Do fair play financeiro à sustentabilidade: o que muda para os clubes

13 mai 2022, 22:51
Dinheiro (Reuters)

UEFA mudou regras, já a partir de 1 de junho. O foco está no controlo de custos com plantel, o que inclui transferências e comissões. E há um conceito de «valor justo» de negócios que promete dar que falar. Para Portugal pode ser uma oportunidade, dizem especialistas

Sustentabilidade depois do fair play. A UEFA mudou o regime do controlo das finanças dos clubes e o novo sistema entra em vigor já a 1 de junho. O principal foco é agora a limitação de gastos com o plantel, num conceito alargado que inclui salários, transferências ou comissões. E agora há um princípio de «valor justo» em todas as transações, com efeitos difíceis de prever. Para os clubes portugueses, as novas regras podem implicar mudanças na abordagem ao mercado de transferências E podem ser também uma oportunidade, dizem especialistas que olharam, com o Maisfutebol, para o que muda e para as questões que as novas regras levantam.

A UEFA instituiu em 2010 o conceito de fair play financeiro (FFP, em inglês), com regras assentes no equilíbrio entre gastos e receitas, o princípio do break-even. O organismo defende que esse modelo serviu a finalidade e avança com números: o balanço inverteu-se de 1.6 mil milhões de euros de perdas dos clubes em 2009 para 140 milhões de lucro em 2018. Agora, a UEFA considerou que a evolução da indústria e sobretudo o impacto da pandemia de covid-19, que levou a perdas estimadas de 7 mil milhões de euros em 2020 e 2021, obrigam a uma nova abordagem.

O novo modelo, que continua a ser aplicado no âmbito do licenciamento para as provas europeias, assenta em três áreas – solvência, estabilidade e controlo de custos.

Do equilíbrio à lógica «preventiva»

No princípio da estabilidade, há uma primeira alteração notória em relação ao modelo anterior, quanto ao equilíbrio entre gastos e receitas. O «desvio aceitável» ao break-even passa de 30 para 60 milhões de euros, com 10 milhões adicionais para clubes com provas dadas de «boa saúde financeira».

Há aqui maior latitude para os clubes e João Fonseca, gestor e quadro da FIFA, defende que o novo conceito em que se enquadra esta medida faz mais sentido. «É curiosa a mudança de nome, e a perceção é muitas vezes importante até para a aceitação das regras. Sustentabilidade financeira é a perceção que se pretende ter para a indústria. É fundamental do lado do ‘governing body’, seja a UEFA ou a Liga, olhar para o ecossistema. E mais do que punir, o importante é prevenir», diz: «Os clubes têm sido o stakeholder que mais sofre, apesar de serem provavelmente o mais importante motor da indústria. Entendendo e bem a situação complicada, a UEFA faz um programa faseado que permite que possam estar todos de melhor saúde num futuro próximo.»

Para Paulo Reis Mourão, professor de economia na Universidade do Minho, o anterior modelo «foi justificado e teve o seu ciclo»: «Foi útil para regular e evitar uma exposição excessiva dos clubes, que tinham entrado numa onda de endividamento mal calculado, ainda que tenha sido um pouco por toque a rebate, depois de o fogo estar a acontecer.» Agora, diz, a UEFA recorre a um termo «mais simpático, de marketing organizacional», que representa uma abordagem mais global. «A UEFA está a ter uma leitura mais integrada da realidade. Há toda uma leitura de valor económico e social que os clubes hoje têm e aproveitando o lado didático do que foi o FFP há uma tentativa da UEFA em regular a atividade generalizada dos clubes, permitir que sejam sustentáveis independentemente dos ciclos de direções, de títulos.»

António Samagaio, professor do ISEG, constata que «há uma folga maior» quanto aos níveis tolerados de prejuízos, mas não considera que as novas medidas representem um afrouxar do controlo das contas. «Pelo contrário», nota, acrescentando que os novos regulamentos introduzem outros fatores de controlo relevantes: «É interessante a introdução do princípio de que os custos associados a investimentos, como academias ou infraestruturas, sejam financiados pela chamada via de capital próprio e não por dívida. São projetos a médio e longo prazo e os clubes endividarem-se para construir uma nova academia é um fator de maior risco.»

