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"No limite" e com "futuro incerto". Médicos e enfermeiros alertam para dificuldades no terreno e batem o pé ao Governo em pleno verão

O verão começou há pouco mais de uma semana e há hospitais que já correm atrás do prejuízo com planos de contingência internos. Quem está no terreno só tem uma certeza: se os últimos dois verões foram caóticos, “não houve melhorias” para este que agora começou

Pouco mais de uma semana depois da chegada do verão, médicos e enfermeiros já estão “cansados” de uma luta que não é de agora e que está prestes a agravar-se: os constrangimentos nas urgências hospitalares vieram para ficar, os hospitais procuram alternativas a nível interno, as horas extraordinárias acumulam-se e as negociações parecem uma travessia no deserto. Descontentes com o que dizem ser a inação do Governo e com as medidas apresentadas até agora, os médicos prometem bater o pé a mais horas extra e avançar com greves. Os enfermeiros já têm uma paralisação convocada para 4 de julho, em Lisboa e Vale do Tejo.

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O cenário, dizem os profissionais de saúde, avizinha-se igual, “ou pior”, do que o vivido nos últimos dois verões. “O curso natural e que tudo se agrave”, lamenta Susana Costa, médica e porta-voz do movimento Médicos em Luta. “Estamos mergulhados no marasmo que é o SNS”, refere, alertando para a necessidade de uma reformulação do Serviço Nacional de Saúde (SNS), mesmo que isso implique “medidas que não são politicamente corretas ou bonitas”.

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Conseguir médicos em número suficiente para preencher as escalas é o grande problema, mas a verdade é que não são apenas os médicos os prejudicados, muitas vezes ‘arrastados’ para um serviço que não é o seu ou retirados de consultas para a sala de urgências, o que por si só compromete a realização de consultas e cirurgias em tempo útil. Os enfermeiros levam quase sempre por tabela quando há falta de clínicos e estão a querer fazer-se ouvir. 

Não é raro encontrar serviços que devem em média 70-120 horas aos enfermeiros, e isto sem contar com os turnos extra que vão sendo pedidos. O SNS não produz mais porque tem poucos enfermeiros”, assegura Mário A. Macedo, enfermeiro especialista em Saúde Infantil e Pediátrica na Unidade Local de Saúde de Amadora/Sintra. E só esta dívida é meio caminho andado para complicar as contas já por si complicadas da gestão diária das equipas. “Há sempre serviços cronicamente com carências”, continua o enfermeiro. 

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Sónia Lopes, enfermeira no Hospital de Faro, diz-nos que a situação no Algarve está crítica e ainda nem se verifica a enchente habitual de portugueses e turistas de férias. “Ontem [27 de junho] falei com alguns colegas dos serviços de urgência de obstetrícia e pediatria e do bloco de partos e [os hospitais de] Faro e Portimão estão com muitas dificuldades”, conta-nos. E continua: “Também ontem, os colegas ainda não sabiam a escala de pediatras para julho, se vão ter ou não um pediatra no serviço ou se vão ter de transferir crianças, mães e grávidas estejam internadas ou não”.

A também dirigente na delegação de Faro do Sindicato dos Enfermeiros Portugueses critica “a falta de comunicação” que tem havido: “O que sentimos no terreno é que os profissionais não sabem nada do plano do verão, não há medidas extraordinárias para o aumento de utentes que está previsto [no Algarve], há uma falta de comunicação”. Esta falta de comunicação foi também apontada à CNN Portugal por Rui Candeias, médico no Hospital de Faro.

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Trabalhar no SNS, neste momento, é complexo, sentimos na pele estas dificuldades no dia a dia. O meu futuro é completamente incerto, há muita ansiedade”, desabafa a enfermeira.

Entre encerramentos, horários condicionados ou apenas atendimentos referenciados, vão ser 12 os serviços de urgência inaptos no próximo fim de semana. (Freepik)
Gestão diária cansa profissionais, que ameaçam com ‘travões’ a mais horas e greves em pleno verão

Alguns hospitais recorrem a planos de contingência internos ou a uma gestão mais rotineira, como é o caso da Unidade Local de Saúde de Gaia/Espinho, que diz que até agora tem sido possível manter as escalas e que “não foram precisos grandes planos e acertos”. Ainda assim as dificuldades são notórias de norte a sul do país e há unidades no “limite” do que é matematicamente possível para manter um serviço de urgência aberto. 

