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Uma casa construída com ossos, cadernos macabros, canibalismo. Como um idoso acarinhado pela vizinhança foi desmascarado

Andrés Mendoza, de 73 anos, era unanimemente respeitado no bairro onde vivia. Na verdade, era o mais perigoso feminicida da história do México

Andrés Filomeno Mendoza, um idoso de aspeto frágil e bonacheirão, era um dos membros mais acarinhados de um bairro em Atizapán, México. A sua reputação imaculada concedeu-lhe o título de vigilante do bairro: foi nomeado presidente da comissão de vizinhos, controlava o acesso ao polidesportivo local, prestava ajuda à comunidade sempre que necessário. Até os traços mais excêntricos eram acolhidos como intrínsecos à sua natureza altruísta. "Partilhava quilos de carne", explica um vizinho, "com o pretexto de que lhe tinham oferecido muita carne de javali". 

Quando a polícia invadiu a casa do idoso, carinhosamente alcunhado de "El Chino", os vizinhos acorreram ao local e tentaram esclarecer a situação. Era apenas um idoso de 73 anos, franzino e inofensivo - o que poderia ter feito para ser agora levado, algemado, pelas autoridades? Perante o choque da vizinhança, a vida dupla que tinha conseguido conciliar por mais de 30 anos foi finalmente descortinada. Andrés Mendoza era, afinal, o maior feminicida em série da história do México. 

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A sua figura pacata e socialmente interventiva era usada para cativar e ganhar a confiança das mulheres das redondezas. Uma vez a sós com as vítimas, assassinava-as de forma particularmente calculista e metódica: esquartejava-as, estudava as diferentes partes do corpo e até - provavelmente - ingeria a carne. O que resta dos corpos permite identificar somente 19 vítimas, mas as autoridades acreditam que poderá ter vitimizado mais de 50 mulheres. 

"El Chino" - agora conhecido como "O Canibal de Atizapán" - só viria a ser detido na sequência do assassinato de Reyna González, a mulher do chefe da polícia municipal. O agente enlutado comprometeu-se a solucionar o mistério do desaparecimento da esposa e seguiu todas as pistas disponíveis - que acabaram por conduzi-lo a um desfecho por todos inesperado. 

Uma casa de horrores

Quando a esposa desapareceu, Bruno González recorreu à sua influência enquanto chefe da polícia para agir de imediato e examinar minuciosamente os últimos momentos da vida da mulher. As pistas fornecidas pelas câmaras de vigilância da zona e o GPS do telemóvel de Reyna terminavam no mesmo local: os vestígios desapareciam na rua Margarita, perto da casa onde vivia o respeitado ancião.

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"El Chino" era amigo da família e presença assídua nas festas organizadas pelo casal. Bruno estranhou, portanto, quando o idoso recusou abrir a porta e deixá-lo entrar. Perante a insistência do polícia, mostrou-se crescentemente incomodado e ameaçou que iria usar as suas "influências políticas" para o afastar. 

Mas, afinal, foi a posição de destaque de Bruno González na polícia municipal que ditou o rumo dos acontecimentos. Nessa mesma noite, um grupo de agentes deteve-se perante a casa - humilde e rudimentar, construída pelo próprio ancião, com o "número 22" escrevinhado no portão azul - e entrou, sem autorização. 

Dois quartos da moradia tinham sido arrendados. O quarto de "El Chino", ao fundo de um corredor, não indiciava vestígios de crime. Porém, numa das esquinas do corredor, os agentes detetaram algo curioso, quase despercebido: um alçapão. E, quando aberto, umas escadas de madeira que desapareciam na escuridão de um piso subterrâneo. 

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Os polícias desceram até à cave, tão escura e decrépita quanto as escadas rangentes já faziam adivinhar. Iluminado, o cenário era ainda mais nauseante. As esquinas estavam atulhadas de lixo e, no centro, encontrava-se uma mesa com "um pedaço de carne mordido e uma tortilha", como relatado por Jonathan J. González, o comandante dos bombeiros. "Encontrámos utensílios de cozinha com sangue, presumivelmente das pessoas que assassinava. No teto, tinha um pedestal de madeira onde colocava a câmara e se filmava". 

Uma enorme diversidade de provas, que iam desde documentos de identificação e telemóveis a roupa e acessórios, revelaram de imediato a identidade de algumas das mulheres que acabaram ali, esquartejadas sobre a mesa, vítimas da confiança depositada no idoso. Para além dos pertences das vítimas, os agentes recolheram um enorme catálogo que documentava o horror guardado naquelas quatro paredes: 50 cassetes VHS e 70 fotografias. 