De volta às alterações, além do princípio da estabilidade há aquele a que a UEFA chama solvência. É a área de controlo de dívidas, que já existia na anterior versão do FFP, mas passa a ter regras mais apertadas para garantir o pagamento aos credores. Passa a haver três controlos anuais e dívidas com atraso superior a 90 dias são consideradas como mais graves e sujeitas a sanções mais pesadas.

Conceito alargado de custos do plantel

O terceiro e mais relevante princípio do novo modelo é o controlo de custos. É aqui que entra a principal alteração, a chamada regra de custo do plantel. O peso dos salários nas contas dos clubes aumentou com a pandemia, quando baixaram as receitas: foi em média de 77 por cento das receitas em 2021, segundo os últimos dados da UEFA. O valor sobe para 81 por cento em Portugal.  Com as novas regras, a UEFA determina que os gastos com o plantel não devem ultrapassar 70 por cento das receitas.

A aplicação será gradual. Esse valor é de 90 por cento em 2023/24, 80 por cento na época seguinte e por fim de 70 por cento. O anterior sistema já tinha um princípio indicativo de limitação dos gastos com salários a 70 por cento, mas a nova regra alarga em muito o conceito. Não é um teto salarial, como chegou a ser noticiado, mas um limite nos gastos com tudo o que envolve o negócio de mercado, dos salários às transferências, passando pelas comissões

«Aqui entra o que envolve o custo associado ao investimento nos jogadores e treinadores. Além do próprio salário, também os encargos associados, impostos ou outras remunerações, como prémios de produtividade», observa António Samagaio: «Depois tem uma parte importante das amortizações. Ou seja, o investimento que foi feito e que é repartido pela duração do contrato, a chamada amortização do passe. Há ainda a componente da comissão dos agentes.»

É uma regra mais exigente, considera o especialista, dando um exemplo: «Quando se adquire o passe de um jogador e há um prémio de assinatura, esse prémio é logo reconhecido como um custo. É mais penalizador, mais agressivo, para se aferir este rácio. Os clubes terão de ponderar se vão atribuir mais remuneração ao jogador ou se pagam prémio de assinatura, o que também tem implicações fiscais.»

A medida vai no sentido de racionalizar os gastos dos clubes, observa João Fonseca: «No meu entender é uma excelente medida, tendo em conta que num ecossistema onde os clubes estão todos a lutar para o mesmo, é muito fácil perder a racionalidade e gastar ligeiramente mais do que se deve. É compreensível, mas é função a meu ver dos ‘governing bodies’ zelar pela sustentabilidade e neste caso ajudar os clubes», afirma.

O «valor justo» que vai dar que falar

Nessa definição dos gastos com plantel, a UEFA generalizou um princípio cuja aplicação pode vir a causar grande impacto. O organismo propõe-se avaliar o «fair value» - valor justo, ou valor de mercado - das transações. Esse conceito já existia na versão anterior do fair play financeiro, mas envolvia apenas negócios entre aquilo a que se chama partes relacionadas, tipicamente entidades com acionistas comuns. Agora é alargado a todos. «O ‘fair value’ traduz o preço que devia estar subjacente numa operação entre duas partes interessadas, conhecedoras do negócio. Até aqui olhava-se para as partes relacionadas. Agora estão a alargar também a possíveis combinações entre dois clubes. É importante esta ideia, para não haver operações simuladas ou empoladas, para dar mais credibilidade», diz António Samagaio.

À primeira vista, o alvo evidente destas medidas serão os clubes detidos por oligarcas, ou entidades estatais. «É sobretudo virado para os grandes clubes que têm os magnatas por trás. Podiam fazer um contrato de publicidade de 100 milhões por ano, mas metiam um contrato de 300 ou 400 milhões e era uma forma de injetarem dinheiro. Aqui a UEFA também está a procurar restringir essas ‘manipulações’ de contratos», observa Samagaio. Mas também está previsto esse mecanismo para as transferências de jogadores.