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No Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, onde Lèlita Santos trabalha, há um plano de contingência interno “que é adaptado anualmente, mas não se pode dizer que as coisas funcionam maravilhosamente”, pois já “houve a necessidade de pedir alguns encurtamentos de férias ou alterações de dias de férias”. “Estamos no limite”, diz, apontando “cansaço” por parte dos profissionais e “dificuldades” no preenchimento das escalas caso alguém se ausenta ou “haja um problema qualquer” que impeça o clínico de ir trabalhar.

No terreno, os profissionais de saúde falam de um jogo de cintura diário, uma corrida contra o tempo 365 dias por ano que tende a complicar-se no verão, com quebra-cabeças constantes para completar escalas e manter os serviços abertos, um esforço muitas vezes em vão.

Sónia Lopes diz que é comum haver “muita dificuldade em fazer as escalas [dos enfermeiros], é um jogo de cintura diário” e que “esta instabilidade de haver ou não um médico [no serviço] faz com que os enfermeiros tenham de estar a gerir ao dia as suas escalas de trabalho”, não sendo raros os casos em que “temos de colocar enfermeiros em casa se o serviço está semi-encerrado, os colegas têm de recorrer às folgas de compensação, mas até isso está a chegar ao fim”. “Estamos a falar de enfermeiros que vão ficar com as horas em dia e vão ter de ser redistribuídos por outros serviços. A instabilidade emocional que isto causa é gritante”, acusa a dirigente sindical. 

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Susana Costa, porta-voz do movimento Médicos em Luta e médica cirurgiã na Unidade Local de Saúde Tâmega e Sousa, lembra que “estes problemas são diários, tem sido isto durante todo o ano”, sobretudo nas escalas de urgência, que, assegura, “são uma verdadeira dor de cabeça no meu serviço, mas nas férias é pior ainda, basta um elemento do serviço ficar doente para ser quase impossível resolver a escala, temos de cancelar blocos e consultas. É um problema diário”. E apressa-se a dizer que vai agravar-se dentro de dias, na expectativa da entrega de minutas à recusa a mais horas extraordinárias.

A unidade onde trabalha está, aliás, a contratar médicos prestadores de serviços para os Serviços de Urgência Pediátrico e de Adultos, algo que fonte do hospital diz que é habitual, embora descarte problemas em preencher escalas, até porque “o nosso serviço de urgência funciona com muitos prestadores de serviço”, diz-nos, garantindo que “no nosso caso, para já temos tudo assegurado, temos as escalas asseguradas neste momento”. “Mas o verão é longo”, reconhece.

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A Liga Portuguesa dos Bombeiros diz que "estão a fechar com uma irregularidade muito grande" e que há casos em que os bombeiros esperam cerca de 30 minutos para saber para onde levam o utente.  (DR)

Mesmo a mais de 300 quilómetros de distância, Susana Costa não hesita em falar também da realidade dos seus colegas em Lisboa e Vale do Tejo, igualmente fragilizada nesta época do ano.

O SNS na região de Lisboa e Vale do Tejo tem sofrido uma degradação muito grande, porque os médicos não têm condições para viver em Lisboa por causa dos ordenados, optam por ir para outras regiões. Lisboa e Vale do Tejo tem uma crise muito grande, não há reposição de médicos jovens. A dificuldade lá é gritante”, alerta a porta-voz do Médicos em Luta. 

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Na Unidade Local de Saúde de Amadora/Sintra, a “urgência geral funciona sem limitações”, conta-nos Mário A. Macedo. Mas há limitações nas urgências pediátricas e de ginecologia e obstetrícia, ambas a funcionar em modo de referenciação, ou seja, estão reservadas às urgências internas e aos casos referenciados pelo CODU/INEM e pela linha SNS24, não estando 'disponíveis' para quem se dirige pelo 'próprio pé' à unidade. 

Ainda em Lisboa, na Unidade Local de Saúde de São José, cujas urgências estão a funcionar 24 horas por dia, a elaboração do plano de contingência para a resposta sazonal aconteceu “antes do período de verão” e foi “precedida por orientações relativas a férias e pela elaboração de escalas”. Numa resposta por escrito enviada à CNN Portugal, a unidade adianta ainda que o plano não é estático e poderá ser adaptado consoante as necessidades, estando desenhado em “três níveis de recursos humanos e físicos, que são acionados de acordo com as condições reais verificadas e com a pressão da procura nos serviços de saúde”.

