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Vodafone Paredes de Coura: A voz da contestação, mas também o amor e a alegria, são a força da música dos Idles

Segundo dia de concertos em Paredes de Coura, nesta quarta-feira os Idles foram senhores e reis da noite e os Beach House não convenceram. Desta vez não houve chuva, as temperaturas sobem amanhã

De Idles não se quer o concerto da noite, quer-se o concerto do festival. Idles foi de longe o concerto da noite e, muito provavelmente, o concerto do festival. Faltam cinco minutos para a hora marcada, as 23 e 15, e já os elementos da banda de Bristol estão no palco principal deste segundo dia de actuações no Festival de Paredes de Coura. As baquetas a bater num dos tambores da bateria começam por marcar o passo, acompanhadas por uma nota de baixo. O tom é grave, vamos entrar num mundo pesado, sombrio.

O vocalista Joe Talbot começa por cantar Colossus, do segundo álbum, Joy as an Act of Resistance (2018): I was done in on the weekend/ The weekend lasted twenty years/ The world's best bulimic bartend/ Tender, violent and queer// Forgive me father, I have sinned” (Terminei o fim-de-semana/ O fim-de-semana durou vinte anos/ O melhor serviço de bar bulímico do mundo/ Terno, violento e esquisito// Perdoa-me pai, eu pequei”).

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Ainda estamos longe de ouvir hinos como Never Fight a Man with a Perm ou Danny Nedelko, ambos deste segundo disco, ou Mother, do primeiro LP, Brutalism (2017), mas a entrada num verdadeiro concerto punk, efectuada por uma verdadeira banda punk, só pode acontecer a pés juntos: seco, tenso, trata-se de som que rasa o noise e não dispensa os efeitos de pedais – daí chamar-se pós-punk.

A descrição da entrada é importante porque ser fã de punk e noise é sentir o corpo ser rodeado por um barulho tão intenso que acaba por trazer paz. O barulho ensurdecedor alivia o cansaço físico, alivia o cansaço emocional e alivia, principalmente, o cansaço social, logo político. Porque ser punk é cerrar o punho e bater com a porta na cara de sistemas opressores, como foi a era de Tatcher e em que tínhamos os Sex Pistols a cantar “no future/ no future for you”.

A canção Mother, de Brutalism, descreve a vida da mãe de Talbot, que morreu depois de uma longa luta contra o cancro e cuja fotografia é a que ilustra a capa do disco. “My mother worked fifteen hours five days a week/ My mother worked sixteen hours six days a week/ My mother worked seventeen hours seven days a week// The best way to scare a Tory is to read and get rich” ("A minha mãe trabalhava quinze horas cinco dias por semana/ A minha mãe trabalhava dezasseis horas seis dias por semana/ A minha mãe trabalhava dezassete horas sete dias por semana// A melhor maneira de assustar um Tory [Partido Conservador] é ler e ficar rico").

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Hoje, vemos os movimentos de extrema-direita a desabrochar por todos os lados que nem flores aparentemente inócuas. A atitude reivindicativa do punk passa também pela perspicácia de enaltecer a importância do amor. E da alegria. São os melhores antídotos à propagação do ódio. E os Idles sabem-no melhor do que ninguém. Não se cansam de injectá-los, quer quando cantam em Danny Nedelko a importância de abraçar os imigrantes porque eles ajudam um país a tornar-se melhor, seja que país for, Reino Unido ou Portugal; quer quando apelam aos abraços, como o fizeram esta noite. Uma das t-shirts do merchandise da banda tem inclusive a fotografia a preto e branco de dois homens a abraçarem-se, um deles com uma balaclava enfiada na cabeça, e por baixo está escrito o nome do segundo disco, Joy As an Act of Resistance (A Alegria Enquanto Acto de Resistência).