A avaliação do ‘fair value’ pode fazer subir ou descer gastos e receitas, se houver diferença entre o valor declarado e o avaliado. «Esse valor é retirado no cálculo do rácio. Vamos imaginar que eu registei uma mais-valia da venda de um jogador por 50 milhões, mas de facto devia ser 30 milhões. Há 20 milhões que vão ser descontados», analisa António Samagaio.

Como avaliar o «valor justo»?

Os regulamentos prevêm que essa avaliação seja feita por um analista independente, que pode ser nomeado pelo clube. O impacto real que terá esta medida é difícil de prever, antes de mais porque o próprio conceito de ‘fair value’ em negócios de futebol não é linear. «Muitas vezes neste tipo de operações não há verdadeiramente esse preço de mercado, é uma questão de negociação entre as partes. É difícil de aferir. A não ser que haja um mecanismo de avaliar se há um procedimento concursal, se houve propostas de concorrentes», analisa António Samagaio.

Paulo Reis Mourão também vê dificuldades na aplicação prática da avaliação do tal valor justo. «Quatro analistas vão dar seis opções de resposta», ironiza: «Se quiséssemos ser rigorosos, teria que ser a UEFA a criar um indicador fair value para cada clube. Aí diria: não podem passar deste valor de mercado. Quando muito criando uma margem de erro, para esse valor serpentear. Parece-me conversa para algo experimental», afirma.

A UEFA já tentou no passado penalizar clubes sob acusações de inflacionar contratos. O caso mais notório foi o Manchester City, que foi excluído das competições europeias, mas acabaria por ver o caso revertido pelo Tribunal Arbitral de Desporto.

A questão das injeções de dinheiro de magnatas, aquilo a que os responsáveis da Liga espanhola, por exemplo, chamam «doping financeiro», está há muito na ordem do dia. Com um dado novo nesta altura, considera Paulo Reis Mourão, aludindo à guerra na Ucrânia: «A UEFA não está preocupada que o dinheiro venha dos oligarcas, sempre se soube que vinha e nunca ninguém perguntou se foi eticamente ganho. Está preocupada em evitar a exposição do desporto europeu, que hoje atinge uns oligarcas e amanhã pode atingir outros, evitando que o financiamento entre em convulsão e percebendo que é importante a separação de contágios.»

Das sanções à prática

Se estas novas medidas vão conseguir ir mais longe no controlo das injeções dissimuladas de capital, ou nas transferências inflacionadas, é a grande incógnita. «Vai depender, em termos processuais, de como a UEFA pretende aferir isso. Mas é sempre possível tentar conseguir escrutinar pelo menos os negócios que são muito estranhos. Chegar depois à prova, depende da informação que se consiga recolher», considera António Samagaio.

Andrea Traverso, director de sustentabilidade financeira da UEFA, admitiu aquando da apresentação da nova regulamentação que o sistema não é infalível, mas defende que as regras são agora mais apertadas. «Se um clube rico gastar de mais incorre em sanções. Pode haver formas de contornar, de disfarçar pagamento de salários, mas isso violaria também a legislação nacional. A nossa capacidade de investigação é limitada, não somos a polícia, mas acreditamos que da forma como as regras estão definidas é cada vez mais difícil contorná-las», afirmou, citado pelo Guardian.

As sanções para quem não cumprir os regulamentos começam por ser financeiras, com multas e/ou retenção de receitas, e passam depois por uma série de penalizações desportivas, das limitações na inscrição e utilização de jogadores à exclusão das competições europeias. Em cima da mesa está ainda, segundo admitiu Traverso, a despromoção de um clube, passando por exemplo da Liga dos Campeões para a Liga Europa, o que ainda não está no entanto previsto nos regulamentos.

Tem havido diferentes análises sobre se as novas medidas, aprovadas depois de consultados todos os agentes do futebol e saudadas, por exemplo, pela Liga espanhola, beneficiarão ou não os clubes com mais capacidade financeira, que têm nomeadamente maior capacidade de pagar multas. Ou seja, se promoverão ou não maior equilíbrio competitivo. A UEFA defende que não o poderão fazer por si só. E esse foi aliás um dos motivos para a mudança de nome do FFP, afirma Traverso: «O equilíbrio competitivo não pode ser abordado apenas por regulamentação financeira. Tem de ser abordado em combinação com medidas desportivas e outras. Foi por isso que mudámos o nome. O nome fair play era interpretado como criando um campo de jogo nivelado, e quisemos mudar essa perceção.»