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O Governo anunciou a abertura de um concurso para a contratação de 2.212 médicos, mas a história recente mostra que a adesão fica sempre aquém das reais necessidades: só no final do ano passado ficaram por preencher mais de 400 vagas e, sobre isto, Lèlita Santos aponta para o ‘drama’ da Medicina Interna, especialidade na qual “muitas vagas ficaram por preencher”. “A Medicina Interna é o pilar dos hospitais, vamos ter mais dificuldades, daqui a cinco anos saem metade dos internistas que queríamos que saíssem”, adianta a médica de Coimbra.

Mesmo após este anúncio do Executivo, a Federação Nacional de Médicos anunciou que se as negociações com a Ministra da Saúde não arrancarem e se não chegarem a bom porto, há em cima da mesa duas greves pensadas: uma primeira nos cuidados de saúde primários e outra geral. “A atual ministra da Saúde tem deixado a questão da saúde para o fim, e isso é um mau sinal”, atira Joana Bordalo e Sá. 

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Também como forma de luta, este sindicato apela aos médicos que apresentem minutas de recusa a mais horas extraordinárias para lá das 150 e 250 horas anuais estipuladas por lei (estas últimas para os que aderiram ao regime de dedicação plena). Em junho, cerca de 500 médicos já tinham uma carta aberta dirigida à ministra da Saúde em que, caso Governo e sindicatos não cheguem a acordo nas próximas negociações, manifestam indisponibilidade para fazer horas extraordinárias acima das impostas por lei.

O Sindicato dos Enfermeiros Portugueses convocou para 4 de julho uma greve nos Centros de Saúde/Unidades Funcionais de Prestação de Cuidados de Saúde Primários das ULS de Amadora Sintra, Estuário do Tejo, Loures-Odivelas, Santa Maria, São José e Lisboa Ocidental. Em causa está a reivindicação dos pontos detidos para efeitos de progressão, mas o certo é que é esperado um impacto também nos hospitais, que acaba por ser a única porta de entrada que os utentes desta zona terão para aceder a cuidados de saúde.

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Federação Nacional dos Médicos insta os especialistas a apresentar minutas de recusa à realização de mais horas extraordinárias. No caso dos enfermeiros, há casos em que o banco de horas é usado sem escolha, pois não há médicos no serviço. (Pixabay)
Mapa interativo induz em erro e pode agravar situação nas urgências

A grande afluência às urgências é um dos problemas mais crónicos do Serviço Nacional de Saúde e surge à boleia da falta de resposta nos cuidados de saúde primários, com mais de 1,7 milhões de utentes sem um médico de família atribuído. Esta corrida aos hospitais numa altura em que o SNS não consegue reter os profissionais tem tornado o cenário no terreno caótico, mas os profissionais dizem que a alternativa encontrada pelo Executivo não é a melhor. O Governo anunciou há precisamente uma semana um mapa interativo no qual, semana a semana, atualiza os serviços de urgência Geral, Pediatria e Obstetrícia e Ginecologia que estão abertos, mas tanto Joana Bordalo e Sá como Sónia Lopes dizem que o mapa digital pode “induzir em erro”, uma vez que assinala a verde as urgências que funcionam apenas algumas horas por dia e não aquelas que estão em pleno funcionamento. 

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O problema é que há muitas urgências materno-infantis que só estão abertas durante o dia e [o estar assinalado a verde] induz em erro as pessoas, embora tenha o horário à frente”, diz a presidente da Federação Nacional dos Médicos, que adianta que esta situação acontece também com urgências gerais e que “ter mapas semanais não faz qualquer sentido, é voltarmos ao mesmo”: a informação não é clara e as pessoas não sabem para onde ir.

Sónia Lopes volta a bater na tecla da “falta de comunicação” e diz que são vários os casos em que “os utentes são encaminhados para urgências fechadas”, dando o exemplo do que que o SEP diz ter acontecido no Algarve: “O portal de transparência dizia que os serviços de Algarve estavam abertos quando estavam fechados”, conta, adiantando que o SNS 24 encaminha os pacientes “com base nessa informação”.

Também a Liga dos Bombeiros Portugueses (LBP) alertou para as dificuldades que as corporações dos bombeiros enfrentam no transporte de utentes devido aos constrangimentos nas urgências hospitalares. Em declarações à Lusa, António Nunes, presidente da LBP, diz que estamos perante uma situação “complicada e desesperante”, pois as urgências hospitalares “estão a fechar com uma irregularidade muito grande e os bombeiros não sabem em concreto quais as urgências” abertas, o que faz com que, em alguns casos, fiquem mais de 20 minutos à espera para saber qual a unidade mais indicada para levar o paciente.

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