A voz de Talbot, boca sempre encostada ao microfone, as linhas do pescoço salientes de tanto gritar, lembra a de Jason Williamson, dos Sleaford Mods. A de Talbot é ligeiramente mais rouca, mas tem igualmente o seu quê de fisicalidade hooligan. Talbot grita, na verdade, com o corpo todo. Tudo o que canta sai-lhe do pêlo, não é por acaso que se farta de agradecer ao público o quão preciosos são os concertos a salvarem-lhe a vida. Ele que ainda hoje referiu o seu passado com as drogas e a rede de amigos que tem.

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Se os primeiros álbuns se traduziam na exteriorização de fúria que liberta, no trabalho mais recente (Crawler, 2021) já sentimos que essa ira se transmutou – deslocou-se da pele para o fundo da alma. É mais negra. E foi isso mesmo que Talbot cantou nas canções Crawl! e The Wheel. Ou em The Beachland Ballroom: “I'm not praying, baby/ I'm not begging, darling” (“Não estou a rezar, querida/ Não estou a implorar, querida”); e, mais adiante, “Soon as the rush went away/ I need not look for a way/ Damage, damage, damage” ("Assim que a pressa desapareceu/ Não preciso de procurar um caminho/ Dano, dano, dano, dano").

Antes de Idles, eram para tocar os australianos King Gizzard & The Lizard Wizard, que juntam num panelão a energia kraut de uns Neu! ou de uns Can – às vezes parecemos estar a ouvir excertos de Mother Sky nos seus temas – com chillwave e dream pop, uma pujança criativa explicada pela produção olímpica de discos (em 2021 lançaram dois e em 2017 cinco). Teriam ido muito bem com o plano inclinado do anfiteatro, atapetado de verde, e tanto daria para ouvi-los na vertical – a dançar – como na horizontal – a viajar. A substituição deu-se com os canadianos BadBadNotGood.

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Com esta banda oriunda de Toronto já não falamos em dream pop mas em dreamy jazz, a ressoar algum classicismo na área do experimental e a lembrar Miles Davis na sua fase mais eléctrica de Beaches Brew.

Os músicos estão a tocar às escuras em palco de modo a tornar a experiência mais imersiva: além do som – belos solos de saxofone – e do cheiro das folhas da erva intensificado pela humidade da noite, nos ecrãs passam imagens a lembrarem viagens, tratadas com filtros para lhes darem uma patine vintage. Há vídeos de plantas descarnadas no deserto e sequências de fotos de prédios a darem a sensação de movimento, como se alguém estivesse a vê-los a partir da janela de um carro em movimento.

A seguir, no palco secundário, actuaram The Murder Capital, uma banda irlandesa de pós-punk que veio preparar os espíritos para Idles. Os espíritos e os corpos, até porque houve muito mosh no espaço que Talbot pediu para ser aberto no meio do público que se encontrava à frente para isso mesmo. Antes, tinham tocado nesse Vodafone.FM duas surpresas: Porridge Radio, uma banda indie de sadcore que não percebeu que o shoegaze não é para quem quer, é para quem pode (e quem pode é quem começou por fazê-lo há 30 anos); e Indigo de Souza. Se ouvir os temas gravados em estúdio destes dois projectos não despertava grandes emoções, já as interpretações ao vivo fizeram-nos rejuvenescer de alguma forma – aos temas e aos projectos.

Por fim, os Beach House, a fechar o palco principal, à uma da manhã. Cumpriram mas já não convenceram. De tantas vezes que já cá actuaram (Meco, Lisboa, Parque da Cidade no Porto), não trazem nada de novo. Até porque o novo (principalmente, o último disco editado, Once Twice Melody) é um conjunto de devaneios não conseguidos, feito de incursões no psicadelismo e até em algum shoegaze, por vezes é como se estivéssemos a ouvir uma mistura de Air com Slowdive. O que se notou no concerto desta noite: o público só se reconheceu nos clássicos, essencialmente os de Bloom. Estava lá por causa deles.

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