Portugal: maior pressão nas transferências e na aposta na formação?

Em Portugal, vários clubes sofreram já sanções por incumprimento. O FC Porto esteve até março deste ano sob alçada do fair play financeiro. Se nesse caso específico poderia haver algum alívio para o clube, com o aumento do desvio aceitável de prejuízo, os novos regulamentos continuam a ter implicações significativas nas contas dos clubes portugueses que têm de cumprir licenciamento europeu.

«Os próprios clubes já podiam ter feito uma nota na imprensa a referir até que ponto as novas regras vão ter ou não impacto significativo no seu futuro. Sobretudo as três principais SAD», defende António Samagaio, para quem as novas regras vão pressionar os clubes portugueses, muito expostos ao peso da massa salarial e também ao negócio das transferências.

«A partir do momento em que entram na equação as amortizações do exercício, as comissões pagas aos agentes… É fácil olhar para os números e ver que os clubes têm dificuldades em cumprir estes 70 por cento. Isto vai criar pressão ao nível das transferências», nota: «Pelos mecanismos tradicionais, um clube português tem essencialmente duas vias para aumentar receitas. Uma são os direitos televisivos. Outra as mais-valias na venda de jogadores. Se não conseguirem aumentar o denominador, tem que haver pressão para a contenção de custos. Mas sabemos que é muito mais difícil gerir custos.»

Com impacto tanto na hora de vender como de comprar. a mudança pode, admite, motivar os clubes a apostarem mais na formação. «Podem de facto ser obrigados a isso, porque comprar um jogador significa que vai ter impacto ao nível dos custos. Se para evitar isso apostarem na chamada prata da casa, pode ser uma oportunidade de ouro para melhorar a formação», observa.

Paulo Reis Mourão não acredita que ao nível das transferências haja grande impacto para os clubes portugueses: «Parece-me que tradicionalmente o mercado português é competitivo porque é mais próximo daquele conceito do fair value, tirando um ou outro caso que foi noticiado de um jogador transacionado por um valor muito mais alto do que aquilo que era esperado.»

O economista defende por outro lado que as novas regras deviam ser transpostas também para a realidade portuguesa. «A própria Liga e Federação deviam utilizar isso para os clubes de escalões secundários. Nunca houve um FPP para esses escalões. Ter-se-ia evitado se calhar o desaparecimento de alguns. Há um campo de futebol que encerra, centenas de miúdos que deixam de jogar porque a equipa senior foi mal gerida. Isso tem impacto social.»

«Excelente oportunidade» para Portugal «surfar a onda»

João Fonseca vê precisamente nos novos regulamentos uma oportunidade para todo o futebol português. «Para mim a questão primordial relativa aos clubes portugueses, que a nível internacional têm sido excecionais a fazer muito com pouco, é mesmo a sustentabilidade. Acho que é uma excelente oportunidade para a Liga pensar em implementar um sistema de viabilidade económica em termos nacionais. A Liga espanhola tem um controlo económico que do meu ponto de vista é o mais eficiente a nível europeu. Acho que a UEFA, bebendo também muito do que a La Liga implementou desde 2015, está a dizer às outras Ligas que este é o caminho», afirma.

O caminho que aponta o membro da equipa de estratégia da FIFA é a aplicação desta regulamentação pela Liga, à boleia da futura centralização dos direitos TV. «Há duas situações que devem caminhar de mãos dadas. Quem achar que só por si a centralização vai resolver o problema não está a ver bem o filme. Acho que a regulação económica mais a centralização podem ser os ingredientes que faltam para o aumento da competitividade a nível nacional. Não tenho dúvidas de que os clubes estarão muito abertos e ávidos pela ajuda da Liga para liderar este processo», considera: «O modelo de negócio vai mudar. A venda de direitos televisivos passa a ser feita pela Liga e a partir daí acho que existe a oportunidade perfeita para a Liga, juntamente com os clubes, implementar esse tal sistema de viabilidade financeira, surfando a onda da UEFA.»

 

Patrocinados