceu com outras. Eu diria que por exemplo o Mundial do Qatar, se fosse hoje não tenho dúvidas que não teria lugar. Com a opinião publica que hoje existe não seria possível.»

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