O interesse de Andrés Mendoza por anatomia poderá dever-se à profissão que exercia antes da reforma - talhante. O local de tortura parecia ser, também, um local de estudo para o idoso. Dispunha de vários livros de anatomia, duas balanças, uma faca de cozinha e cinco cadernos. Em cada página, tinha inscrito à mão detalhes aterradores do corpo das vítimas. 

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"Carolina. O seu peso é 95 quilos. Partiu para o outro lado no domingo, dia 6 de abril, ao amanhecer. Cabeça, 5 quilos. Ambos os braços, 12 quilos". E as descrições das mulheres continuavam por centenas de páginas, numa análise tão crua e pormenorizada que relembra os vilões dos ecrãs de cinema, como o canibal Hannibal Lecter ou o temível Buffalo Bill que vestia, literalmente, a pele das vítimas. Os primeiros registos datam de 1991, o mesmo ano em que estreou o filme "O Silêncio dos Inocentes", e alguns especialistas acreditam que não será mera coincidência

Tal como as facetas antagónicas de "El Chino" e "O Canibal de Atizapán", também o resto da casa - simples e tranquila, coabitada por inquilinos - parecia contrastar com o palco de violência aparentemente centrado à cave. As autoridades só compreenderam a verdadeira dimensão do horror que a habitação encerrava quando começaram a desmoronar as paredes. Verificaram, então, que a casa tinha sido construída com os restos ósseos das vítimas, posteriormente cobertos por cimento. A simpática moradia, número 22 da rua das Margaritas, era na verdade um "autêntico cemitério" oculto em plena vista. 

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"Quando tiraram as paredes de cimento do banho, encontraram ossos", atesta o cineasta Grau Serra, realizador do documentário sobre o caso que está a abalar o México. "Ele construiu a casa, e com certeza que foi incorporando os restos das vítimas". 

Como justificar a total impunidade de André Mendoza durante décadas? Como poderiam os vizinhos não compreender que aquele idoso era, na verdade, um implacável feminicida e canibal? Para Grau Serra, a explicação é evidente: fomentava uma reputação cuidada, mostrando-se interessado e prestável perante a comunidade ("era muito exigente com a segurança, queixava-se de que não havia patrulhas suficientes", comenta um agente da polícia). E, principalmente, beneficiava de poderosas ligações políticas. Era amigo do presidente da Câmara, tinha acesso privilegiado a recursos públicos, geria e solucionava as queixas apresentadas pela comunidade. As mulheres de Atizapán desapareciam sem retorno, os vizinhos afixavam cartazes pelas ruas, e ninguém ousava contestar a sua autoridade ou presumir algo mais do que a sua total inocência. 

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A impunidade

O México acolhe recorrentemente protestos, marchas e manifestações pela dignidade e respeito pela vida das mulheres. A estatísticas, porém, são cada vez mais soturnas. Dez mulheres são assassinadas todos os dias no país e outros tipos de violência - como abuso sexual e agressão em contexto doméstico - têm vindo a registar uma tendência crescente. 

Ainda assim, apenas um terço destas mortes são oficialmente reconhecidas como feminicídios, o que motivou Grau Serra a realizar a série documental "Caníbal: Indignación Total".

"O objetivo desta série é provocar, mostrar que não é preciso parecer um monstro para ser um feminicida." 

No caso do feminicida de Atizapán, a justiça viu-se cumprida. No passado mês de março, Andrés Mendoza foi condenado a prisão perpétua pelo assassinato de Reyna González, a última vítima. Com base nos registos recolhidos pela casa, foram-lhe atribuídas pelo menos mais 18 vítimas - mas, segundo o realizador, muitas outras mulheres continuam por identificar. "Há no mínimo 50 mulheres naquela casa, e no entanto ainda não se escavou o chão da cave nem a casa da irmã", critica. 

No âmbito do documentário, Grau Serra teve a oportunidade de entrar na prisão onde o feminicida cumpre a pena e, qual Clarice Starling, colocar-lhe questões. Perguntou-lhe, sem rodeios, se alguma vez tinha comido carne. Não, respondeu peremptoriamente o recluso. Depois desviou o olhar para o chão, arranhou a mesa nervosamente, levou a mão à testa.

Por fim, perguntou se poderiam passar para a próxima pergunta.

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